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5 coisas que a Netflix não nos disse sobre a Ucrânia

As meias-verdades anedóticas do documentário “Inverno em chamas” abrem caminho para mentiras desconcertantes.
As meias-verdades anedóticas do documentário “Inverno em chamas” abrem caminho para mentiras desconcertantes. Por Pedro Marin | Revista Opera

“É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade”, dizia o lendário anúncio do jornal Folha de São Paulo no final dos anos 80. O documentário “Inverno em chamas: a luta da Ucrânia por liberdade”, lançado pela Netflix, é um exemplo primoroso.

Ao ignorar detalhes fundamentais da história da Ucrânia e da composição do movimento Euromaidan, que terminaria por derrubar o Presidente Yanukovich, as meias-verdades anedóticas do documentário abrem caminho para mentiras desconcertantes. Aqui estão algumas delas:

O povo ucraniano

Logo no início, o documentário afirma, em relação à recusa do Presidente Yanukovich em assinar um acordo de Livre Comércio com a União Europeia, que “enquanto o povo olha pro oeste, o líder [Yanukovich] olha pro leste.”

A afirmação, a princípio inocente, ignora a história do país e a formação de seu povo: a Ucrânia é resultado de uma complexa formação étnica, resultado de conflitos entre diversas nações e etnias que dominaram o território desde o século X. Não por acaso, “Ucrânia” significa fronteira; foi desde sempre um território em disputa. Essa formação, obviamente, resulta em traços e divergências políticas que, na Ucrânia, tomam um desenho geográfico muito específico.

De acordo com dados de uma pesquisa realizada em 2012 pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), 37% dos ucranianos eram favoráveis ao país ter melhores relações econômicas com a Rússia, 27% preferiam a Europa, e 26% consideraram importante manter relações econômicas com os dois blocos. Ou seja, “o povo” ucraniano diverge em relação ao alinhamento à União Europeia.

As variações geográficas são também evidenciadas pela pesquisa: Em Kiev, onde foram realizadas as manifestações contra o governo, 51% estavam a favor da aproximação com a Europa em 2012, número que chega a 57% em todo o oeste. No leste, a situação se invertia; na Crimeia, 71% disseram querer melhores relações com a Rússia, e em todo o leste o número era de 53%. Na região central, 37% escolheram a Rússia, contra 23% favoráveis à UE.

Sem partido

A impressão de que o Euromaidan foi um movimento “sem partido”, com grande enfrentamento à classe política, também é passada pelo documentário. Essa noção, que tenta ser evidenciada pela recusa ao ex-membro do UDAR, Vitali Klitschko (hoje líder do partido de Petro Poroshenko), conflita tanto com as imagens do próprio documentário – que mostram bandeiras de partidos como Congresso dos Nacionalistas Ucranianos e Svoboda à revelia, logo nos primeiros dias de manifestações – quanto com a realidade pós-Euromaidan: nas eleições de maio de 2014, convocadas graças ao movimento, Klitschko foi eleito com 57% dos votos ao cargo de prefeito de Kiev.

Os provocadores da Berkut

Em certa ocasião, os manifestantes do Euromaidan decidiram se dirigir ao Palácio Presidencial, em Kiev, até serem bloqueados por uma fileira da tropa Berkut – uma tropa especial do governo. Alguns militantes ligados ao partido ultranacionalista Svoboda e ao grupo neonazista Assembléia Social Nacional (ASN) entraram em confronto com a polícia. No documentário da Netflix, no entanto, foi dito que os militantes de extrema-direita eram “provocadores da Berkut.”

Em artigo no Foreign Policy se reconhece que: “A Ucrânia é lar do Svoboda, sem dúvidas o movimento de extrema-direita mais influente da Europa hoje. O líder do partido, Oleh Tyahnybok, está oficialmente reclamando que seu país é controlado pela “mafia moscovo-judia”, enquanto que seu representante ridicularizou a estrela do cinema ucraniana Mila Kunis ao chamá-la de “judia suja.” Neonazistas que combatem a “máfia moscovita” colaborando com um governo pró-Rússia. Improvável.

De fato, grupos de extrema-direita tiveram participação ativa no Euromaidan, tanto nas unidades de defesa do movimento quanto na ocupação de prédios. Posteriormente, o famigerado Batalhão Azov combateria os rebeldes do leste, sob contrato do Ministério de Assuntos Internos da Ucrânia. Diversos membros do batalhão, que combateram no aeroporto de Donetsk, seriam depois homenageados pelo Presidente Poroshenko – incluindo o notório neonazista bielorusso Serhiy Korotkykh.

Snipers da Berkut

Talvez um dos pontos mais problemáticos do documentário seja a narrativa completamente parcial e irresponsável construída sobre os eventos de 18 a 20 de fevereiro. Nestas datas, pelo menos 90 pessoas – incluindo cerca de 20 policiais – foram baleados por atiradores. Até hoje, não se sabe ao certo quem foram os responsáveis pelas mortes, e a desconfiança de que os assassinatos foram parte de uma operação de falsa bandeira é crescente.

De acordo com uma matéria da BBC, publicada em fevereiro do ano passado, um manifestante identificado como “Sergei” disse ter atirado em policiais durante o Euromaidan, do topo de um prédio em Kiev.

Já durante uma conversa telefônica após sua visita a Kiev, o Ministro de Relações Exteriores da Estônia, Urmas Paet, disse à representante da UE para Relações Exteriores, Catherine Ashton, que: “há agora um entendimento cada vez mais forte que não era Yanukovich quem estava por trás dos atiradores, mas alguém da nova coalizão.” De acordo com Paet, as balas que atingiram manifestantes e policiais eram similares, e o novo governo não tinha interesse em investigar o evento.

Ainda assim, no documentário, as tropas do governo são apontadas como as únicas responsáveis pelos assassinatos.

A anexação da Crimeia

Dentre os mais de 98 minutos do documentário, menos de um foi usado para tratar o que aconteceu à Ucrânia depois da derrubada de Yanukovich. A repressão a movimentos comunistas, a perseguição a jornalistas, e os assassinatos no leste do país foram simplesmente ignorados. Sobre a Crimeia, só nos dizem que a Rússia a anexou.

Talvez fosse relevante dizer que o território foi concedido à Ucrânia em 1954, pelo ex-Presidente da União Soviética, Nikita Krushev e que, como resultado, os russos étnicos ainda hoje são maioria na região – representando cerca de 51% da população regional. Ainda assim, 96% dos habitantes da Crimeia votaram para que aderissem à Rússia. A preferência da população foi reafirmada em pelo menos mais duas ocasiões.

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