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Faleceu Samir Amin, economista africano e defensor de um novo mundo

Egípcio, Amin foi um intelectual presente na luta anti-colonial pan-africana e dedicou boa parte da sua vida a compreender os mecanismos de domínio internacional.
A comunicação crítica se alimenta de pensadores críticos. Intelectual africano não se encontra mais entre nós. Sua obra começa na economia e culmina na geopolítica.
(Foto: 28 de setembro de 2016, Alemanha, Die Linke)

Domingo 12 de Agosto, chega a notícia de que o economista marxista Samir Amin faleceu aos 86 anos. Egípcio, Amin foi um intelectual presente na luta anti-colonial pan-africana e dedicou boa parte da sua vida a compreender os mecanismos de domínio internacional. Estudou a economia e as relações entre os países com as pretensões mais revolucionárias, como um defensor de um novo mundo.

Tenho trabalhado em uma série de textos baseados especificamente em Amin e talvez alguns sobre ele, por isso tive a ideia de entrevista-lo muito em breve – era o lógico em um texto sobre “conheça o marxista africano…”, e poderia tratar daquilo que acho que é mais do que pertinente na situação atual (mais do que pertinente é aquilo que é central e indispensável). Infelizmente, agora escrevo esta nota in memoriam.

Como filósofo geopolítico, em 1992 Amin já anunciava tendências que hoje se confirmam. O movimento de uma globalização neoliberal após a queda da União Soviética não geraria o fim da história e nem uma integração absoluta, como até críticos sociais e esquerdistas pensaram ao falar da “obsolescência” do estado-nação, os que acreditam em “interdependência” como se já não existissem países mas só um globo. Essas duas décadas do século XXI demonstraram o papel do estado nacional na gestação de novos conflitos e contradições dentro do capitalismo, dentro de um centro imperialista marcado por disputas de poder e a periferia que sempre corre o risco de se transformar em campo de batalha, submetida ou a governança econômica feita sob medida pelo centro ou a violência das bombas democráticas ocidentais.

Não se limitando a termos abstratos,  descreveu como a hegemonia dos Estados Unidos é mantida primariamente pelas armas, pela força militar, a despeito dos problemas econômicos desse país. “O projeto da classe dominante americana: a extensão da doutrina Monroe ao resto mundo”, intitula um de seus capítulos. Na disputa sobre quem deve liderar o bloco imperialista, a estratégia de certos ianques é a de se afirmar pela força dos exércitos.

“A classe dominante dos Estados Unidos proclama que não vai ‘tolerar’ a reconstituição de qualquer poder econômico ou militar capaz de desafiar sua dominação global. Com esse fim, ela deu a si mesma o direito de fazer ‘guerras preventivas’, com três principais adversários em potencial em mente.”(Samir Amin,”Beyond US Hegemony? Assessing the Prospects for a Multipolar World”, Zed Books, 2006, Cidade do Cabo/África do Sul, pg. 10)

Esses adversários são, respectivamente:

– A Federação Russa, que deve ser desmontada. Quando Samir Amin escreveu isso em 2006, ele anotou que “a classe dominante russa não parece ter entendido isso” – hoje a situação aparenta algo diferente.

– A China com sua extensão e sucesso econômico.

– O risco representado pela Europa, caso ela se afaste do atlantismo.

Brevemente, joga-se uma luz na movimentação dos Estados Unidos nos últimos anos e desde a chegada de Donald Trump a presidência. Ao mesmo tempo que esses adversários potenciais são contidos, regiões inteiras que podem oferecer novas alternativas são submetidas ao “império do caos”. Dentro das prioridades dessa estratégia dos EUA, consta “garantir a subordinação de outros grandes estados como o Brasil e a Índia”.

Samir Amin expôs sistemas de trocas desiguais e a exploração econômica que estão por trás do subdesenvolvimento. Teve muito interesse na experiência chinesa devido as suas contradições, seu futuro incerto e ao desenvolvimento que conquistou sem ter uma catástrofe social similar a outros países de Terceiro Mundo. Cunhou o termo eurocentrismo para para descrever posições de organismos internacionais que conspiravam contra o desenvolvimento da periferia. Hoje, infelizmente, certos “pós colonialistas”  usam a mesma palavra com intenções opostas – a ironia só piora quando relacionam marxismo com eurocentrismo de maneira unilateral.

Amin é um grande pensador revolucionário da geopolítica e que entendia o papel determinante do internacional no político. Foi um intelectual de peso e atuou em momentos políticos importantes do pan-africanismo.

Recentemente, via com bons olhos o fortalecimento de um eixo Berlim – Paris – Moscou (“possivelmente incluindo Beijing e Delhi”) para enfraquecer o atual sistema internacional. O objetivo de um mundo multipolar é prioritário na sua obra geopolítica, buscando caminhos para este objetivo em detrimento dos que agora mantém sua hegemonia.

Ademais, denunciava o islamismo político com força reacionária adequada para manter países como Egito – sua pátria – de joelhos, distante de uma nova posição de orgulho e desenvolvimento.

É impossível expor em uma nota as diversas faces de uma obra tão consequente. Não cabe a mim aqui expor cada reflexão fundamental e necessária gerada por esse pensador, seja na economia, seja na geopolítica. Poderia fazer um texto sobre África, sobre socialismo, sobre América Latina ou sobre questões mais puramente econômicas… mas nada mais adequado do que nos lembrarmos da primazia do problema internacional. Cabe sim, a nós todos, na ausência do pensador estudarmos sua obra para encontrarmos respostas e perguntas adequadas ao nosso presente.

Não sou nada e não escreveria nada se não fosse por pensadores como Samir Amin. Eu não invento nada e não há de se inventar a roda quando existe tanto conhecimento sendo bloqueado do mundo da comunicação. Para nós, a comunicação crítica se alimenta de pensadores críticos. Não poderia me orientar no fundamental de geopolítica, nem teria passado pela guerra ucraniana, sem Moniz Bandeira, Domenico Losurdo e Samir Amin – todos eles morreram nesse espaço de um ano.

Samir Amin seguirá sendo um professor para mim e referência na Revista Opera. Infelizmente, uma nota como essa de um fenômeno como esse – tão inesperado, porém o mais certo de todos – não oferece o espaço necessário para expor a importância desse autor; que o tempo nos permita.

“…quem vencerá? As forças que teriam um Norte unificado prevalecendo sobre o sul (como vimos em grau surpreendente na Guerra do Golfo)? Ou serão aqueles que avançam a causa de um mundo policêntrico…?” (Samir Amin, “Empire of Chaos”, 1992)

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