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China: Breve história da superação econômica

De forma totalmente implausível, algumas vezes é argumentado que o sucesso da China foi obtido meramente graças ao “pragmatismo”, alcançado sem teorias econômicas gerais.
por John Ross* | Learning from China – Tradução de Gabriel Deslandes
(Foto: Brücke-Osteuropa)

Em 22 de agosto de 2014, foi celebrado o 110º aniversário do nascimento de Deng Xiaoping. Incontáveis conquistas asseguraram a Deng Xiaoping uma posição importante na história da China – seu papel na formação da República Popular da China; sua firmeza durante a perseguição da Revolução Cultural; depois de voltar ao poder, sua atitude extraordinariamente equilibrada em busca do desenvolvimento chinês na história recente; seu papel completo na liderança do país depois de 1978. Porém, uma conquista garante a ele uma posição hegemônica entre um minúsculo grupo de pessoas, não só entre os chineses, mas também na história mundial. Foi a extraordinária conquista econômica da China após o começo das reformas em 1978, e o papel decisivo que elas desempenharam não apenas na melhoria dos padrões de vida do povo chinês, mas também no renascimento do país. Tão grande foi seu impacto que é possível afirmar que elas alteraram não apenas a China, mas o mundo.

O desempenho econômico da China após o início de suas reformas em 1978 simplesmente excedeu a experiência de qualquer outro país da história da humanidade. Para dar apenas uma lista parcial:

  • A China alcançou o crescimento mais rápido de uma grande economia em toda a história mundial.
  • A China experimentou o crescimento mais rápido nos padrões de vida do que qualquer outra grande economia.
  • A China retirou 620 milhões de pessoas da pobreza, segundo padrões internacionais.
  • Medido em preços internacionalmente comparáveis, ajustados pela inflação, o maior crescimento da produção econômica em um único ano em qualquer país havia sido dos EUA em 1999, que somou US$ 567 bilhões, até que, em 2010, a China alcançou US$ 1,126 bilhão – o dobro dos EUA em 1999.
  • Durante o início do rápido crescimento da China, 22% da população mundial estava dentro de suas fronteiras – sete vezes a população dos Estados Unidos no início de seu próprio desenvolvimento econômico.

De forma totalmente implausível, algumas vezes é argumentado que esse sucesso foi obtido meramente graças ao “pragmatismo”, alcançado sem teorias econômicas gerais, conceitos ou uma liderança realmente entendida do assunto (particularmente sem qualquer conhecimento da economia acadêmica dos EUA!). Se for verdade, então o estudo da economia deveria ser imediatamente abandonado – se o maior sucesso econômico da história do mundo pôde ser alcançado sem qualquer entendimento do assunto, então, evidentemente, tal ensino não tem qualquer valor prático.

Na realidade, esse argumento é totalmente ilusório. A abordagem de Deng Xiaoping à política econômica era certamente muito prática em relação à sua aplicação – a famosa “não importa se o gato é preto ou branco, desde que cace os ratos”. Todavia, foi extremamente teórico em relação aos fundamentos, como mostrado claramente em suas obras “Em tudo o que nós precisamos prosseguir das realidades do Estágio Primário do Socialismo”, “Estamos realizando um empreendimento inteiramente novo” e “Aderindo ao Princípio de ‘Cada um de acordo com o seu trabalho’”. O notável sucesso prático de Deng Xiaoping foi guiado por uma base teórica claramente definida, que pode ser entendida de maneira particularmente clara em seu contexto histórico e em comparação com os economistas ocidentais e outros economistas.

Como se sabe, depois de 1949, a recém-criada República Popular da China construiu uma economia cujos elementos fundamentais foram extraídos da União Soviética. É importante entender que não havia nada de irracional nisso – a URSS, até aquele momento, tinha a economia que mais rapidamente crescia no mundo. De fato, o sucesso imediato pós-1929 da URSS foi de dimensões extraordinárias. Durante 1929-39, a URSS alcançou o crescimento anual do PIB de 6%, que, até então, era de longe o mais rápido já alcançado por uma grande economia, e quase o dobro da taxa histórica de crescimento dos Estados Unidos. Apesar da destruição colossal na Segunda Guerra Mundial, a URSS já havia recuperado em 1949 seu nível de produção pré-guerra.

Os elementos que produziram esse crescimento econômico historicamente sem precedentes foram claros. A partir de 1929, com o Primeiro Plano Quinquenal, Stálin lançou sobre a URSS uma política econômica nunca antes tentada em qualquer país – a construção de uma economia nacional administrada de forma basicamente fechada. Os recursos não eram alocados por preço, mas por quantidades significativas – uma fábrica de aço não comprava minério de ferro no mercado, mas o tinha alocado por decisão administrativa. O comércio exterior foi minimizado. A propriedade estatal foi aplicada mesmo nas empresas privadas de pequena escala, como restaurantes. As pequenas propriedades dos agricultores foram eliminadas, e a agricultura foi organizada em fazendas coletivas de larga escala.

Apesar das alegações verbais de que essa política era “marxista”, a estrutura econômica de Stálin estava radicalmente em desacordo com a do próprio Marx. Para usar a terminologia marxista comum à China e à URSS, a política econômica soviética em 1929, em uma única etapa, substituiu a regulação econômica de preços (valor de troca) pela alocação por uso material (valor de uso).

Marx escrevera que um Estado socialista iria: “arrancar, em grau, todo o capital da burguesia, centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado e aumentar as forças produtivas totais o mais rápido possível”. Ao escrever “em grau”, Marx vislumbrou claramente um período durante o qual ambas as propriedades – estatais e privadas – existiriam. Em vez disso, na URSS em 1929, essencialmente, todas as propriedades foram levadas para o setor estatal.

A própria palavra “socialismo” é derivada da produção “socializada” (ou seja, em larga escala) – não da produção camponesa em pequena escala. No entanto, na URSS, depois de 1929, até parcelas camponesas de pequena escala foram levadas à propriedade estatal – antes de sua eliminação administrativa. Contudo, simultaneamente à supressão da produção privada em pequena escala, as vantagens da produção em larga escala foram eliminadas graças ao caráter nacionalmente fechado da economia da URSS – um fabricante de aeronaves dos EUA como a Boeing vendia para o mercado mundial, mas um fabricante soviético, como a Ilyushin, poderia produzir aviões apenas para a economia soviética.

Os economistas soviéticos que apontaram essas questões foram executados por Stálin, mas, em qualquer caso, tais críticas pareciam “discussões teóricas” em comparação com o sucesso econômico comprovado da União Soviética.

Depois de 1945, essa dinâmica mudou. Em 1929, a economia global estava colapsando com Estados ou impérios “autárquicos”. Os Estados Unidos, o Império Britânico, o Japão e a Alemanha nazista foram separados uns dos outros por muros tarifários. O sistema monetário internacional, o padrão-ouro, entrou em colapso sem substituição. Em meio a esse caos econômico global, a URSS socialista autárquica superou de longe as economias capitalistas autárquicas.

Porém, após a Segunda Guerra Mundial, a economia mundial integrada foi gradualmente reconstruída. Um novo sistema internacional de pagamentos, o padrão do dólar, foi criado. As tarifas foram reduzidas. A economia soviética era pequena comparada a essa nova economia mundial, e não podia ser integrada a ela sem o relaxamento de seu sistema de planejamento – já que as flutuações econômicas globais não poderiam ser planejadas. A agricultura soviética coletivizada era improdutiva, e os bens de consumo da URSS eram de baixa qualidade, devido à insistência de Stálin na prioridade esmagadora à indústria pesada – nas palavras de Stálin: “O que envolve um rápido desenvolvimento industrial? Envolve o investimento máximo de capital na indústria”. Na década de 1970, o crescimento econômico soviético, embora mais rápido do que dos Estados Unidos, era muito mais lento do que do Japão ou da Coreia do Sul – que estavam sendo vendidos no mercado mundial.

Contudo, se a economia da URSS estava indo para a crise, o sistema de livre mercado, como única alternativa existente, estava na década de 1970, mostrando suas próprias dificuldades. Depois da “crise do preço do petróleo” de 1973, as economias capitalistas mais desenvolvidas desaceleraram dramaticamente. Os Estados Unidos desaceleraram e, a partir do início dos anos 80, começaram a acumular enormes dívidas, que culminaram na crise financeira internacional de 2008. Quando o modelo de livre mercado foi aplicado à antiga União Soviética, a partir de 1992, levou ao maior colapso econômico em uma grande economia em tempos de paz na história – o PIB da Rússia caiu 30%.

Confrontado com problemas decisivos em ambos os modelos econômicos dominantes, em vez de permanecer preso dentro de um ou de outro, Deng Xiaoping embarcou em uma política nunca antes vista – a criação do que é agora referido na China como uma “economia socialista de mercado”.

Em certo sentido, Deng Xiaoping saiu do modelo pós-1929 da URSS “de volta para Marx”. Subjacente à análise de Deng Xiaoping, de 1978, frequentemente em seu texto literal, estava a famosa “Crítica do Programa de Gotha”, de Marx – seu mais extenso comentário sobre a construção de uma sociedade socialista.

Para ver essa estreita relação, por exemplo, aqui está a análise de Marx: “ Aquilo com que temos aqui a ver é com uma sociedade comunista, não como ela se desenvolveu a partir da sua própria base, mas, inversamente, tal como precisamente ela sai da sociedade capitalista”. Para uma pessoa em tal sociedade: “ O mesmo quantum de trabalho que ele deu à sociedade sob uma forma, recebe-o ele de volta sob outra”. Todavia: “Numa fase superior da sociedade comunista … suas forças produtivas terem também crescido e todas as fontes manantes da riqueza cooperativa jorrarem com abundância … a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!”.

A própria formulação pós-1978 de Deng Xiaoping é quase palavra por palavra de Marx: “Uma sociedade comunista é aquela em que há grande abundância material, e o princípio de ‘cada um de acordo com sua capacidade, para cada um de acordo com suas necessidades’ é aplicado. É impossível aplicar esse princípio sem sobrecarregar a riqueza material, mas, no período atual na China, antes da acumulação de tal riqueza, o princípio era ‘para cada um de acordo com seu trabalho’: ‘Devemos aderir a esse princípio socialista que exige distribuição de acordo com a quantidade e a qualidade do trabalho de um indivíduo’”. A caracterização fundamental de Deng foi: “A China está no estágio primário do socialismo. O socialismo em si é o primeiro estágio do comunismo, e aqui na China ainda estamos neste estágio, isto é, o estágio subdesenvolvido. Em tudo o que fazemos, devemos proceder dessa realidade, e todo planejamento deve ser coerente com ela”.

Porém, enquanto, em certo sentido, Deng Xiaoping “retornou a Marx”, ele teve necessariamente que resolver muitos problemas de uma economia moderna que Marx jamais imaginou. De um ponto de vista puramente teórico, alguns deles haviam sido analisados por Keynes nos anos 1930. A conclusão fundamental de Keynes era de que o investimento desempenhava um papel determinante na economia, “as flutuações da produção dependem quase inteiramente da atual quantidade de investimento” (a conclusão de Keynes tem sido amplamente confirmada pelas estatísticas). Como, em uma economia moderna, o investimento é financiado por empréstimos, Keynes defendia taxas de juros muito baixas para incentivá-lo.

Keynes, todavia, julgou que isso seria insuficiente para manter um nível adequado de investimento de forma estável. “Era, portanto, necessário que o Estado desempenhasse um papel direto na determinação do nível de investimento: “Sou cético quanto ao sucesso de uma política meramente monetária voltada para influenciar a taxa de juros. Espero ver o Estado tomando uma atitude de responsabilidade maior pela organização direta do investimento.”. Keynes observou: “Concluo que o dever de ordenar o volume atual de investimento não pode seguramente ser deixado em mãos privadas”. Se o “volume atual de investimento” deveria ser definido, Keynes percebeu que isso significava um grande papel de investimento estatal: “Eu acredito que uma socialização um tanto abrangente do investimento será o único meio de garantir uma aproximação ao pleno emprego”.

Keynes observou que uma “socialização um tanto abrangente do investimento” não significava eliminar o setor privado, mas o investimento estatal socializado operando junto a ele: “Isso não deve excluir todos os tipos de compromissos e dispositivos pelos quais a autoridade pública cooperará com iniciativa privada… Os controles centrais necessários para garantir o pleno emprego envolverão, é claro, uma grande extensão das funções tradicionais do governo”. Keynes, consequentemente, imaginou uma economia na qual existia um setor privado, mas na qual o setor estatal era suficientemente dominante para definir os níveis gerais de investimento.

Porém, a análise de Keynes permaneceu puramente teórica. Não poderia ser implementada no Ocidente por uma razão intransponível – e é por isso que o “keynesianismo” do Ocidente tem pouca relação com os escritos de Keynes! O investimento de capital são “os meios de produção”. Se as decisões de investimento mais básicas não fossem tomadas pelo capital privado, não seria mais uma sociedade capitalista. Keynes havia desenvolvido uma análise teórica incisiva, mas que não poderia ser implementada na sociedade em que ele vivia.

Problemas que eram intransponíveis para Keynes, no entanto, não eram para Deng, já que ele não pretendia criar uma sociedade capitalista! Para ser claro, não há evidência de que os conceitos econômicos de Deng Xiaoping tenham sido diretamente influenciados por Keynes, mas as ideias marxistas familiarizadas pelo líder chinês o levaram à mesma estrutura econômica keynesiana. O Estado manteria a propriedade de setores econômicos de grande escala (ou seja, socializados), dando-lhe a capacidade de regular o nível de investimento, enquanto setores econômicos de menor escala (produção não-socializada) poderiam ser liberados para o setor privado ou não-estatal. O Estado, portanto, não precisava possuir a economia como um todo, mas apenas controlar o suficiente para definir o nível geral de investimento.

Esta é, evidentemente, a política aplicada na China a partir de 1978, com a substituição das comunas rurais criadas na década de 1950 (agricultura coletivizada) por uma agricultura de pequena escala (o “sistema de responsabilidade doméstica”). Assim, a política conhecida como Zhuada Fangxiao (“mantenha o grande, solte o pequeno”) poderia ser embarcada, mantendo grandes empresas estatais dentro do setor estatal e liberando pequenas para o setor não-estatal/privado.

Portanto, embora um setor privado vibrante tenha sido criado, o setor estatal ainda era grande o suficiente para definir o nível geral de investimento – ou seja, o setor estatal permanecia dominante. Como o Wall Street Journal resumiu: “A maioria das economias pode puxar duas alavancas para impulsionar o crescimento – fiscal e monetária. A China tem uma terceira opção: acelerar o fluxo de projetos de investimento”. Uma estrutura econômica imaginada apenas em teoria por Keynes foi realizada na prática por Deng Xiaoping.

A estrutura econômica de Deng Xiaoping resolveu simultaneamente o problema do desvio de recursos da indústria pesada e a criação de uma oferta abundante de produtos de consumo. Como o Estado possuía a indústria pesada, os preços nesse setor podiam ser controlados, enquanto os da agricultura e da indústria de consumo leve eram liberalizados. Os preços relativos, portanto, subiram na agricultura e nas indústrias de consumo. Os recursos fluíram para esses setores, e sua produção disparou. Simultaneamente, com o aumento dos preços subsidiados, financiados pela redução do gasto de armamentos da China, a população urbana estava protegida contra as pressões negativas iniciais sobre os padrões de vida. O crescimento extraordinariamente rápido que essa estrutura produziu gerou uma economia em larga escala que, em um círculo virtuoso, poderia financiar a construção da indústria pesada em uma nova base.

Simultaneamente à reintrodução da produção “não-socializada” de pequena escala, a economia da China buscou a “abertura” internacional, permitindo-lhe participar da produção de maior escala de todos – no mercado global.

Portanto, longe de as políticas econômicas de Deng Xiaoping serem puramente pragmáticas, elas fluíram de forma integrada dos princípios teóricos subjacentes para a solução de questões eminentemente práticas. Foi isso que produziu, de longe, o maior crescimento econômico e avanço social visto em qualquer país da história mundial.

Esse caráter integrado do sistema econômico de Deng Xiaoping também explica por que qualquer desvio dele necessariamente leva a problemas econômicos. Qualquer retorno a uma economia administrada leva à incapacidade de aproveitar a produção em pequena escala e a se integrar ao mercado econômico mundial.

Qualquer sistema no qual a empresa privada é dominante perde a capacidade de o Estado definir o nível de investimento e, portanto, recria as crises que tanto Keynes quanto Deng Xiaoping haviam resolvido com sucesso. Em suma, nenhuma outra figura na história combinou um pensamento econômico tão profundo com uma política econômica tão bem-sucedida quanto Deng Xiaoping.

Deng Xiaoping foi, acima de tudo, um grande líder do povo chinês. Por meio da busca do renascimento nacional de seu país, tirando mais de 620 milhões de pessoas da pobreza, ele também fez uma contribuição inigualável para o bem-estar geral da humanidade.

Se isso não bastasse, Deng teve outra conquista. De longe, o maior economista do século XX não foi Keynes, Hayek ou Friedman, mas Deng Xiaoping.

* John Ross é “Senior Fellow” do Instituto para Estudos Financeiros Chongyang, da Universidade de Renmin da China. Ele publica suas opiniões no website “Learning from China”. Este artigo representa sua análise pessoal, o que não implica o endosso pelo Instituto Chongyang.

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