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Argentina: a sombra do FMI se estende pela América Latina

Com Macri, na Argentina, o FMI retorna à América Latina, embora na realidade nunca tenha saído.
por Lucía Converti e Sergio Martín Carrillo | Resumen Latinoamericano – Tradução de Gabriel Deslandes
(Foto nahuel Padrevecchi-gv/GCBA.-)

Em mensagem televisionada, o presidente argentino, Mauricio Macri, anunciou o retorno de seu país à mesa de negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Sua retórica de “voltar ao mundo”, que tinha tanto significado eleitoral, finalmente desmoronou. Apesar da humilhação ante os fundos abutres e suas boas palavras, a “chuva de investimentos” nunca chegou, e a seca no financiamento se agudizou. Os argentinos vivem um flashback e voltam para lembrar os temores banidos graças às políticas econômicas aplicadas pelos governos que precederam Macri. O FMI retorna à América Latina, embora na realidade nunca tenha saído.

América Latina, o FMI e a insistência em um casamento fracassado

Após a entrada em vigor do FMI em 1945, a região da América Latina aderiu maciçamente ao organismo internacional. Apenas dois países foram retardatários: o Haiti, que entrou em 1953; e a Argentina, que entrou em 1956. Desde então, as relações entre os diferentes países e a agência sediada em Washington passaram por diferentes etapas, em que o número de acordos, o montante do financiamento e as condicionalidades em relação às reformas foram se modificando. Da mesma forma, as relações com um ou outro país variaram ao longo dos anos e, embora na primeira década do século XXI a presença do FMI tenha sido a de testemunha, a verdade é que nunca desapareceu por completo de alguns países de região.

Como mostrado na Tabela 1, os beneficiários dos empréstimos variaram significativamente ao longo dos anos, atingindo o seu pico no período entre 1989 e 2002. Subsequentemente, os desembolsos foram diminuindo, principalmente devido a mudanças a orientação da política econômica da maioria dos países da América do Sul, sendo o último período (2008-2015) dominado por pequenos países caribenhos.

No entanto, para deixar claro que a presença do FMI era contínua, é necessário destacar que, segundo os dados de Nemiña e Larralde (2018), o Fundo Monetário Internacional aprovou créditos entre 2009 e 2015 na região para um número recorde US$ 342,987 milhões, sendo este número direcionado quase que inteiramente a dois países tradicionalmente ligados às políticas de Washington – México e Colômbia. Entre ambos os países, eles respondem por 98% dos compromissos do período e parecem agora ser acompanhados pela Argentina.

Tabela 1 – Desembolsos acumulados pelo FMI na região por períodos (em milhões de dólares constantes de 2010)

Fonte: Nemiña, P. e Larralde, J. (2018). Etapas históricas da relação entre o FMI e a América Latina (1944-2015)

O principal fator que fez com que a relação entre o FMI e a América Latina fosse estreitada – em termos históricos – é a restrição externa à qual as economias latino-americanas estão recorrentemente sujeitas. A chamada “divisão internacional do trabalho” colocou a região na periferia da economia mundial, especializada na exportação de matérias-primas e na importação de produtos processados. Devido à deterioração dos termos de troca dos países exportadores de matérias-primas, no longo prazo ocorrem crises na balança de pagamentos, o que força a região a buscar financiamento externo. As opções são várias; contudo, desde a segunda metade do século XX, o papel desempenhado pelo FMI tem sido crucial e acordos assinados entre o FMI e os países da região têm sido regulares, ainda que diferenciados de acordo com as fases de orientação econômica da região – como pode ser visto na Tabela 2.

Tabela 2. Acordos assinados para o período e desembolsos médios anuais e por acordo.

Fonte: Nemiña, P. e Larralde, J. (2018). Etapas históricas da relação entre o FMI e a América Latina (1944-2015)

 

Em termos de política econômica, o mais importante é que o financiamento concedido pelo FMI seja acompanhado de condicionantes estabelecidas pelo próprio organismo. Desde a década de 1970, estas reforçaram o papel do mercado e do setor privado diante das medidas anticíclicas promovidas pelo setor público. O contínuo fracasso delas não alterou a orientação das exigências do fundo, e eles continuam a aplicá-las quando um país (como ontem, a Argentina) solicita financiamento.

Embora o interesse possa ser inferior a outras fontes de financiamento, as condições políticas, econômicas e sociais são o que realmente impedem as capacidades futuras de cumprir o cumprimento das obrigações, e dão rédea livre à expansão do poder econômico do setor privado (privatização dos sistemas previdenciários, privatização da educação e da saúde, reformas trabalhistas que buscam baratear as forças de trabalho, redução da presença do Estado nos setores econômicos estratégicos, etc.).

A reunião (traumática) do FMI e da Argentina

Segundo Macri, o apelo para iniciar negociações com o FMI busca “equilibrar o desastre que deixaram a nós em nossas contas públicas”. Segundo os dados, o desastre voltou com ele. Dados do Ministério das Finanças mostram que a dívida externa bruta do setor público não financeiro e do Banco Central, entre 2003 e 2015, aumentou 8%. Em contraste, somente em 2016 (últimos dados oficiais), o aumento foi de 21%. Essa mesma fonte mostra que o governo aumentou sua dívida externa em 62% entre o final de 2015 e o final de 2017, enquanto, entre 2006 e 2015, aumentou 9%[1].

Rejeitado o argumento da “herança pesada” com seus próprios números, é necessário mencionar a dinâmica que justifica – de acordo com o governo – solicitar de novo um empréstimo do FMI. Com o início da atual gestão, a regulamentação das finanças se tornou história. A bicicleta financeira retornou com todo o seu esplendor e com muitos dólares emprestados para distribuir.

O ano de 2018 freou a possibilidade de endividamento externo irrestrito. Tanto a pressão internacional sobre a acumulação de dívida pública quanto o aumento da taxa de juros do FED marcaram uma parada. Contudo, o ritmo de fuga de capitais não cessou, e a liquidação do setor agrícola foi retardada antecipando e aumentando a possibilidade de desvalorização do peso. Aquela minoria com muita capacidade de investimento financeiro viu a possibilidade de um aumento instantâneo em suas economias e começou a vender o LEBACS (letras do Tesouro) para comprar dólares, aumentando fortemente a demanda por moeda estrangeira e, portanto, o preço do dólar.

Dada esta situação, o governo decidiu intervir aumentando a taxa de juros das LEBACS para 40% e gerando assim um incentivo extraordinário para reinvestir em pesos e introduzir alguns regulamentos. No entanto, a possibilidade de desvalorização permaneceu latente, e a mudança foi iniciada com uma nova desvalorização.

As reservas não são poucas, e o risco de colapso não está próximo. Entretanto, diante dessa situação, a decisão não foi aumentar a regulamentação e cortar o ciclo financeiro, mas sim o retorno esperado[2] ao FMI, reafirmando a intenção de reproduzir o já conhecido ciclo de endividamento com uma perspectiva certa e comprovada de aumento da taxa de juros internacional que prevê a repetição da história[3].

Como mencionado acima, o acesso a esse empréstimo difere do restante do endividamento externo devido às condições impostas pela agência para sua concessão. Por essa mesma razão e dado o fracasso da implementação das políticas econômicas exigidas pelo FMI em anos anteriores, vários governos da região e do mundo decidiram cancelar sua dívida com o organismo e implementar suas próprias políticas para solucionar a crise econômica existente.

Até agora, os mandatos que condicionam o crédito de US$ 30 milhões de dólares encomendados pela Macri não foram anunciados, mas algumas especulações podem ser feitas com o último relatório sobre o país apresentado por essa agência à situação econômica argentina[4]:

  • Reduzir o déficit fiscal mais rapidamente do que o programado;
  • Fazê-lo reduzindo os gastos públicos, especialmente em salários, pensões e transferências sociais;
  • Aplicar uma âncora fiscal e mecanismos de execução mais rigorosos;
  • Eliminar os impostos “distorcidos” em uma reforma tributária que sacrifique as receitas fiscais ao custo do suposto crescimento futuro maior;
  • “Assinalaram que o aumento da produtividade e o crescimento de longo prazo exigiriam uma redução mais acelerada das tarifas de importação, a eliminação da maioria das licenças de importação, a eliminação das barreiras ao investimento e a entrada de empresas e medidas para impulsionar a concorrência interna”[5].

Foi mencionado que o FMI mudou porque as recomendações não serão as mesmas que levaram a Argentina e outros países a entrarem em colapso. Porém, reproduzimos aqui a tradução de um fragmento do relatório publicado em maio de 2001[6], sete meses antes da grande crise que sacudiu a Argentina, que diz tudo: “Essas iniciativas incluem os recentes passos para reverter a deterioração no cumprimento tributário, racionalizar e reformar a administração pública, abordar a solvência do sistema previdenciário, bem como liberalizar o regime comercial. O progresso rápido e sustentado nessas áreas será fundamental para um sucesso duradouro do programa”.

Fontes:

[1] – https://www.minhacienda.gob.ar/datos/ Setor externo.

[2] – http://www.celag.org/cambiemos-o-volvamos-la-politica-de-endeudamiento-externo-en-argentina-por-lucia-converti/

[3] – http://www.celag.org/el-impacto-de-la-subida-de-la-tasa-de-interes-estadounidense-en-una-region-endeudada/

[4] – http://www.imf.org/en/News/Articles/2017/12/29/pr17524-imf-executive-board-concludes-2017-article-iv-consultation-with-argentina#_ftn1

[5] – Tradução textual do relatório mencionado acima.

[6] – http://www.imf.org/en/News/Articles/2015/09/29/18/03/nb0144

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