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Não falarei gentilmente dos mortos: Bush era abominável

Para as pessoas cujos países ou vidas foram destruídas por suas ações violentas, George H. W. Bush sempre será um monstro.
por Michael I. Niman* | Truthout – Tradução de Matheus Ferreira para a Revista Opera
(Foto: Casa Branca)

Supostamente, temos que falar de maneira positiva dos mortos. Deveríamos enterrar os presidentes falecidos com a mesma reverência que os antepassados coloniais brancos dessa nação reservavam para a realeza. Hoje, enquanto nos preparamos para enterrar o 41º presidente da nação, George H.W. Bush, a imprensa americana está promovendo esta tradição, elogiando-o ao celebrar seu comportamento educado e a civilidade que ele representava. Sim, o 41º presidente é exibido como uma pessoa mais agradável que o 45º, o atual, ou seu filho, o 43º. Mas para as pessoas cujos países ou vidas foram destruídas por suas ações violentas, ele sempre será um monstro. Higienizar sua história é um ato de revisionismo histórico. Abaixo, estão apenas oito das muitas razões pelas quais, por debaixo da aparente civilidade, George H.W. Bush era um presidente detestável.

1 – A propaganda eleitoral com Willie Horton

Vamos começar com racismo. A, agora infame, propaganda eleitoral com Willie Horton estabelecida pela equipe Bush na campanha eleitoral para presidente em 1988 se utilizou de imagens de Willie Horton, um negro que cumpre prisão perpétua por homicídio doloso que escapou da custódia durante um fim de semana e estuprou uma mulher branca, além de ferir brutalmente seu noivo. O Governador que assinou a licença para a saída foi o oponente de Bush, Michael Dukakis. O presidente em exercício, Ronald Reagan, assinou pedidos de licença parecidos. A maioria dos governadores fazia isso constantemente. Mas a equipe de Bush se aproveitou dessa situação e utilizou as licenças como ponto central de sua campanha, utilizando imagens borradas de Horton que se assemelhavam a cartazes de escravos fugitivos procurados durante o período dos Confederados.

A propaganda despertou o racismo e o medo dos brancos. Seu sucesso estimulou uma onda de propagandas de teor racista por parte de candidatos Republicanos que se aproveitaram do racismo suscitado e da enfraquecida justiça racial. Guiadas por Newt Gingrich, as novas propagandas racistas se utilizaram do discurso “nós contra eles” para fornecer uma aparência de negação plausível à outras mensagens racistas. Uma negação que faltava à campanha grosseira de Bush. O veterano republicano Roger Stone na época alertou Bush e o presidente do Comitê Nacional Republicano, Lee Atwater, de que “e uma propaganda racista” e “você vai se arrepender”, explicando “você e George Bush serão lembrados por isto”. Atwater, antes de sua morte em 1991, se desculpou pela propaganda de Willie Horton. Bush nunca se desculpou.

2 – A invasão no Panamá

Após um ano do início de seu mandato, em dezembro de 1989, Bush invadiu o Panamá para executar um mandado de prisão americano contra o líder da nação, Manuel Noriega. Noriega, por sua vez, foi um ativo da CIA durante o período em que Bush era Diretor da CIA, antes de se tornar o vice-presidente de Ronald Reagan. O líder panamense ajudou os EUA durante a guerra contra a Nicarágua no período Reagan, quando foi flagrado num encontro com Bush. Em 1989, no entanto, Noriega se mostrava uma figura difícil de se lidar. A invasão para prendê-lo custou a vida de 3000 panamenhos e destruiu o bairro panamenho de Chorillo. O governo Bush nomeou esta guerra como “Operação Justa Causa”. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos ordenou neste ano de 2018 que os EUA paguem as reparações necessárias por conta desta guerra, porém, sabemos que isto não ocorrerá tão cedo.

3 – Atingindo civis no Iraque

Bush iniciou a Guerra do Golfo primeiramente como “Operação Escudo do Deserto” em agosto de 1990 e depois, intensificou-a nomeando como “Operação Tempestade do Deserto” em janeiro de 1991. Evidentemente, esta guerra tinha como objetivo restaurar a monarquia kuwaitiana ao poder depois desta nação ter sido invadida pelo Iraque. Saddam Hussein, entretanto, invadiu o Kuwait somente após receber consentimento do embaixador de Bush no Iraque, April Glasbie. Na guerra, 88.500 toneladas de bombas caíram no Kuwait e no Iraque durante o período de 43 dias, tirando a vida de 13.000 civis iraquianos e 20.000 soldados iraquianos, em sua maioria mortos ao fugirem do Kuwait.

As bombas em direção ao Iraque tinham como alvo instalações de infraestrutura essenciais, como instalações de tratamento de água e esgoto, usinas de processamento de alimentos, instalações agrícolas, a rede de fornecimento de energia e a infraestrutura de transportes. Até 70.000 mortes adicionais no Iraque foram resultado desses danos infraestruturais. As sanções que seguiram a Operação Tempestade do Deserto causaram a morte prematura de 500 mil iraquianos. Rebeldes xiitas e curdos que o Departamento de Estado de Bush encorajou a rebelarem-se contra o governo iraquiano de Saddam Hussein durante a Tempestade do Deserto foram abandonados pelos EUA quando o Iraque abandonou o Kuwait.

4 – A racista guerra às drogas

Bush, o soldado, estava em boa fase durante os primeiros 2 anos de seu mandato, impulsionando a chamada Guerra às Drogas. Em 1989, ele discursou ao vivo na TV segurando um saco de crack apreendido pela polícia de Washington nos arredores da Casa Branca. Este evento foi orquestrado por agentes que atraíram um traficante de drogas para os arredores. Citando esta importante apreensão nos arredores da Casa Branca, Bush solicitou “mais prisões, mais cadeias, mais tribunais, mais promotores”, ao mesmo tempo que mantinha as disparidades jurídicas que eram responsáveis pela probabilidade doze vezes maior de usuários de drogas negros irem à cadeia, em comparação com os usuários de drogas brancos.

5 – A “surpresa de outubro”

Como presidente, Bush usou seu escritório para obstruir a justiça e impedir investigações sobre a atividade criminosa do governo Reagan, onde atuou como vice-presidente. O nome “Surpresa de Outubro” refere-se a alegações de que representantes da campanha de Reagan conspiraram com líderes iranianos antes da eleição presidencial de 1980. Na época, os estudantes iranianos mantinham 52 reféns americanos no Irã, para o constrangimento da administração do presidente Jimmy Carter. De acordo com as alegações, representantes da campanha de Reagan fizeram um acordo com o Irã para manter os reféns até o final das eleições, fazendo com que Carter parecesse fraco.

Testemunhas afirmam que viram o chefe de campanha de Reagan e o subsequente diretor da CIA, William Casey, em reunião com representantes do governo iraniano em Madri durante a campanha de 1980. Mas Bush, como presidente, frustrou a investigação, ocultando informações importantes sobre o paradeiro de Casey na época em que supostamente estava em Madri. Sem essa evidência corroborante, a força-tarefa do congresso que investigava a Surpresa de Outubro teve de rejeitar as alegações. Em 2013, Lee Hamilton, que comandou a investigação, admitiu que poderia ter terminado de forma diferente se Bush não retivesse evidências. O repórter investigativo Robert Parry, que faleceu no início deste ano, relatou em 2013 que os arquivistas da biblioteca George H. W. Bush liberaram documentos para Bush revelando o conhecimento da Casa Branca sobre a viagem incriminadora. Historiadores esperam que, com a morte de Bush, mais registros desse período sejam disponibilizados para pesquisa.

Os reféns foram mantidos até o final das eleições, e liberados somente no dia da posse de Reagan. Se um acordo foi feito para impedir a liberação dos reféns americanos, isso seria classificado como traição, assim como as tentativas do candidato a presidente Richard Nixon de atrapalhar a concretização do acordo de paz com o Vietnã durante a posse do presidente Lyndon Johnson, com o objetivo de influenciar os resultados da eleição presidencial de 1968.

6 – O Caso Irã-Contras

O que ficou conhecido como o Caso Irã-Contras  envolveu uma complexa cadeia de atividades interconectadas, nas quais o governo Reagan vendia mísseis ao Irã, ao mesmo tempo em que, tecnicamente, eles eram um Estado hostil aos EUA. Supostamente, esta foi a demanda para o cumprimento do acordo mencionado no item 5. O dinheiro corrupto advindo da venda dos mísseis foi utilizado para financiar grupos terroristas (também conhecido como “guerreiros da libertação) que estavam em conflito com o governo Sandinista na Nicarágua, que havia sido eleito democraticamente. Este dinheiro foi crucial, pois o Congresso havia cortado orçamento para o financiamento destes terroristas, após a atuação da imprensa na divulgação das agressivas atividades destes grupos, como o assassinato de autoridades eleitas e o bombardeio de escolas, clínicas, ônibus e estações elétricas.

A subsequente investigação do conselheiro independente Lawrence Walsh do caso foi obstruída por Bush, que, antes de sair da Casa Branca, ofereceu perdão a seis alvos da investigação, tendo como caso mais notável o ex-secretário de Defesa Caspar Weinberger, que estava prestes a ir a julgamento. De acordo com Walsh, o perdão de Weinberger por Bush “marcou a primeira vez que um presidente perdoou alguém em cujo julgamento ele poderia ter sido convocado como uma testemunha, pois o presidente estava ciente de eventos relacionados ao caso.” Walsh, um republicano que anteriormente serviu como vice Procurador-Geral dos Estados Unidos sob o comando do presidente Eisenhower, acusou Bush de “má conduta” ao auxiliar no encobrimento do caso.

7 – O desinteresse na questão da AIDS

O principal crime de Bush aqui foi a indiferença às vidas humanas, que se manifestou no desinteresse para com a praga da AIDS. Mais focada em guerras do que em assuntos domésticos, as prioridades de Bush não incluíam o financiamento a alguma medida de contenção à crise da AIDS, seja por meio de pesquisa ou tratamento. Sua posição ignorante acerca da doença contribuiu na construção de falsas narrativas, minando qualquer possibilidade de resposta à crise que se espalhava. Alvejando homens gays, ele argumentou que os vetores da doença eram de natureza comportamental. Ao mesmo tempo, em outras partes do mundo, a pobreza, e não a orientação sexual ou o uso de drogas intravenosas, estavam surgindo como potenciais vetores. Quando ativistas da AIDS reagiram a seus comentários, Bush respondeu que “você não pode falar sobre isso [AIDS] racionalmente”.

8 – Abrindo Guantánamo

Bush também nos mostrou o limbo jurídico das detenções de Guantánamo. Quando refugiados haitianos que escapavam da violência, fruto do golpe que ocorreu naquele país em 1991, pediram asilo nos EUA, Bush abriu um acampamento para eles na base naval dos EUA na baía de Guantánamo, em Cuba. Seu objetivo era semelhante ao de seu filho, George Jr.; ele queria um lugar para manter as pessoas sem permitir que elas ficassem em solo norte-americano sob a proteção da lei dos EUA. Para Bush, os haitianos representavam uma ameaça diferente de qualquer outro grupo de refugiados ou população migrante.

Certamente, nenhum desses exemplos de comportamento cruel e detestável contradiz as afirmações feitas em obituários políticos sobre George H.W. O tratamento civil para com aqueles que Bush considerou dignos de civilidade. Seu tratamento civilizado em relação aos presidentes Clinton e Obama, por exemplo, são marcas da civilidade política. Em meio ao elogio dessa civilidade, no entanto, não podemos esquecer que ele também era uma pessoa desprezível cuja presidência nos colocou em um curso para a guerra sem fim, levou a centenas de milhares de mortes, estabeleceu um modelo de política racista, solapou a humanidade das pessoas que sofriam com a AIDS, acobertou atividades criminosas dos mais altos escalões do governo americano e trabalhou para minar não apenas a responsabilidade do governo, mas também o estado de direito.

*Dr. Michael I. Niman é professor de jornalismo e estudos de mídia no “Buffalo State College”.

 

 

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