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A esquerda francesa em tempos de Macron

“Em suma, a social-democracia francesa tem um futuro de decisões urgentes. E, sem dúvida, essas decisões serão caras e não fáceis de tomar.”
por Mariano Schuster | Nueva Sociedad – Tradução de Gabriel Deslandes
(Foto: Lorie Shaull)

O jornalista e analista Enric Bonet, correspondente em Paris para Contexto (CTXT) e o jornal espanhol Público, comenta a crise das esquerdas na França nesta entrevista à Nueva Sociedad. Macron ficou com tudo?

Mariano Schuster: O recente triunfo de Macron nas eleições legislativas e os fracos resultados do Partido Socialista e da França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon parecem deixar um quadro difícil para a esquerda. Contudo, o presidente Emmanuel Macron também está promovendo uma série de políticas de austeridade e uma nova reforma trabalhista nessa direção. Isso pode levar à sua perda de apoio. Como você vê a situação da esquerda nesse panorama?

Enric Bonet: Acho que a análise é bem interessante. Nos resultados do Legislativo, o que se observa à primeira vista é que a esquerda está em uma situação muito fraca. Conta apenas com cerca de 39 deputados socialistas (o menor resultado do Partido Socialista francês na história da Quinta República) e uma representação pouco importante (embora maior que a de 2012) da França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon e os comunistas.

O que deve ser levado em consideração é que o Partido Socialista está parcialmente dividido. Uma parte dos parlamentares apoia Macron ou se abstém, e outros votarão contra ele. Penso que essa fraqueza parlamentar não expressa uma fraqueza real. Ou seja, não é expressa na rua. Nas eleições presidenciais, Mélenchon poderia ter alcançado o segundo turno, obtendo o melhor resultado de um partido à esquerda do Partido Socialista desde 1969. Esse resultado não se refletiu nas eleições legislativas em parte devido à abstenção.

No fundo, o que se revela é que, na França, existe uma esquerda, mas essa esquerda não se vê refletida no Parlamento. Isso pode fazer com ela se expresse em movimentos extraparlamentares. Algo similar (ainda que com características diferenciadas) ao que aconteceu na Espanha em 2011 com o movimento dos indignados, em que os movimentos sociais e cidadãos que se opuseram a uma série de políticas expressaram seu descontentamento popular, mas sem representação política alguma no Parlamento do país. É preciso ver o que acontecerá à medida que o presidente Emmanuel Macron dá seus primeiros passos. Até agora, ficou claro que pretende aplicar uma nova reforma trabalhista e um novo orçamento que provavelmente seguirá linhas de austeridade muito fortes. Será necessário ver se haverá oposição ou não a ela. À esquerda, pelo menos, com as pessoas com quem tenho falado, eles são um pouco céticos a esse respeito. A legitimidade de Macron, até o momento, ainda é alta devido à sua eleição recente. Portanto, não está claro se haverá uma oposição retumbante na rua ou no Parlamento, mas o que é inegável nessa fase é que existe e seguirá existindo uma França de esquerda para além do desencanto.

Mariano Schuster: A imagem de Macron parece estar marcada por uma era que se destina a ser pós-ideológica. Suas idéias são apresentadas como as de um cosmopolitismo europeu combinado com políticas de liberalismo de mercado no campo econômico, mas também com preocupação com a política social. Com o começo dos cortes e da reforma trabalhista, essa imagem pode mudar, e a percepção de Macron passará de um personagem que freia a extrema-direita para um que abre as portas a ela?

Enric Bonet: A princípio, creio que podemos apontar uma diferença importante entre Hollande e Macron para entender melhor o personagem. No período de Hollande existia a oposição clássica, isto é, da direita republicana. A geometria parlamentar durante seu período era a clássica: uma maioria socialista com o apoio dos verdes e uma ampla oposição de direita. Essa direita – e não a Frente Nacional – é a que está ganhando as sucessivas eleições (exceto europeias) durante os cinco anos de mandato de Hollande. O grande problema da Frente Nacional durante o período Hollande – e que provavelmente continuará tendo por muito tempo – é o sistema eleitoral. Em um sistema eleitoral de dois turnos, é difícil vencer por causa do medo que ainda gera. Eu acho que isso pode continuar durante os anos de Macron. No entanto, considero que é importante marcar a diferença entre os períodos Macron e Hollande. Agora, embora a direita francesa tradicional siga sendo a primeira força da oposição, é muito mais fraca do que no passado. E aqui há um ponto importante. Para essa direita, é muito difícil se opor a Macron porque, finalmente, o primeiro-ministro pertence ao campo da direita republicano. Temos, então, uma direita clássica que afirma que deseja estar na oposição, mas a que custará muito se opor a políticas que, de fato, são suas. Ou seja, políticas como a reforma trabalhista e orçamento austero. Nesse sentido, Macron é o último cartucho do sistema político, mas, para alcançar o poder, teve que “queimar sua cozinha”, ou seja, acabar com o sistema bipartidário. Por enquanto, na França, apenas Macron permaneceu. No Parlamento, isso é demonstrado com seus próprios parlamentares, mas também com aqueles que prestarão seu apoio tanto a partir da direita, como do Partido Socialista.

Dito tudo isso, é conveniente relativizar a possibilidade de que isso cause um deslizamento rumo à Frente Nacional. Deve-se lembrar que Le Pen não tem hoje apenas uma fraqueza parlamentar. Sua participação nos debates presidenciais nos dois turnos e sua campanha foi ruim. Enquanto, em fevereiro, as pesquisas indicavam 30% das intenções de votos para ela, terminou no final com 22%. Embora as pesquisas não mostrem a totalidade da realidade, elas expressam uma queda diretamente ligada à sua campanha. Por outro lado, o fenômeno interessante foi a emergência de Mélenchon, alcançando 20% dos votos. Nesse sentido, será necessário observar se a Frente Nacional conseguirá se reerguer após essa grande derrota e se Mélenchon será capaz de estruturar uma nova oposição à esquerda, o que dificultaria as possibilidades da Frente Nacional. De fato, agora a Frente Nacional está em uma crise existencial. Seus membros não sabem se devem ir ainda mais para a direita ou, em vez disso, apostar mais na estratégia populista de reivindicar o povo e os elementos nacionais contra o europeísmo de Macron.

Mariano Schuster: O que se passa com o sistema partidário? Em Marcha do Macron não é exatamente um partido. Nem a França Insubmissa de Mélenchon. E o Partido Socialista está cada vez mais enfraquecido. Onde estará todo o sistema partidário no governo Macron? Será que haverá novos líderes fortes que substituirão os partidos tradicionais e podemos registrar a “macronmania” nesse quadro?

Enric Bonet: Penso que isso é muito importante porque nos permite pensar sobre o momento específico que viva a França. Na verdade, quando falamos sobre Macron, devemos lembrar que seu apoio eleitoral é baixo. É bastante inferior ao que Hollande tinha. Entretanto, a “macronmania” (a idéia do homem novo de 39 anos, jovem prodígio que conseguiu vencer a Le Pen) bateu forte. Só que se realmente levarmos em conta a contradição entre sua fraca base eleitoral e sua maioria parlamentar, devemos tender a pensar que a oposição se manifestará fora do Parlamento e não dentro dele. Não sabemos se isso ocorrerá, mas se os ajustes forem aprovados, as forças extraparlamentares desempenharão um papel importante. Além disso, acredito, pode haver o surgimento de uma nova liderança política à esquerda. Embora, é claro, eles também tentarão consolidar as novas identidades políticas que já surgiram. Em Marcha, o partido de Macron, se constituirá como partido durante esse verão, mas teremos que observar que tipo de partido será. E, por outro lado, Melénchon conta com o debate do que fazer com a France Insubmissa, que, até agora, era apenas uma plataforma eleitoral.

Mariano Schuster: O Partido Socialista está enfrentando uma das piores crises de sua história. Neste contexto, é possível pensar na possibilidade de uma guinada à esquerda para desenvolver uma espécie de “social-democracia radical” que evite que todo o seu fluxo eleitoral se transforme em votos para Melénchon ou para Macron?

Enric Bonet: A princípio, o panorama do Partido Socialista é muito confuso. Até a última eleição, o Partido Socialista havia sido governado pela ala direita ou moderada da organização. A derrota eleitoral se deve, em parte, às políticas adotadas pelo governo de Hollande e favorecidas por este setor do socialismo. Hoje, o Partido Socialista parece um Titanic que afunda e vive uma crise muito forte. Trata-se de um partido que deixou de ser governo (e não se deve esquecer que muitas pessoas estavam nele para obter posições de poder e executar políticas) e que não sabe exatamente para onde ir. Agora, parece que o setor mais mobilizado é o da esquerda do partido. Mas agora, em 1º de julho, Benoît Hamon – o ex-candidato presidencial – criou um novo movimento e deixou a festa. Seu novo movimento inclui parte das posições da esquerda socialista que tendem a preocupar-se com questões ecológicas e na possibilidade de uma renda básica universal e que pensam em uma unidade com outras forças da esquerda política francesa.

Contudo, no caso específico do Partido Socialista, pode haver uma renovação importante que leve a uma série de alianças pela esquerda. Porém, também pode haver uma solução de “síntese” na qual os setores mais moderados e os setores mais à esquerda se unifiquem, e isso evitaria possíveis acordos com movimentos como a França Insubmissa de Melénchon. Deve-se também notar que quem é muito relutante em acordos com o Partido Socialista é o próprio Mélenchon. Na verdade, ele considerou o partido como parte da “política antiga” e do passado. Em suma, a social-democracia francesa tem um futuro de decisões urgentes. E, sem dúvida, essas decisões serão caras e não fáceis de tomar.

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