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Europa sob o IV Reich de Merkel: o equilíbrio da impotência [Parte 1]

Sociólogo alemão tenta desvendar a política europeia e traçar como a interação crítica entre o nacional e o supranacional está evoluindo no continente.
O sociólogo Wolfgang Streeck narra as sensíveis alianças políticas de Angela Merkel em meio uma explosão das contradições da União Europeia. Interesses econômicos se chocam e ambições nacionais divergentes se encontram em um projeto europeu que deu passos na superação da política nacional de forma inescrutável aos cidadãos nacionais. Este artigo tenta desvendar a política europeia e traçar como a interação crítica entre o nacional e o supranacional está evoluindo no continente. Tradução de Gabriel Deslandes para a Revista Opera
Angela Merkel com os presidentes da França, Emmanuel Macron, e Ucrânia, Petro Poroshenko. Foto: Administração Presidencial da Ucrânia / Wikimedia Commons

A Europa, organizada – ou desorganizada – na União Europeia (UE), é uma estranha besta política.

Em primeiro lugar, ela consiste na política interna de seus Estados-membros que, no decorrer do tempo, se entrelaçaram profundamente.

Em segundo lugar, seus Estados-membros, que ainda são nações soberanas, buscam interesses definidos nacionalmente por meio de políticas externas nacionais dentro de relações internacionais intra-europeias.

Terceiro, os países têm uma escolha entre confiar em uma variedade de instituições supranacionais ou em acordos intergovernamentais, entre seletivas alianças de boa vontade.

Em quarto lugar, desde o início da União Monetária Europeia (UME), que inclui apenas 19 dos 28 Estados-membros da UE, surgiu uma outra arena de relações internacionais europeias, consistindo principalmente em instituições informais e intergovernamentais, encaradas com desconfiança pelo sistema supranacional da UE.

Quinto, todos estes fatores estão embutidos nas condições geopolíticas e nos interesses geoestratégicos de cada nação, que estão relacionados em particular com os Estados Unidos, de um lado, e com a Rússia, a Europa Oriental, os Bálcãs, o Mediterrâneo Oriental e o Oriente Médio, do outro. E em sexto lugar, há, no fundo do sistema estatal europeu, uma batalha contínua pela hegemonia entre seus dois maiores países membros, França e Alemanha – uma batalha que ambos negam. Cada um dos dois, à sua maneira, considera que sua reivindicação à supremacia europeia é apenas justa e certamente autoevidente, de modo que a Alemanha nem mesmo reconhece suas ambições como tais.[1] Além disso, ambas pretendem ser hegemônicas e estão conscientes de que podem realizar seus projetos nacionais apenas incorporando o outro dentro deles. Por isso, apresentam suas aspirações nacionais como projetos de “integração europeia” baseados em uma relação especial entre a Alemanha e a França.

Todavia, desde a crise financeira de 2008, pelo menos, esse arranjo tem estado cada vez mais em desordem. Os sistemas políticos nacionais estão se transformando sob o impacto da integração do mercado internacional e a reação “populista”. As disparidades econômicas entre os países-membros estão aumentando, com um país em particular, a Alemanha, colhendo a maior parte dos benefícios da moeda comum – uma condição impossível de corrigir sob a União Monetária como constituída pelo Tratado de Maastricht. Os interesses nacionais em relação às instituições econômicas da UE diferem amplamente entre as variedades distintas de capitalismo reunidas por meio dela. Embora os conflitos decorrentes tenham sido, durante algum tempo, encobertos por sucessivas “operações de resgate” e medidas de emergência, agora a hora da verdade parece ter chegado. O Reino Unido está prestes a sair dela, mudando o equilíbrio de poder entre os países-membros. As pressões estão crescendo para a “reforma”, mas os Estados-membros e as instituições supranacionais parecem estar em impasse. O antigo “método comunitário” de adiar decisões críticas parece ter atingido seus limites; enquanto isso, os riscos estão se acumulando.

Este artigo se compromete a resolver algumas das complexidades que subjazem ao impasse europeu e argumenta que as políticas da Europa estão suspensas entre as realidades nacionais e uma ideologia pós-nacional. A Europa sofre de uma negação coletiva da lacuna entre ambas, em nome de uma “ideia europeia”. E, como força cada vez mais a “integração” em diversas sociedades nacionais, a distância entre a ideologia e a realidade se amplia ainda mais.

A Europa da ideia europeia é um futuro sem passado, inocência atrativa para um continente carregado de memórias de guerra e genocídio. Contudo, é também um futuro sem um presente: para ser aceitável por seus diversos constituintes, só pode ser vagamente definida para que todos possam ler o que lhes agrada. As tensões entre a diversidade nacional e a unidade supranacional não podem, portanto, ser efetivamente abordadas, pois isso revelaria tanto o vazio da ideologia quanto os conflitos ocultos sob ela. As crises emergentes precisam ser tratadas na improvisação do dia a dia, deixando para trás uma variedade opaca e confusa de instituições mal articuladas.

Enquanto isso, a Europa é dividida por interesses nacionais concorrentes, investida de conteúdo nacional divergente e transformada em um veículo de ambições nacionais conflitantes, nenhuma das quais pode ser admitida. Os operadores políticos se tornaram altamente qualificados para substituir o simbolismo sentimental por um argumento público sóbrio. O sistema político europeu resultante, enquanto supera progressivamente a democracia nacional, tornou-se inescrutável para os cidadãos nacionais – um resultado que é dificilmente acidental. Este artigo tenta desvendar as muitas convoluções da política europeia e traçar como a interação crítica entre o nacional e o supranacional está evoluindo na Europa.

Alemanha: o centro em colapso

A Alemanha, sob o comando de Angela Merkel, costumava se considerar um brilhante exemplo de estabilidade política, mas as mesmas forças de fragmentação e divisão entre e dentro dos campos políticos, que atingiram outras democracias capitalistas, também estavam presentes na Alemanha, operando sob a superfície e aparecendo em vários disfarces. Na eleição de 24 de setembro de 2017, os dois partidos de centro, CDU/CSU e SPD (União Democrata-Cristã/União Social-Cristã e Partido Socialdemocrata), que formaram a grande coalizão de Merkel III e dominaram juntos a política alemã desde os anos 1950, ganhou não mais do que um combinado 53,4% dos votos. Desse total, apenas 20,5% foram para o SPD. Isso em comparação com os 67,2% (SPD com 25,2%) quatro anos antes. Em 2005, nas eleições que levaram a Merkel I (também uma grande coalizão), o total de votos combinados foi de 69,4% (SPD com 34,2%).

É indicativo da nova volatilidade da política alemã que uma política extremamente hábil, como Merkel, poderia ter interpretado mal o eleitorado em 2017. A política de refugiados de Merkel foi calculada, entre outras coisas, para abrir caminho para uma coalizão com o Partido Verde.[2] Em vez disso, ajudou dois novos partidos, a Alternativa para a Alemanha (AfD) e o Partido Democrático Liberal (FDP),[3] a se assentarem no Bundestag, com 12,6% e 10,7% dos votos, respectivamente. Enquanto a AfD é apaixonadamente anti-imigração, o FDP se opõe à imigração por asilo e defende um regime de imigração orientado para o mercado de trabalho.

Depois que a desejada nova maioria de Merkel com os verdes não se concretizou, a substituição da grande coalizão anterior exigiu que o FDP se unisse ao governo como terceiro (ou quarto) parceiro.[4] A nova coalizão potencial passou a ser coloquialmente conhecida como “Jamaica”, referindo-se às cores da bandeira do país e o código de cores usado para identificar seus possíveis partidos (preto para a CDU/CSU, verde para os verdes, e o amarelo para o FDP). A Jamaica falhou em novembro de 2017, após quatro semanas de intensas conversações “exploratórias”, quando o FDP desistiu no último minuto.

Aparentemente, isso foi devido à prática de Merkel de arruinar parceiros desobedientes da coalizão no passado –  memórias revividas durante as negociações com a impressão de que uma harmonia profunda e preestabelecida entre Merkel e os verdes afastaria os ministros do FDP em um futuro governo conjunto.

A retirada do FDP deixou apenas o SPD como um parceiro de coalizão viável para Merkel, mas a resistência dentro do SPD para outra grande coalizão foi intensa. O SPD havia sofrido mais com a grande coalizão de 2013–17 e estava se recuperando de seu pior desempenho eleitoral de todos os tempos. Esperando a “Jamaica”, a liderança do SPD se comprometeu imediatamente após a eleição para a renovação como um partido na oposição. Entretanto, essa posição mudou três meses depois, quando o presidente federal, um socialdemocrata derrotado por Merkel em 2009, lembrou o SPD de sua “responsabilidade nacional”. Sentindo como se a escolha fosse entre morte e suicídio, o SPD concordou em conversar com a CDU/CSU, o que levou duas semanas em janeiro de 2018. Uma convenção do partido em 21 de janeiro aprovou estritamente as negociações formais. Duas semanas depois, essas negociações produziram um acordo preliminar de coalizão, que teve que ser votado pelos membros do SPD.

Em muitos pontos, o rascunho do acordo continha a caligrafia do SPD. Merkel, indiferente como sempre à substância, fez concessões de longo alcance para tornar o acordo palatável para os membros do SPD. O preço que ela pagou foi gerar a impressão de que apenas estava preocupada em permanecer no poder. O descontentamento cresceu mesmo em seu próprio partido quando ela concedeu três dos ministérios mais importantes para o SPD: Finanças, Relações Exteriores e Trabalho. Com o Ministério do Interior indo para a CSU, apenas pequenos departamentos foram deixados para a CDU de Merkel (além da chancelaria, é claro). Por um tempo, o partido pareceu cair em sua crise mais profunda desde que Merkel retirou Helmut Kohl da presidência honorária em 2000.

O SPD também começou a fraturar depois que o esboço do acordo foi publicado. A oposição a outra grande coalizão era forte, independentemente do resultado das negociações. Muitos temiam que, depois de mais quatro anos sob Merkel, o partido acabasse ficando atrás do AfD. Enquanto o referendo ainda estava em curso, Martin Schulz, o desafortunado candidato a chanceler e inepto líder do partido desde o início de 2017, foi forçado a renunciar ao cargo de chefe de partido e futuro ministro das Relações Exteriores (posto que ele reivindicara para si, depois de ter descartado categoricamente servir em um gabinete de Merkel). Pouco depois, Merkel nomeou vários novos rostos, metade deles mulheres, para os seis cargos restantes do gabinete da CDU. Isso silenciou seus adversários internos do partido por enquanto. Em 4 de março, foi anunciado que dois terços dos membros do SPD (com um comparecimento de 78%) haviam votado a favor de outra grande coalizão, com muitos votando por medo de que novas eleições gerais resultassem em outra derrota mais grave. Em 14 de março, o Bundestag elegeu Merkel para um quarto mandato como chanceler.[5]

Crucialmente, o caminho tortuoso para uma grande coalizão renovada levantou a questão do futuro de Merkel. Até a onda de imigração de 2015, Merkel havia dominado seu partido mais do que Kohl, mudando de direção à vontade, vestindo a CDU em cores esverdeadas e de centro-esquerda, eliminando todos que a desafiassem pela sucessão. Isso a ajudou na crise pós-eleição quando, após a aposentadoria do ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, não restou ninguém que pudesse realisticamente alegar sucedê-la sem seu consentimento.

Ainda assim, após os desastrosos resultados eleitorais, o atraso de meio ano na formação de um governo e as desajeitadas concessões necessárias para montar uma coalizão, parecia improvável que seu partido a indique para um quinto mandato em 2021. Isso significa que seu sucessor deveria ser escolhido até o verão de 2020 para dar tempo suficiente para a campanha. Em outras palavras, mais ou menos no meio do seu quarto mandato, Merkel se transformará em uma espécie de pato manco. Além disso, não só o longo período de formação do governo reduziu sua vida útil no cargo, mas também o cronograma eleitoral regional. Nenhuma decisão politicamente difícil poderia ser tomada antes das eleições da Baviera, em outubro de 2018 – certamente não em assuntos “europeus”.

Europa na Alemanha

A política nacional alemã é um fator crucial na política da Europa, assim como a Europa é uma poderosa presença interna na Alemanha. O “consenso permissivo” que, por várias décadas, permitiu que a integração europeia prosseguisse sem obstáculos era mais forte na Alemanha do que em outros lugares, exceto talvez na Itália.[6] Até hoje, a “Europa” carrega algo como uma aura sagrada na Alemanha, muito elevada para ser vinculada a conceitos sujos como o interesse nacional.[7] As principais fortalezas do europeísmo alemão são as classes médias educadas e a geração jovem, para quem a Europa representa tudo o que é virtuoso e agradável – da paz, direitos humanos, tolerância e “abertura” a um mercado de trabalho internacional e viagens convenientes através das fronteiras.

Refletindo as dificuldades de se identificar com uma nação alemã depois de 1945, há muito tempo o sentimento pró-europeu alemão considera evidente que a UE é, em última instância, o navio no qual as nações europeias podem abrir mão de seus Estados, identidades e interesses separados. Ainda que outros Estados-membros possam ter se unido à UE para restaurar ou preservar sua soberania nacional, a Alemanha está na UE para se livrar dela, acreditando firmemente que isso também vale para todos os outros.[8]

Isso, é claro, não significa que o europeísmo alemão fosse (e não é) orientado por interesses. A adesão à CEE na década de 1950 foi necessária para o ressurgimento da Alemanha Ocidental como Estado soberano. Além disso, o acesso garantido a um mercado europeu integrado e em constante expansão era e é indispensável para a prosperidade da economia alemã super-industrializada e exportadora. Hoje, o acesso ao mercado é assegurado pela moeda comum, que também deprime artificialmente a taxa de câmbio das indústrias alemãs que exportam para o resto do mundo.[9] Na consciência pública alemã, no entanto, os interesses materiais alemães na “Europa” são sobrepostos por uma imagem de a UE, incluindo a UEM, como uma “comunidade de valor” (Wertegemeinschaft). Isso ofusca a pergunta estrutural de como a Europa é, e deveria ser, organizada política e economicamente: como uma zona de livre comércio, uma plataforma de cooperação entre Estados-nação soberanos, uma organização internacional devotada à “globalização” das economias nacionais, ou um super-Estado supranacional – e como ela, em particular, deve estar relacionado com a democracia nacional. Já que qualquer discussão sobre essa questão poderia minar a “Europa” como um símbolo integrador – acordando cães adormecidos e expondo a superficialidade de um consenso pró-europeu meramente idealista – é cuidadosamente evitada. A incomparável capacidade de discurso sem conteúdo de Merkel foi inestimável para preservar a aparência “verde”, sem juros, do europeísmo alemão, que é tão atraente para os eleitores da classe média.

Uma conclusão é que, na Alemanha, os interesses nacionais tendem a ser confundidos com os interesses europeus gerais.[10] Quando outros países distinguem um do outro, os alemães ficam honestamente intrigados, e a distância entre a perplexidade e a  desaprovação moral é pequena. Na Alemanha, não estar entusiasmado com a “união cada vez mais estreita dos povos da Europa” da UE (Tratado de Maastricht) é considerado indicativo de um déficit moral: basta testemunhar a condenação moral universal da decisão britânica de sair da UE. Afirmar os interesses nacionais em face de algo tão sagrado como “a ideia europeia” é considerado um lapso deplorável em um passado desacreditado. Enquanto isso, a insistência alemã em um mercado integrado no qual nenhum país é autorizado a trapacear a indústria alemã, desvalorizando sua moeda, não é visto como a defesa de um interesse nacional, mas como a obediência a um imperativo moral.

A perspectiva de interesses nacionais alemães se dissolverem em um interesse comum europeu, ou uma “ideia europeia”, é mais popular entre os Verdes, mas também é compartilhado por um considerável segmento de eleitores e membros do SPD, embora não esteja claro ainda seu número exato. Quando Sigmar Gabriel percebeu no início de 2017 que o SPD estava farto dele como presidente e candidato a chanceler, ele chamou Martin Schulz, um ex-presidente do Parlamento Europeu, que não conseguiu avançar para a presidência da Comissão Europeia, para assumir as duas posições pelo SPD.[11]

Como Schulz não tinha experiência em políticas alemãs, a ideia, aparentemente, era que o SPD se beneficiasse de sua aura “europeia”. Curiosamente, no entanto, Schulz optou por não fazer campanha sobre a “Europa” – nunca mencionou o assunto ao conselho de sua equipe -, mas sobre “justiça social”, uma decisão que, mais tarde, considerou um de seus muitos erros. Provavelmente para corrigir esse erro percebido, Schulz, inesperadamente, convocou os “Estados Unidos da Europa” em uma convenção do SPD em 7 de dezembro de 2017, a ser concluída “o mais tardar em 2025”. Os países que não quiseram participar teriam para sair da UE – a frase “Estados Unidos da Europa” nunca mais ressurgiu.

Enquanto isso, as negociações da “Jamaica” fracassaram, principalmente por causa das suspeitas do FDP de que Merkel e os verdes já haviam chegado a um acordo tácito de oferecer concessões fiscais substanciais à França.[12] Em resposta, instigados por suas conexões francesas, Schulz e Gabriel insistiram que o capítulo do acordo de coalizão sobre a “Europa” deveria vir em primeiro lugar, o que foi celebrado pela grande mídia como um importante passo em frente.[13] Alegadamente Schulz e seus antigos companheiros-camaradas, Jean-Claude Juncker da Comissão Europeia foi coautor com Merkel da parte do acordo relacionada à Europa, programaticamente agnóstico como sempre, agitando-o inalterado. A esperança, porém, de que isso geraria entusiasmo entre os membros do SPD por Schulz e outra grande coalizão foi logo frustrada. Quando Schulz, em seu discurso na convenção partidária de janeiro, falou mais uma vez sobre Emmanuel Macron tê-lo chamado para exigir que a formação do novo governo fosse acelerada, os delegados riram desdenhosamente, para surpresa dos jornalistas alemães.

Passivos vencidos

Entre os legados de Merkel III está uma fragmentação sem precedentes do sistema partidário alemão, com a AfD estabelecendo uma presença considerável no Bundestag, e o FDP um pouco menor. Ambos chegaram lá após a abertura da fronteira de Merkel em 2015. Em comparação com outros países, os seis ou sete partidos parlamentares da Alemanha (dependendo de como se conta a CSU) podem não parecer excessivos. Porém, dois deles, o AfD e o Linkspartei, que juntos representam 22% do eleitorado, são tratados como renegados pelos demais. Isso os exclui de qualquer maioria do governo e é uma das razões pelas quais a formação do governo Merkel IV foi tão difícil (na Alemanha Oriental, as duas partes juntas representam cerca de 40% dos votos).[14]

O parlamento alemão é um órgão potencialmente bastante poderoso, desde que use seus direitos. Sob Merkel III, muitas vezes não conseguiu fazê-lo. Quando se tratava da “Europa”, em particular, ambos os partidos da oposição, os Verdes e a Esquerda, estavam ansiosos para proteger sua reputação “pró-europeia” por não serem muito inquisitivos. Agora, se a AfD aprende as cordas parlamentares, isso vai mudar. E enquanto o FDP, como um partido liberal, é claramente “pró-europeu”, é também um porta-estandarte da tradição ordoliberal alemã. Portanto, não se cansará de recordar ao governo de princípios, como os do Tratado de Maastricht, que a chancelaria afirma em público subscrever, mas que muitas vezes foram desprezados na prática. A AfD, por sua vez, sendo clamorosamente anti-imigração, não perderá nenhuma oportunidade de exigir acesso a informações governamentais politicamente sensíveis sobre este assunto.

No que diz respeito à Europa, Merkel III atingiu seu objetivo primordial: o resgate do euro como moeda comum. Esta não é uma conquista menor dada a contribuição essencial do euro para a prosperidade alemã. Além disso, todavia, o legado europeu de Merkel está repleto de passivos potencialmente destrutivos.

O convite repentino em setembro de 2015 para o que se tornaria a entrada de cerca de um milhão de migrantes na Alemanha – e, ipso facto, na zona Schengen e na União Europeia – atendia às necessidades alemãs, domésticas e internacionais, e foi ampliado sem consulta aos parceiros europeus da Alemanha. Internamente, pretendia-se preparar uma mudança de coalizão em 2017, ajudando Merkel a superar a imagem da “rainha do gelo” que havia contraído quando, no início de 2015, ela explicou ao vivo, em um programa de TV, a uma jovem refugiada palestina chorando que estar prestes a ser deportada que “não podemos ficar com todos vocês”. Na esfera internacional, ela respondeu “com um rosto amistoso” à controvérsia sobre o último diktat de “austeridade” contra a Grécia em junho de 2015, o que provocou uma onda de charges em toda a Europa retratando Merkel e Schäuble em uniformes da Wehrmacht, adornados com suásticas.

Entre outras coisas, a abertura da fronteira causou uma profunda ruptura com a Europa Oriental, que se aprofundou ainda mais quando países como Hungria e Polônia foram ameaçados por Merkel e Schulz com um corte nos subsídios da UE, a menos que concordassem em receber uma parcela fixa de um número indefinido de novos imigrantes. A política de imigração alemã de 2015 também pode ter sido a última gota no balde em favor do referendo do Brexit de junho de 2016.

Não menos destrutivo foi outro aspecto da liderança europeia da Alemanha. A política alemã tem sido caricaturada por seus críticos como excessivamente íntegra e inflexível, de acordo com os estereótipos da rigidez “teutônica”. Porém, isso se baseou principalmente na retórica de Merkel, seu partido, o Bundesbank e o Conselho Alemão de Assessores Econômicos. O que raramente foi notado é que estes últimos eram muitas vezes igualmente críticos ao governo de Merkel, mas por serem muito complacentes. De fato, em uma inspeção cuidadosa, Merkel III encorajou tacitamente o BCE e a Comissão Europeia a olharem para o outro lado quando, por exemplo, a França ultrapassasse seu limite de endividamento, ou o Estado italiano precisava refinanciar seu sistema bancário “flexivelmente”, contornando as regras de Maastricht.[15] Para manter o campo político de Merkel unido, isso não poderia ser admitido publicamente. O custo dessa duplicidade era ser possível incitar o descontentamento popular com a “rigidez” alemã no exterior, às vezes culminando em pedidos de reparações por crimes de guerra alemães, ou em veredictos de tribunais italianos autorizando a tomada de propriedades do governo alemão, como instalações de Instituto Goethe na Itália.

Entre as elites europeias, as concessões desconhecidas de Merkel parecem ter sido apreciadas, pois ajudaram a manter os novos “populistas” fora do poder. Com o tempo, no entanto, como a situação no Mediterrâneo continuou a se deteriorar, a permissividade alemã teve de ser complementada com promessas informais de reformas da Zona do Euro depois que o mandato de Merkel foi renovado. Não há, é claro, nenhum registro público de que tais promessas foram realmente feitas, mas sem elas é difícil imaginar como as demandas europeias por mudanças institucionais fundamentais poderiam ter caído tão silenciosamente durante toda a campanha eleitoral alemã.

A estratégia de Merkel pode ter sido inspirada na memória de Helmut Kohl, que foi amplamente venerado por aceitar o projeto quando não havia outra maneira de resolver as tensões entre os países membros da UE, especialmente as disputas envolvendo a Alemanha.[16] À medida que as faturas aumentaram de tamanho, particularmente depois da união monetária, a generosidade alemã atingiu seus limites, e a austeridade de Schäuble sucedeu à generosidade de Kohl como a contribuição prototípica alemã para a integração europeia.

O problema fundamental com as promessas alemães de fazer futuros reparos estruturais no edifício europeu, às custas da Alemanha, foi e é inevitavelmente cada vez mais irrealista, tanto econômica quanto politicamente. Pouco é tão destrutivo nas relações internacionais quanto expectativas irrealistas, especialmente quando encorajadas por uma negação moralista dos interesses nacionais e sua substituição por “valores”.

O estilo de liderança pessoal de Merkel – que sempre se baseou em questões difíceis por meio da ambiguidade habilmente elaborada e, mais muitas vezes, fala ininteligível – pode tê-la ajudado por um tempo. Contudo, no final das contas, quando a situação é crítica, o risco é que sua capacidade limitada seja encarada como má vontade, e a incapacidade de entregar é vista como falta de vontade. A defesa ultra posse é barrada quando a desaprovação moral impede um ajuste realista das expectativas. A distância entre o prometido e o possível é identificada como um problema moral e não político ou econômico, e a decepção resulta em uma retórica altamente inflamável, emocional e hostil.

Desde a crise do euro depois de 2008, a política europeia de Merkel consistiu em sucessivas correções de curto prazo para o que eram e continuam sendo os problemas estruturais, acompanhados de sinais de futuros remédios estruturais quando as condições políticas na Alemanha estivessem boas. A perspectiva de uma coalizão com os verdes era útil para isso, e também os socialdemocratas, como Gabriel e Schulz. O primeiro como ministro das Relações Exteriores e o segundo como candidato a chanceler tentaram pontuar entre os eleitores alemães europeus, repetidamente anunciando contribuições alemãs maiores à “Europa” a serem dadas unilateral e incondicionalmente, e geralmente prometendo um “fim à austeridade” por meio de aumento de um tipo não especificado de “investimento”. Quando Schulz deixou claro que estava planejando suceder Gabriel como ministro das Relações Exteriores, os jornais italianos se tornaram mais sentimentais quanto à perspectiva de um governo alemão “verdadeiramente europeu”. Finalmente, a Alemanha estaria disposta a reciclar o superávit comercial alemão – presumivelmente localizado no porão do Bundesbank – para quem pertencia por direito: a Itália.[17] Poucos dias depois, Schulz desapareceu no turbilhão pós-eleitoral do SPD.

Expectativas como essas fazem parte do difícil legado europeu de Merkel e seu parceiro de coalizão do SPD que agora terão que ser dolorosamente resolvidos. Após o desaparecimento de Schulz, a nova estrela do SPD se tornou um Olaf Scholz, designado para ser ministro das Finanças e para representar o SPD no gabinete como vice-chanceler. Scholz, ao contrário de Schulz, é um político experiente que havia sido ministro do Trabalho em Berlim e anteriormente serviu como prefeito de Hamburgo (uma terra sob a constituição alemã). Um socialdemocrata fiscalmente conservador, Scholz foi um dos gerentes da Agenda de Schröder 2010. Apesar de conhecer em primeira mão os problemas que os Länder (estados alemães) e as comunidades locais têm em seus orçamentos, Scholz é um defensor vigoroso do “freio da dívida” imposto pela Alemanha a si mesma, a nível tanto nacional como estadual. Entretanto, após o desaparecimento de Schulz, a imprensa europeia preferiu ficar entusiasmada com Scholz – acreditando que, seja com Schulz ou Scholz, o SPD no governo manteria sua retórica sobre as responsabilidades alemãs com a “absorção de choque”, “investimento” na Europa e “solidariedade”.

Wolfgang Streeck é sociólogo econômico e Diretor Emérito do Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades, tendo se aposentado da posição de Diretor efetivo em 2014 após 19 anos no cargo. Autor de ampla obra sobre economia política da Alemanha, propõe abordagem dialética na Economia Institucional e publicou a respeito da ascensão do neoliberalismo como o surgimento de um “Estado-endividado”. Também é autor de obra crítica ao capitalismo e participa de debates públicos sobre o neoliberalismo, austeridade e o futuro da União Europeia.

Fontes:

[1] – Herfried Münkler, Macht in der Mitte: Die neuen Aufgaben Deutschlands in Europa (Hamburg: Körber-Stiftung, 2015).

[2] – Esta foi uma segunda tentativa após a “virada de energia” (Energiewende) após o desastre de Fukushima Daiichi de 2011. Surpreendentemente, em 2013, isso não foi suficiente para fazer a ala esquerda dos verdes renunciar a planos de reforma tributária como condição para ingressar no governo. Desde então e por causa disso, a ala centrista dos verdes ganhou a vantagem.

[3] – O FDP retornou após sua experiência de quase morte em 2013, quando, como parceira júnior de Merkel por quatro anos, ele não conseguiu, com 4,8%, para ultrapassar o limite de 5% dos votos.

[4] – CDU e CSU são formalmente duas partes separadas, mas a CSU só lança candidatos na Baviera, e a CDU apenas fora da Baviera, o que os torna, em seu jargão, “partidos irmãos”. Desde a década de 1950, a CSU governou o Land da Baviera, quase sempre com maioria absoluta. Em parte, isso se deve à sua presença distinta no nível federal, onde representa agressivamente os interesses e sentimentos bávaros, se necessário, em conflito com a CDU. Na verdade, isso controla quaisquer tendências separatistas que ainda existam na Baviera.

[5] – Dos 399 votos combinados da CDU/CSU e do SPD, Merkel recebeu 364, uma diferença de 35 e apenas 9 a mais do que o necessário para a maioria absoluta necessária.

[6] – Leon N. Lindberg e Stuart A. Scheingold, Europe’s Would-Be Polity: Patterns of Change in the European Community (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1970).

[7] – Qualquer distinção entre a Europa, o continente, e a “Europa” como uma forma idealizada da União Europeia é algo que os aficionados desta última fazem tudo o que podem para desfocar.

[8] – Alan Milward, The European Rescue of the Nation-State (London: Routledge, 1992).

[9] – Fritz W. Scharpf, “Forced Structural Convergence in the Eurozone — Or a Differentiated European Monetary Community,” MPIfG Discussion Paper 16/15, Max Planck Institute for the Study of Societies, Cologne (2016).

[10] – Nesse aspecto, se em nenhum outro, a política interna alemã se assemelha à de um país (potencialmente) hegemônico. O mesmo se aplica, é claro, à França – os franceses imaginam os interesses europeus como idênticos aos interesses franceses, enquanto os alemães imaginam os interesses europeus como negando ou substituindo todos os interesses nacionais, inclusive os alemães. Enquanto ambos os lados evitam com tato levantar a questão, os dois conceitos podem coexistir mais ou menos confortavelmente.

[11] – Sobre esta e a subsequente campanha eleitoral, ver Markus Feldenkirchen, Die Schulz-Story: Ein Jahrzwischen Höhenflug und Absturz (München: Deutsche Verlags-Anstalt, 2018).

[12] – Observe que Macron teria alegado antes da eleição que, “se o FDP entrar no governo alemão, eu morrerei”. Mais sobre isso abaixo.

[13] – Ambos trabalharam duro durante todo o ano para aumentar sua imagem ao se encontrar com Macron e ocasionalmente almoçar com o filósofo Jürgen Habermas, pelo menos uma vez junto com o próprio Macron. Gabriel chegou a declarar Macron um socialdemocrata, e Habermas deixou claro que Macron estava prestes a abolir “a trágica divisão entre direita e esquerda na política francesa”. Quando o SPD estava se preparando para descartar Gabriel como ministro do Exterior, Habermas pediu em um artigo da revista semanal Die Zeit, que ele fosse mantido no cargo, por conta de seu europeísmo visionário. Sobre as excentricidades de Gabriel, ver Feldenkirchen, Die Schulz-Story (2018).

[14] – A renda per capita da Alemanha Oriental tem sido, durante muitos anos, cerca de três quartos da média alemã, apesar das transferências financeiras anuais para cerca de 4% do PIB alemão. As implicações da persistente persistência da desigualdade regional, mesmo em um Estado federal como a Alemanha, na política e na economia da Zona do Euro raramente são discutidas. Veja Wolfgang Streeck e Lea Elsässer, “Disunion Monetary: The Domestic Politics of Euroland”, Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades, Colônia (2014), Paper de Discussão 14–17.

[15] – Johannes Becker e Clemens Fuest, “Deutschlands Rolle na UE: Planloser Hegemon. Ein Gastbeitrag, “Frankfurter Allgemeine Zeitung, 13 de dezembro de 2016.

[16] – Veja a Alemanha pagando a maior parte dos custos da Política Agrícola Comum (PAC), que beneficiou principalmente a França, em troca de mercados abertos para o seu setor manufatureiro.

[17] – Pode-se suspeitar que isso foi em grande parte para impedir uma maioria anti-euro nas próximas eleições italianas. Se foi, falhou espetacularmente

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