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Thompson: o revolucionário romântico

Para Hobsbawm, seu amigo e admirador, a obra de Thompson alia intelecto e paixão; os dons do analista aos do poeta, do narrador.
por Yuri Lorscheider | Revista Opera
(Foto: Kim Traynor)

Não é fácil falar sobre Edward Palmer Thompson. Mais difícil ainda é a missão de tentar medir o tamanho de sua relevância para o marxismo e para o estudo em História. Este gigante inglês que nos deixara há vinte e cinco anos deixou para trás um legado teórico-metodológico de suma importância para os historiadores; não somente para os historiadores, mas para os estudiosos da sociedade. Nos dizeres de Christopher Hill, a influência mundial de E.P. Thompson era incalculável sobre os estudantes de história. A biografia deste homem é marcada pelo entrelaçamento entre a história vivida e a história estudada. Para Hobsbawm, seu amigo e admirador, a obra de Thompson alia intelecto e paixão; os dons do analista aos do poeta, do narrador.

“Ele foi o único historiador que conheci dono não só de talento, brilhantismo e erudição – e da dádiva da escrita – como também capaz de produzir algo qualitativamente diverso de tudo aquilo que o resto de nós produzimos, implausível de ser medido pela mesma escala. Chamemos simplesmente de genial, no sentido tradicional da palavra.” (HOBSBAWM, 2001)

Thompson: o poeta eloquente

Edward Palmer Thompson, um dos expoentes da História Social, nascera no dia 3 de fevereiro de 1924, em Oxford. Historiador, socialista, ativista político, poeta e escritor, foi filho de pais anglo-americanos metodistas que tinham por si um viés anti-imperialista. Thompson seguiu os passos do seu irmão mais velho e ingressou ainda jovem, com apenas 18 anos, no Partido Comunista inglês. Após a Segunda Guerra Mundial, conhece sua respectiva companheira de vida e de ativismo político, Dorothy Towers, no ano de 1947, como voluntário em uma brigada de solidariedade à Iugoslávia. Gradua-se em História pela Universidade de Cambridge, onde permanece até meados da década de 1950 estudando a tradição da dissidência inglesa; será desse estudo que nasce sua primeira obra: uma biografia dedicada exclusivamente a William Morris, escritor utópico britânico do século XIX que tivera fortes influências sobre o movimento socialista de sua época, intitulada “William Morris: romantic to a revolutionary” e lançada em 1955.

Thompson trazia consigo a inquietude e as ideias polêmicas. No ano seguinte, em 1956, após fortes divergências e críticas ao stalinismo, o historiador rompe com o Partido Comunista. Após a saída do partido, junto com outros intelectuais britânicos de peso, forma-se a chamada “New Left” – a Nova Esquerda Britânica- que deu origem à famosa revista “New Left Review”. Com o tempo surgem divergências dentro do movimento. Os ânimos esquentam com os famosos embates entre Perry Anderson e E.P. Thompson. Thompson deixa a revista em meados de 1963, após Anderson assumir sua edição. A nova linha editorial da revista divergia e contrastava abertamente com os rumos tomados anteriormente pelos seus ex-membros. Artigos de Mandel e Althusser eram publicados com frequência.

O marxismo de Thompson nadava contra a corrente ortodoxa. Apesar de seu grande prestígio após o lançamento, em 1963, da obra “A formação da classe operária inglesa” – da qual falaremos mais detalhadamente adiante -, preferiu seguir a carreira docente como professor “extramuros”, dando aulas em cursos secundários noturnos que tinham como público alvo os trabalhadores ingleses. Lecionou por quase vinte anos no curso para trabalhadores na região de Leeds. É importante ressaltar a atuação de Thompson como professor de História e Literatura, e aqui se faz presente um ponto chave no pensamento do intelectual: a importância que a Literatura tem em sua obra. A literatura era uma forte influência aos historiadores britânicos de sua época como Raymond Williams, Christopher Hill e Eric Hobsbawm; contudo nenhum deles valorizou-a e destacou-a tanto como Thompson como uma fonte a ser analisada. Desassociar a literatura do pensamento e do trabalho de Thompson, além de ser um ato de pobreza intelectual, é descartar boa parte da riqueza de fontes que o autor nos traz enquanto expõe seu pensamento. Para Christopher Hill:

“Como Karl Marx, Thompson caminhou na contracorrente ao usar a literatura como fonte para a história social e econômica; seu primeiro livro foi sobre William Morris. Quem – senão Thompson – citaria Chaucer, Tristam Shandy, Wordsworth, Dickens e os poetas do século XVIII Stephen Duck e Mary Collier em uma artigo sobre ‘Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial?’” (HILL, 2001)

Vale ressaltar que ficou conhecido como um dos expoentes do que convencionou-se chamar de “a história vista a partir de baixo”; a história da “gente comum”, pois a historiografia convencional servia apenas para glorificar os “heróis” governantes. Para a melhor compreensão de uma sociedade em seu tempo, se fez necessário resgatar as experiências da população. Até fins do século XIX, as contribuições historiográficas apenas citavam ou faziam uma breve referência às massas, mas Thompson resgata essa “gente comum” desse limbo histórico. A sede por conhecimento do historiador aparentava ser insaciável e sua genialidade não encontrava barreiras. Nunca gostou de limitar-se, e seu campo de estudo era abrangente. Uma passagem sua logo no prefácio da obra “Senhores e Caçadores” saltou-me aos olhos, realçando sua genialidade e a importância para ele da “história vista a partir de baixo”. Thompson mostra-se um aventureiro, começara a pesquisar a história social antes de 1750, campo que não era explorado pelo autor. Segundo o inglês:

“Os historiadores, em sua maioria, não se aventuram a esse tipo de situação, e são sensatos. Normalmente, a pessoa faz leituras muito amplas dentro de um “período”, antes ou durante suas pesquisas, aceitando o contexto oferecido por historiadores anteriores, mesmo que, à conclusão do seu trabalho, seja capaz de apresentar modificações a esse contexto. Decidi trabalhar de outro modo. Senti-me como um paraquedista aterrissado em território desconhecido: inicialmente conhecendo apenas algumas centenas de metros em torno, e gradualmente estendendo minhas explorações a cada direção. […] Isso pode parecer menos um “experimento historiográfico” do que um emaranhamento por entre a historiografia. Mas espero que tenha se revelado como algo mais. Visto que parti da experiência de humildes moradores das florestas e segui, através de evidências contemporâneas superficiais, as linhas que ligavam-nos ao poder, em certo sentido as próprias fontes me obrigaram a encarar a sociedade inglesa em 1723 tal como elas mesmas a encaravam, a partir ‘de baixo.’” (Thompson, 1987)

Thompson era um marxista que almejava livrar-se de dogmas e procurava fugir do “determinismo econômico”. Tendo em vista esse horizonte, o mesmo se envolvera em assuntos contestadores durante sua vida. Vivera polêmicas no seio do marxismo. Após as divergências com Anderson a partir dos anos 1960, no fim da década de 1970 redigiu o livro “A miséria da teoria” – sua principal obra teórica segundo Hobsbawm – dedicando a obra exclusivamente para o teórico francês Louis Althusser, criticando-o diretamente. A crítica de Thompson iria contra a separação do objeto do conhecimento e o objeto real. Para Althusser, o objeto de estudo que é tratado na teoria não é o dito objeto real, mas sim o chamado objeto de conhecimento. Com isso, este objeto seria produto exclusivo do campo das ideias, opondo-se à noção de Thompson entre pensamento e matéria. Nessa obra o historiador inglês tece uma rígida crítica ao marxismo estruturalista, argumentando que nessa linha de pensamento as categorias deixam de ser históricas, afinal, estão suspensas; fora do mundo material. Para o estruturalismo são as estruturas que determinam as chamadas individualidades. Thompson chamará o estruturalismo de uma categoria ahistórica, tendo em vista o pressuposto dicotômico entre realidade e ideia; com crítica a essa noção estrutural e sistemática, Thompson propõe a experiência como uma categoria para pensar a realidade.

As polêmicas: um revolucionário peculiar

[…] a história não pode ser comparada a um túnel por onde um trem expresso corre até levar sua carga de passageiros em direção a planícies ensolaradas. Ou então, caso o seja, gerações após gerações de passageiros nascem, vivem na escuridão e, enquanto o trem ainda está no interior do túnel, aí também morrem. Um historiador deve estar decididamente interessado, muito além do permitido pelos teleologistas, na qualidade de vida, nos sofrimentos e satisfações daqueles que vivem e morrem em tempo não redimido. E.P. Thompson

Thompson participou de diversas polêmicas no decorrer de sua vida antes de falecer em 1993 devido a uma enfermidade de longa data. Vale ressaltar a sua importância teórico-metodológica em suas obras. A proposta aqui é tentar expor de maneira breve o embate que o historiador inglês tivera quando resolve defrontar um dos pensamentos mais clássicos do marxismo, a questão da “mais-valia relativa”.

Quando Thompson lança “A formação da classe operária inglesa”, o mesmo enfrenta um problema teórico; um historiador que se intitula marxista redige uma obra em três volumes divergindo de uma das teses mais importantes de Marx escritas no primeiro tomo de “O Capital: crítica à economia política”; a teoria da “mais-valia relativa”. A ideia central no pensamento do historiador é que o proletariado não seria um resultado da industrialização; esse é o axioma do pensamento de Thompson que constitui sua radical oposição às correntes ortodoxas do marxismo. Salienta-se que industrialização seria o processo de formação e consolidação da produção fabril mecanizada.

Segundo Marx – e grande parte dos marxistas que se debruçaram sobre o assunto – a junção de forças produtivas e relações sociais formam, em conjunto, as relações de produção. As forças produtivas, então, representam os aspectos técnicos das chamadas relações de produção. O que importa é a ideia de que relações sociais e forças produtivas são as representações de uma unidade contraditória que está sob o domínio das relações sociais. A dominação das relações sociais afirma-se pelo fato delas aparecerem sempre como capital.

Em suma, a crítica de Thompson paira sobre a lógica do capital; de que a industrialização, a constituição da classe operária, a formação do proletariado seriam a representação da lógica do capital. Contudo para o autor essa lógica não explicaria o processo histórico real.

“Isso não significa, de maneira alguma, que, para ele, o processo histórico não tenha uma lógica. Muito pelo contrário, ele entende justamente que somente a lógica do processo pode explicar o desenvolvimento do capitalismo, o movimento do capital, a relação capitalista de produção, ou, no caso em pauta, especificamente, a constituição da grande indústria moderna e do proletariado.” (SILVA, 2001)

Para Thompson, há de se fazer uma inversão da explicação. Segundo o autor, a industrialização seria o resultado do processo histórico real; a indústria moderna seria o resultado histórico da luta de classes. O autorreconhecimento desses trabalhadores, o “fazer-se” (The making of) como classe encontra-se na base da indústria moderna; a formação da classe operária não seria o resultado da industrialização – como defendido por muitos – mas sim a condição deste processo.

Partindo em defesa de Marx, vale ressaltar que o mesmo não completara sua obra “O capital” como desejado; a parte destinada às classes sociais não foi escrita. Todavia são de suma relevância as críticas de Thompson direcionadas a uma série de análises sociológicas que constituem a base do pensamento sobre o desenvolvimento do capitalismo e a classe operária. A oposição de classe social e classe operária, altamente difundida na literatura marxista, constitui o ponto nevrálgico do pensamento do historiador inglês.

Evidentemente, se a formação da classe operária se apresenta também como condição da grande indústria, não é possível limitar a sua explicação ao que acontece ao trabalhador no processo de trabalho da grande indústria ou mesmo na vida econômica em geral. Uma diversidade de fatores sociais, culturais, componentes da vida e das tradições dos trabalhadores assume, então, o primeiro plano da análise, reforçando a crítica ao determinismo econômico que constitui outro traço central do pensamento de Thompson. A recusa do determinismo econômico e, particularmente, da ideia de classe como efeito do modo de produção tem, entre mil e uma consequências, a de implicar uma reconsideração da noção de consciência de classe […]: a consciência de classe é aquela que a classe efetivamente produziu, no processo (histórico) de seu autorreconhecimento e construção, e não aquela que deduzimos do modo de produção. (SILVA, 2001)

Vale ressaltar que classe, para Thompson, é uma categoria histórica, um fenômeno histórico que deriva de processos sociais através do tempo. Classe não é uma categoria estática sem movimento, não sendo também uma simples medida quantitativa. Para o inglês, não se pode falar de classes sem que as pessoas, em frente a outros grupos – mediante a um processo de luta -, entrem em oposição sob uma forma classista, ou ainda que modifiquem as relações de classe já existentes. O conceito de classe para o autor é um fenômeno que ocorre efetivamente nas relações humanas – sem uma forma determinada – mas como uma capacidade de articulação e percepção de interesses de alguns indivíduos contra outros, cujos interesses são divergentes. Classe e consciência de classe vão formando-se na experiência; é uma formação intrínseca.

Um breve ensaio de poucas páginas é praticamente nada para ousar medir a importância desse historiador para a constituição do pensamento nas ciências humanas. Thompson deixa um legado de estudo perdurável para quem ocupa o campo das ciências humanas. Uma atuação magnífica lecionando nos cursos “extramuros” na Inglaterra, tinha uma profunda admiração de seus alunos. Recordemos também seu legado importantíssimo no campo do ativismo político e sua militância ferrenha no movimento anti-bombas nucleares. Ele deixou um legado profundo para a maioria de seus estudiosos e leitores, expondo de maneira única, também, em como utilizar a Literatura como fonte histórica. Thompson foi gigante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HILL, Christopher. Epígrafe. In: THOMPSON, E.p.; NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio. A peculiaridade dos ingleses. Campinas: Unicamp, 2001 p. 5.

HOBSBAWM, Eric J.. Introdução. In: THOMPSON, E.p.; NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio (Org.). A peculiaridade dos ingleses: e outros artigos. Campinas: Unicamp, 2001. Cap. 1. p. 15-20.

HOBSBAWM, Eric J.. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 435 p.
MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Obras Fundamentales: teorias sobre la plusvalia. Ciudad del Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1980. 480 p.

SILVA, Sergio. Thompson, Marx, os marxistas e os outros. In: THOMPSON, E.p.; NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio. A peculiaridade dos ingleses: e outros artigos. Campinas: Unicamp, 2001. Cap. 3. p. 59-71.

THOMPSON, Edward Palmer. Senhores e Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 429 p.

THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 204 p.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo y literatura. Barcelona: Peninsula, 1988. 249 p.

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