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Tribalismo e Islã: Somália no labirinto

No dia 12 de abril de 2017 os Estados Unidos mobilizaram oficialmente tropas na Somália pela primeira vez em 23 anos, sob os auspícios de AFRICOM.
por Angel Marrades | Descifrando la Guerra – Tradução de Gabriel Deslandes
AU-UN IST PHOTO / STUART PRICE

No dia 12 de abril de 2017 os Estados Unidos mobilizaram oficialmente tropas na Somália pela primeira vez em 23 anos, sob os auspícios de AFRICOM em uma missão no Chifre da África (CJTF-HOA) para combater o grupo islamista al-Shabaab e seu rival na jihad, o Estado Islâmico. Ambos provocaram um racha em grupos islâmicos locais, entre os partidários da jihad global e aqueles que preferem se concentrar em ações limitadas na região. Tudo isso coincide com uma nova crise humanitária que se manifesta no país, resultado de secas que já provocaram o deslocamento de milhões de pessoas. Para entender as causas, devemos voltar para o passado recente da Somália.

Independência, bloco soviético e interferência americana

Em 26 de junho de 1960 a Somália britânica alcançou a independência. Cinco dias depois, a Somália italiana faz o mesmo, e ambas se fundiram em um único Estado, a República da Somália. No entanto, a independência da nova nação não conseguiu melhorar os padrões de vida à medida que a economia se deteriorava e o Estado entrava em colapso. Muhammad Siad Barre, general-maior do exército, influenciado pelas ideias marxistas durante seu treinamento com o Exército Soviético, dá um golpe em 21 de outubro de 1969, aproveitando o vácuo de poder que existia após o assassinato do presidente Abdirashid Ali Shermarke pelas mãos de um guarda-costas.

Após o sucesso do golpe, Barre estabeleceu relações com a União Soviética, que conseguiram melhorar a economia, modernizar o país e criar provavelmente o exército mais poderoso da África, mas Barre tomou uma série de decisões que não satisfizeram a URSS:

Internamente, não desenvolveu um único partido marxista-leninista e permitiu uma pequena presença do setor privado na economia. Além disso, uma das decisões mais importantes foi incluir preceitos corânicos nas teses socialistas para conquistar o setor religioso, mas impedindo o clero de interferir nas estruturas do Estado, que reprimiu com dureza em cada intromissão. Esse socialista tolerante com o Islã não agradou os soviéticos. Então, Barre se voltou para as teses maoístas, provocando uma cisão com a URSS.

Entretanto, esses não foram os únicos desentendimentos, já que os Estados Unidos aproveitaram essas discrepâncias para, em plena Guerra Fria, obter o controle do Mar Vermelho, atraindo sua influência para a República da Somália. Junto à Arábia Saudita, pressionaram Barre e o financiaram para que negasse à URSS colocar uma base de mísseis em Berbera, expondo a soberania somali. Enquanto isso, Barre financiou com o apoio americano a ELF (Frente de Libertação da Eritreia) contra a República Popular Democrática da Etiópia e URSS. Essas ações o levaram a uma aproximação às monarquias do Golfo Pérsico, com as quais Barre estreitou laços diplomáticos e culturais e posteriormente, em 1974, ingressou o país na Liga Árabe, causando o distanciamento do Bloco Soviético que culminaria na ruptura com a guerra de Ogaden.

Guerra de Ogaden

Influenciado pelas ideias nacionalistas de uma Grande Somália que se estendia por todo o Chifre de África, incluindo Djibouti, o distrito nordeste do Quênia e a região etíope de Ogaden, levaria a cabo a invasão da Etiópia, enfraquecida por um golpe de Estado marxista-leninista em 1974 contra o imperador Haile Selassie e imersa em revoltas das quais não havia se recuperado. Com o apoio dos movimentos nacionalistas somalis em Ogaden, a invasão e ocupação do território foram fáceis, colocando rapidamente em xeque o governo militar.

A grave situação levou a URSS a tentar negociar um cessar-fogo, mas, depois de não conseguirem, decidiram apoiar a Etiópia, enviando conselheiros soviéticos, 15 mil soldados cubanos e dois mil da República Democrática do Iêmen (Iêmen do Sul). Apesar da resistência somali em 1978, a ofensiva etíope-cubana expulsou a Somália de Ogaden. Os grupos nacionalistas somalis de Ogaden continuaram a resistência, enquanto a Somália e a Etiópia cessavam as hostilidades.

Clãs e Islã

Embora a Somália seja étnica e culturalmente homogênea, o país é formado por uma sociedade tribal na qual seis tribos principais são divididas em dezenas de clãs poderosos, que dividem a população politicamente. O território foi polarizado por esses clãs nos períodos anteriores ao colonialismo, o que marcou a relação da sociedade civil com as potências coloniais.

Os clãs se baseiam na filiação paterna ou materna, mas devido à alta taxa de natalidade, eles tendem a crescer demais, o que leva ao surgimento de subclãs e linhagens que formam confederações por meio de um contrato tradicionalmente oral.

No entanto, o papel tradicional do Islã permaneceu fora da arena política, aplicando a sharia apenas no âmbito familiar, enquanto que, entre os clãs, aplicava-se a lei tradicional, o contrato dado entre os grupos. Isso mudou radicalmente, com o retorno de estudantes ao país que tinham bolsas de estudos em universidades egípcias e sauditas, que trouxeram as ideias da Irmandade Muçulmana e o wahabismo. Assim, o Islã começa a desempenhar um papel central na política, criando grupos que serão as sementes dos futuros pan-clanismo de linha jihadista.

A tentativa de Siad Barre de criar o nacionalismo pan-clânico, mantendo as ideias do socialismo científico ao lado de uma espécie de Islã moderado, certamente era complicada. Para evitar que o Islã se radicalizasse, o mais fácil era usar os clãs ou a repressão estatal. Para derrubar a estrutura tribal tradicional, uma política pan-clanista foi aplicada. Essas medidas, no entanto, acabaram favorecendo a união de grupos salafistas, como Wahdat al-Shabaab al-Islaamiyya ou al-Jama’a al-Islamiyya.

A queda de Siad Barre

A derrota na Guerra de Ogaden deixou Siad Barre em maus lençóis e, em abril de 1978, um grupo de oficiais do clã Majeerteen pertencente à tribo Darood promoveu uma tentativa de golpe, posteriormente reprimida com dureza. Para realizar as perseguições a seus rivais, Barre se valeu de sua unidade de elite, os Duub Cas (Boinas Vermelhas), composto pelo clã Mareehaan, também da tribo Darood, o mesmo ao qual o pertencia o presidente, e comandado por Said Morgan, afilhado político de Barre.

Yusuf Ahmed, o líder do golpe, conseguiu escapar para a Etiópia, de onde articulou um grupo de oposição armado da Frente Democrática da Salvação Somali (SSDF), que, com o apoio do movimento comunista etíope, conseguiu enfrentar o exército somali. A repressão contra a tribo Isaaq em 1988 fez com que estes pegassem em armas para criar o Movimento Nacional Somali (SNM) com apoio etíope. Os combates rapidamente aumentaram e, em 1988 a campanha de perseguição sistemática contra os Isaacs foi classificada pelas Nações Unidas como genocídio, contabilizando de 50 mil a 100 mil mortes, forçando os EUA, aliados de Barre até aquele momento, a congelar seu financiamento.

Esse isolamento o levou a realizar numerosas purgas internas contra os comandos intermediários que não lhe pareciam confiáveis, tanto no exército como entre os funcionários do governo. Erro que levaria a sua queda, já que a tribo aliada Hawiye ocupava tradicionalmente esses cargos na administração, e isso acabou os empurrando a criar o Congresso Somali Unido (USC). Os poucos leais a Barre não conseguiram lidar com três guerras simultâneas. Após a derrota dos Duub Cas em 1991, o governo entrou em colapso, e o exército abandonou o presidente; em 26 de janeiro de 1991, Siad Barre escapou de Mogadíscio. Com sua queda, cada clã tentou assumir todo o poder possível por meio de seus senhores da guerra; sendo particularmente relevante o Majeerten, que sob o SSDF, juntamente a outros subclãs da linhagem Darood, estabeleceu o Estado autônomo de Puntlândia, e os Isaaq proclamaram a independência em um Estado independente até hoje de facto: Somalilândia.

Germina a semente dos movimentos islâmicos

A derrota na guerra contra a Etiópia fez com que Barre tivesse que cortar o financiamento dos grupos nacionalistas de Ogaden, que, sem patrão, tiveram que recorrer ao financiamento saudita, o que enterra o nacionalismo e o substitui exclusivamente pelo islamismo. Esse fato, junto à chegada de estudantes islâmicos da Arábia Saudita, germina o nascimento de vários grupos islâmicos:

Al-Ittihad al-Islamiyya foi um grupo terrorista de corte jihadista criado com a fusão dos grupos islâmicos Wahdat al-Shabaab al-Islaamiyya e al-Jama’a al-Islamiyya. Com o financiamento direto dos empresários sauditas e as contribuições de Osama bin Laden, que enviou centenas de especialistas estrangeiros em jihad para capacitar os membros de clãs somalis e etíopes, principalmente para Ogaden. O grupo participou dos ataques contra a embaixada americana em Nairobi (Quênia) e desempenhou um papel importante na criação dos tribunais islâmicos que, mais tarde, formariam a União dos Tribunais Islâmicos (UTI).

Guerra civil

Com a derrota de Barre, a República mergulhou num caos do qual nunca se recuperaria. A divisão é tal que são formadas até 27 facções armadas, dentre as quais se destacam quatro:

– Congresso Somali Unido (USC), liderado por Ali Mahdi Mohamed e formado pelo clã Hawiye, aliado a SDM / SAMO / SPM, controlando Mogadíscio e a costa central e sul do país.

– A Frente Nacional Somali (SNF), liderada por Said Morgan, o “Carniceiro de Hargeysia”, composta por oficiais leais a Barre e os remanescentes do exército. O núcleo duro era o clã Mareehaan, situado na área central e sul do interior.

– Frente Democrata da Salvação Somali (SSDF), comandada por Yusuf Ahmed. A maior dela foi formada pelos Majerteen, dominando o Noroeste.

– O Movimento Nacional Somali (NMS), com Ahmad Mahammad Culaid à frente e formado pelos Isaaq e aliado à USF / DAS, dominando a metade noroeste.

Ali Mahdi Mohamed, líder político da USC, aproveitando o vácuo de poder deixado por Barre, proclamou-se presidente em 1991, anunciando um governo provisório. As facções rivais não aceitaram essa proclamação unilateral, que foi desprezada até mesmo por um grupo de seus partidários, liderados pelo general Mohamed Farrah Aidid, o que terminaria em um racha.

Em julho de 1991, Ali Mahdi conseguiu convocar uma conferência em Djibouti, onde foi eleito presidente interino por um período de dois anos, um pré-requisito para o apoio da Comunidade Internacional, e rapidamente foi reconhecido como presidente por Djibouti, Itália, Egito e Arábia Saudita. Aidid boicotou a conferência e iniciou confrontos armados que, depois de quatro meses, foram congelados com um precário cessar-fogo, no qual foram estabelecidas áreas de influência.

Os confrontos desencadearam um êxodo de pessoas do clã Daarood da vizinhança de Mogadíscio até o porto de Kismaayo, um território controlado pelos islamistas da AIAI. Diante dessa situação, Hersi ‘o Turco’, líder da organização, pediu uma ação militar. À que Aidid respondeu com contundência, derrotando os islamistas e obrigando-os a fugir para a fronteira de Ogaden.

A ONU na Somália

Em 1992, as Nações Unidas tentam acabar com o caos e, por isso, concentram-se no envio de ajuda humanitária e apoiam o diálogo, exigindo uma solução regional. Para facilitar a tarefa, impõe um embargo de armas (Resolução 733) e um cessar-fogo (Resolução 746), além de enviar Cascos Azuis da União Africana (Resolução 751). A primeira missão da ONU no terreno seria a UNOSOM I (Resolução 767). Alguns elementos da sociedade somali rejeitaram veementemente o que eles viram como uma interferência à sua soberania, agindo contra os comboios de ajuda humanitária. Aidid foi especialmente agressivo quanto às forças de paz, por vê-los como um apoio a Ali Mahdi após seu reconhecimento internacional.

O problema das forças da UNOSOM é que elas não tiveram a capacidade de tomar parte no conflito de forma direta, ao usar intermediários. A informação chegava aos senhores da guerra, e se repelia os combates rapidamente. Ante essa situação, os Estados Unidos se oferecem para liderar uma força multinacional, a United Task Force (UNITAF), também conhecido como a Operação Restaurar a Esperança, que seria aprovada em dezembro de 1992 para assumir o papel da UNOSOM I, dada a sua ineficiência (Resolução 794). Essa missão seria capaz de realizar ataques de manutenção da paz sob os auspícios do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas e servirá de transição até a adoção da UNOSOM II em maio de 1993 (Resolução 814).

O assassinato de 24 soldados paquistaneses foi o álibi para iniciar um pedido de captura de Aidid pela ONU (Resolução 837). Uma vez aprovada, soldados italianos, canadenses e americanos, entre outros, iniciaram ações armadas contra seu clã, atingindo o clímax na 1ª Batalha de Mogadíscio, que consistia em capturar Aidid e seus tenentes enquanto estivessem reunidos. As forças especiais falharam, e a missão se tornou um desastre retratado no famoso filme “Black Hawk Demolished”.

As imagens retransmitidas pela CNN, mostrando soldados estadunidenses sendo arrastados pelas ruas de Mogadíscio, culminaram no fulminante anúncio do presidente Bill Clinton de retirar as tropas dos EUA do território da Somália. A partida dos EUA entrou em vigor em 3 de março de 1994 e, após a Resolução 954 em novembro, a UNOSOM II foi dissolvida em 31 de março de 1995, deixando fora da Somália toda a força da ONU.

Em junho de 1995, Farrah Aidid se proclama presidente, mas o segundo homem em comando, Ali Atto, se rebela contra essa decisão, aliando-se a Ali Mahdi, e conseguem matá-lo. Seu clã elege seu filho Hussein Farrah Aidid como o novo líder. Ele emigrou para os EUA em 1981 com 17 anos e pertencia aos marines em 1987, quando serviu na Somália na Operação Restaurar a Esperança como tradutor, o que bastou para ser considerado um traidor pela sociedade somali. Aos 30 anos, ele acatou o chamado de seu clã e, depois de conversações com a ONU e o Governo de Transição, assinou a Declaração do Cairo renunciando ao título de presidente em 1997, e Ali Mahdi e ele formaram um plano de paz compartilhando o poder em Mogadíscio.

Com a Conferência de Paz de Djibouti, realizada em 20 de abril de 2000, foi decidido criar um Governo Nacional de Transição. Após várias divergências em 2004, foi realizada a Conferência de Nairobi, na qual foi acordado um Governo Federal de Transição. O Parlamento elegeu, nesse caso, Yusuf Ahmed, que havia tentado dar um golpe contra Barre e, naquele momento, era presidente do Puntlândia.

AIAI cresce à sombra da ONU

Durante o período em que a ONU lutou contra os senhores da guerra e principalmente contra Aidid, Al-Ittihad Al-Islamiyya se beneficiou apoiando os esforços da UNOSOM para ganhar terreno e influência sobre mais clãs.

O grupo forneceu escoltas de segurança para a operação. Em troca, recebeu grandes pagamentos pelos serviços prestados. Quando a UNOSOM deixou o país, havia deixado uma rede de empresários e ONGs para ajudar na reconstrução, que os islamistas controlaram com facilidade. Com isso, deixaram de ser quase exterminados por Adidi para contar com um grande poder militar, religioso e econômico. Utilizaram esse poder para oferecer seus serviços aos clãs que procuravam estabilizar sua zona. Em troca, reservavam-se na autoridade de estabelecer tribunais de sharia, que atuariam como suporte legal. Os tribunais islâmicos se estabeleceram em Mogadíscio, na zona controlada por Ali Mahdi.

O surgimento dos tribunais islâmicos

Em 2000, apesar da criação do Governo Federal de Transição, a anarquia reinava no país com tal virulência que, em sua maior parte, havia um esforço a governar a partir de Nairobi (Quênia). A falta de instituições estatais levou os tribunais islâmicos a se tornarem a autoridade da sociedade. Sua expansão foi exponencial a cada ano e, aproveitando seu elemento estabilizador, converteram-se no principal sistema judicial do país. Com o tempo, assumiram novas competências em educação, saúde ou polícia local. Os empresários locais também solicitavam seus serviços para fornecerem cobertura para poder se desenvolverem.

Os tribunais eram independentes uns dos outros e eram até contraditórios, porque cada um aplicava a lei da sharia a partir de uma interpretação mais ou menos estreita. Quando eles estiveram conscientes de sua força individual, viram a oportunidade de fazer a diferença juntando forças, formando no mesmo ano a União dos Tribunais Islâmicos (UTI), uma ferramenta que também desativava o monopólio tribal. Em 2004, escolhem um líder: Sharif Sheikh Ahmed.

Ahmed reforma a estrutura da UTI para criar um proto-estado que tenha a possibilidade de administrar a vida cidadã somali, além de ter uma clara divisão de poderes delimitada. O Tribunal Supremo Islâmico, presidido pessoalmente por Sharif Sheikh, é responsável pelas questões mais amplas, pelas relações com outros grupos e o comando das Forças Armadas. Um conselho consultivo da Shura, presidido por Hassan Aweys, aprova as decisões tomadas pelo Tribunal Supremo Islâmico. Por debaixo, estão os Tribunais Regionais responsáveis ​​pelos assuntos civis e a vida cotidiana. Aden Ayro ocupou o braço militar, Harakat al-Shabaab (Movimento dos Jovens).

Sharif Ahmed afirmava que seus objetivos eram restaurar a ordem depois de anos de violência, trazer justiça social e combater a injustiça, ainda que suas duas grandes obsessões fossem a partida das tropas estrangeiras e a implementação da sharia como principal fonte de lei. Uma das grandes vitórias que podem ser atribuídas a ele é a redução e quase destruição da pirataria. Isso se deve a dois fatores de melhora na qualidade de vida: aumento de oportunidades de emprego e patrulhamento das costas, evitando a pirataria local e a exploração estrangeira de recursos pesqueiros.

O retorno à guerra

Em 2006, a UIC iniciou sua ofensiva militar, frente a qual os senhores da guerra criaram a Aliança para a Restauração da Paz e contra o Terrorismo (ARPCT) e aproveitaram o medo de Washington de que a al-Qaeda se espalhasse pelo país, para receber financiamento da CIA. Após a segunda batalha de Mogadíscio, os tribunais controlam a cidade, restauram a ordem e reabrem o aeroporto internacional e o porto, fechado desde 1995, também se expandindo pela metade do território nacional.

Diante da ameaça, a Etiópia intervém no país apoiando o Governo Federal de Transição e, apesar do apoio da Eritreia na forma de suprimentos, armas, conselheiros e financiamento aos islamistas, estes são derrotados pelos etíopes. Após a derrota, os tribunais se dissolvem, e a maioria dos seus líderes concorda com uma representação no congresso e um roteiro. Sharif Ahmed seria anistiado e, em 2009, eleito como novo presidente, já que era visto como uma figura de reconciliação e estabilidade.

Nasce o al-Shabaab

Um conglomerado de membros da UTI vê o acordo de Sharif Ahmed como uma traição, levando sua ala militar a se separar e se fundir com grupos islâmicos independentes, fundando o grupo fundamentalista de Harakat al-Shabaab al-Mujahideen (Movimento dos Jovens Combatentes Muçulmanos), sob a liderança de Ali Zubeyr ‘Godane’. Em 2012, juraram lealdade à al-Qaeda – embora o relacionamento já tenha vindo de longe – estreitaram laços com o Iêmen e sua filial da al-Qaeda na Península Arábica (AQAP). Graças a essa aliança, obteria um maior financiamento a partir do exterior e de combatentes mujahideens estrangeiros.

Esse grupo não busca simplesmente o estabelecimento de um Estado somali islâmico ou da grande Somália, mas deseja um califado islâmico no Chifre de África, ameaçando toda a região. Para isso, golpeiam como uma guerrilha, transpassando as fronteiras de todos os países vizinhos, atacando o Quênia, Etiópia e Djibouti. Além disso, modernizou seus conhecimentos e seus métodos de recrutamento a frente de seus rivais, começando a usar redes sociais como o Twitter ou publicando vídeos elaborados através de sua agência al-Katāi’b.

Desde 2007, a União Africana se estabeleceu na Somália como um apoio ao Governo Federal de Transição, mobilizando tropas de Uganda, Burundi, Quênia, Etiópia e Djibouti sob a missão da AMISON. Sua principal tarefa é manter a paz e deter o grupo terrorista, o que tem gerado represálias como atentados em lugares distantes, como a Universidade de Garissa (Quênia), onde assassinaram 151 pessoas por não serem muçulmanos, ou em Uganda, matando 78 pessoas por estarem assistindo à Copa do Mundo. Esses atentados levaram o Quênia a iniciar a Operação Linda Nchi, que culminou em 2012 com a expulsão de jihadistas de várias cidades, incluindo Baidoa e parte de Mogadíscio.

Em 2015, al-Shabaab teve que enfrentar o racha pela liderança da Jihad global entre a al-Qaeda e o Estado Islâmico. Apesar dos repetidos pedidos de lealdade ao ISIS, Ahmad Umar, seu novo líder, rejeitou a oferta e perseguiu qualquer dissidência; até que várias deserções do grupo jurassem lealdade a Baghdadi sob o nome de Estado Islâmico na Somália, instalando-se na região de Puntland, longe da influência do braço principal da al-Shabaab.

Por enquanto, a jihad somali opta pela al-Qaeda. Para estabelecer uma comparação, o ISIS tem uma força precária de 300 combatentes. A al-Shabaab, no entanto, conta com cerca de nove a sete mil combatentes.

Estados Unidos tropeçam na mesma pedra novamente

Dada a situação no Chifre de África e após a eleição de Donald Trump, as forças especiais dos EUA foram deslocadas para o país africano com a intenção de acabar com grupos terroristas da região. Isso se enquadra na visão política da nova administração da Casa Branca acerca da luta contra o jihadismo, em que os comandantes militares têm mais liberdade de ação. Junto a essa implantação, cabe destacar duas ações tomadas pelos Estados Unidos: o renovado veto à imigração, em 25 de setembro de 2017, que inclui a Somália, e a celebrada reunião com o primeiro-ministro Hassan Ali Khayre, que reafirmou o apoio dos EUA para derrotar o al-Shabaab e ISIS.

Conclusões

A Somália não é a única ameaçada. O problema ultrapassa suas fronteiras. As células de futuras organizações jihadistas são plantadas em torno da África Oriental, tanto no Chifre de África como na região dos Grandes Lagos, com forte presença cristã, terreno fértil para gerar polarização entre a população.

Esses fatores, somados à crise humanitária na região, sem dúvida, gerarão um boom no extremismo islâmico. Já em 2011-2012, uma crise semelhante a essa deixou milhões de pessoas deslocadas, a maioria dos animais mortos e metade da população da Somália passando fome, resultando em um aumento significativo no recrutamento para as fileiras de al-Shabaab. Uma situação semelhante seria catastrófica e poderia piorar se a epidemia de cólera no Iêmen se espalhar para o país. As ONGs e aqueles que geralmente fornecem ajuda humanitária ao país também devem ter cuidado, já que tanto na década de 1990 como em 2011 ela foi parar nas mãos dos grupos jihadistas, que a utilizam para extorquir a população.

A pirataria é outro fator de risco. As áreas costeiras devem ser tomadas da insurgência, e deve ser criado um grupo da Guarda Costeira para lidar com piratas regionais e com empresas e países que pescam ilegalmente nas águas do país ou despejam resíduos tóxicos em troca de subornos a políticos.

Esses problemas exigem uma solução regional envolvendo todos os países vizinhos para fornecer uma solução sustentável e duradoura. Por sua vez, se os Estados Unidos quiserem resolver o conflito e criar um país com capacidade para se desenvolver, capaz de enfrentar os extremistas, a solução militar não é suficiente. A Somália deve desenvolver infra-estruturas, explorar os seus recursos, ter um controle efetivo sobre o seu território terrestre e marítimo e, o mais importante, oferecer saídas à sua população como os meios sociais necessários para criar expectativas de vida dignas.

Enquanto isso, a Somália permanecerá presa no labirinto.

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