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A “fuga” de cérebros como política de estado: do século 17 aos nossos dias

Crianças sequestradas, importação de acadêmicos e “fuga” dos trabalhadores: o roubo de cérebros é uma política para diminuir a autonomia de países rivais.
por João Melato | Revista Opera
“Nós não cruzamos as fronteiras; as fronteiras que nos cruzaram.” (Foto: Jonathan McIntosh)

Um dos conceitos importantes para entender alguns dos acontecimentos do mundo atual é o de “roubo de cérebros”. O termo designa a imigração dos indivíduos mais capazes do ponto de vista técnico (como médicos, cientistas, engenheiros e mesmo artistas) rumo a países centrais da economia mundial.

Por vezes chamado de “fuga de cérebros” ou “fuga de capital humano”, trata-se de um fenômeno bastante relevante no mundo atual. Segundo dados do SELA, a quantidade de pessoas graduadas em ensino superior que deixaram um país latino-americano para algum dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aumentou em 155% entre 1990 e 2007. Aproximadamente cinco milhões de médicos, engenheiros, arquitetos e outros profissionais latino-americanos deixaram o continente em 2007, e 80% deles rumaram aos Estados Unidos.

Mais recentemente, sofreram forte oposição entre a mídia e a burguesia norte-americanas as tentativas do presidente Donald Trump de mitigar o visto H1B, o chamado “visto dos gênios”, que garante a pesquisadores estrangeiros condições de moradia e estudo nos EUA por um certo período. Após os protestos dos “senhores do dinheiro”, Trump recuou de sua política – baseada no buy american, hire american (Compre Americano, Contrate Americano) – e anunciou reformas no programa, planejando inclusive uma forma de cidadania norte-americana aos pesquisadores estrangeiros.

Também é recente o caso de uma equipe brasileira que tentava desenvolver um chip para devolver movimentos a pessoas tetraplégicas encerrou suas atividades devido ao subfinanciamento no Brasil. Uma das pesquisadoras se mudou para os EUA, onde recebeu uma oferta de trabalho.

Não faltam economistas para teorizar sobre os efeitos “positivos” da fuga de cérebros para os países dos quais esses trabalhadores qualificados vão embora. Para eles, a imigração em massa de indivíduos talentosos rumo aos países centrais é um fenômeno mais ou menos espontâneo e, em geral, benéfico para os dois (ou mais) países envolvidos. Argumentam que os países dos quais os cérebros “fogem” recebem conhecimentos úteis do exterior, na medida em que os intelectuais imigrados trazem de volta, direta ou indiretamente, saberes adquiridos nos países centrais. Outro argumento utilizado é o de que os países de origem se beneficiam do ponto de vista político, já que os intelectuais no exterior se tornariam adeptos de valores democráticos, contribuindo para a derrubada de ditaduras em suas pátrias.

Mais para a frente discutiremos esse assunto, mas neste artigo pretendemos chamar a atenção do leitor para um aspecto particular da coisa. Essencialmente, o roubo de cérebros pode ser considerado como uma política de Estado empregada pelos países imperialistas para diminuir a autonomia tecnológica de países rivais (sejam eles países imperialistas rivais ou países dependentes), constituindo-se numa importante arma para a concorrência internacional. Como veremos, o fato de esse fenômeno se dar, por vezes, de maneira mais ou menos espontânea não anula essa constatação.

Isso fica mais claro quando voltamos nossos olhares para um momento anterior da história do capitalismo e dos Estados-nacionais. Olhemos para a Europa do século 17, que viria a ser devastada pela Guerra dos Trinta Anos, opondo estados católicos e protestantes, e que vivenceria um período de sucessivas revoluções na Inglaterra, que teriam consequências em todo o continente.

A diáspora irlandesa

Embora seja inútil procurar pela “origem histórica” de um fenômeno complexo como as políticas de roubo de cérebros, o século XVII europeu é marcado pelo aparecimento, em forma embrionária, de estruturas que caracterizam o aparelho estatal como nós o conhecemos. Assistíamos então à montagem de exércitos regulares (para além das milícias provinciais ligadas a grandes donos de terra), de um corpo diplomático profissional, de uma imprensa estatal voltada à legitimação pública da política externa, etc.

Data dessa época o próprio conceito de razão de estado e dos interesses específicos do poder estatal relativamente acima tanto dos interesses religiosos (daí a aliança da França com os estados protestantes contra a Espanha) quanto dos interesses dos diversos estamentos corporativos da sociedade civil (daí as propostas de encerrar ou mitigar a isenção fiscal do clero e da nobreza). Isso não significava, é claro, que o clero ou a nobreza tenham deixado de gozar de privilégios corporativos, ou que ao Terceiro Estado tenha sido garantida alguma igualdade de condições. Não se tratava do desmantelamento das antigas estruturas feudais de governança, mas antes de uma convivência entre essas estruturas e outras novas, ligadas ao poder real [1].

Em 1595, o Estado britânico estendeu pela primeira vez o seu domínio sobre a totalidade do território irlandês, com o objetivo de impor a reforma anglicana à ilha católica. Neste ano, os ingleses subjugaram a rebelião dos lordes de Ulster, e ao fazê-lo estenderam suas plantations por toda a ilha, concedendo terras para colonos ingleses e escoceses que desejassem levar à frente o projeto de reforma religiosa, ou simplesmente ansiosos por ganhar a vida com as oportunidades que uma conquista colonial oferecia. Entre 1549 e 1595, muitas das principais linhagens da nobreza gaélica foram totalmente expropriadas, e os remanescentes foram sujeitados à Coroa britânica e passaram por um processo de assimilação cultural.

Consequentemente, muitos irlandeses viram-se forçados a deixar a ilha para fugir das perseguições. Um primeiro grupo de refugiados eram os clérigos, que buscavam auxílio em Roma, armavam-se de bases teológicas e retornavam. A relevância desse grupo é significativa, já que em 1653 o governo britânico ordena a expulsão de mil padres do território irlandês.

Um segundo grupo era levado a deixar a Irlanda em razão da perseguição política, ou era atingido pelas políticas de despossessão. Composto por negociantes, profissionais, soldados e nobres, esse grupo forma a base demográfica dos vários destacamentos de mercenários irlandeses com os quais as potências europeias, em particular França e Espanha, reforçavam seus exércitos e sua administração pública nos séculos 17 e 18. No contexto da Guerra dos Trinta Anos, os franceses tentaram favorecer um movimento de retorno dos irlandeses exilados à ilha, para evitar o seu recrutamento pelos espanhóis.

Chegamos a uma primeira conclusão: a assim chamada “fuga de capital humano” não pode ser considerada fora do contexto internacional da concorrência entre os Estados e ela assume com facilidade a característica de uma disputa por recursos militares e tecnológicos. Na segunda parte desse artigo, analisaremos brevemente a diáspora dos cidadãos protestantes franceses, conhecidos como huguenotes, e traçaremos consequências práticas do que viemos discutindo.

Antes, cabe notar que um caso como o irlandês é tratado pelos porta-vozes do imperialismo como sendo uma guerra civil religiosa. Todas as rebeliões irlandesas do século 20 foram tratadas como uma espécie de sectarismo católico, mas em realidade mesmo no século 16 as consequências sociais e econômicas da ocupação colonial do território irlandês já ultrapassavam a esfera religiosa por muito. Uma das artimanhas mais traiçoeiras do imperialismo é apresentar conflitos que dizem respeito à opressão colonial e à luta de classes como conflitos puramente “religiosos”, como acontece também com a ocupação sionista na Palestina. O intelectual palestino Edward Said denunciava que isso tem a ver com a ideologia do “choque de civilizações”, que tenta dar uma justificativa para as guerras imperialistas a partir da ideia de um embate natural e inevitável entre diferentes culturas.

“São necessários vinte anos para formar um bom marinheiro”

Migrar é uma atividade humana, comum a toda a espécie e presente em todos os momentos de sua história. É também um direito humano reconhecido universalmente. No entanto, os padrões da emigração humana estão sujeitos a enormes variações através do tempo, dependendo dos diferentes modos de produção e das disputas políticas, religiosas e culturais concretas – a migração também possui a sua história.

Em 1681, preocupado com os acontecimentos na Inglaterra e tendo em sua cabeça o estereótipo do cidadão huguenote como um rebelde subversivo, Luís XIV atende às pressões do clero e autoriza as dragonadas contra os protestantes. Os soldados reais, conhecidos como dragões, eram enviados às casas de cidadãos e os torturavam até que renunciassem à fé reformada. Os intelectuais católicos justificavam a prática como um “mal necessário” à salvação, se não daquelas pessoas, ao menos de seus descendentes, que seriam educados na fé católica. Em 1685, Luís XIV declara que já não há mais huguenotes na França, revoga suas garantias legais remanescentes e instrui às autoridades locais que qualquer protestante encontrado deve ser tratado como um herege relapso.

Imigração de huguenotes franceses em Berlim no século 18. Xilogravura de Daniel Chodowiecki (1771).

Estima-se que cerca de 300 mil pessoas deixaram a França nos anos que se seguiram, normalmente cidadãos com alguma renda ou conexões que os permitiam fugir. Em 1723, o governador de Brouage solicita a Luís XV a autorização de dispensar os “novos convertidos” da obrigação da comunhão, uma vez que muitos deles fugiam do país para evitá-la, “e como muitos estão entre os melhores marinheiros da Europa” sua fuga era prejudicial ao Estado. Ele acrescenta: “são necessários 20 anos para formar um bom marinheiro”, de forma que não se devia perdê-los por um descuido, já que, todos sabiam, os “novos convertidos” não eram convertidos em sua consciência íntima.

Em 1751, diante da recusa do clero em se submeter a um novo imposto, criado por ocasião da Guerra de Sucessão Austríaca, o Controlador-Geral de Finanças Jean-Baptiste Machault decide estimular a renda nacional de outra forma: trazendo de volta homens de negócio exilados em razão de sua fé protestante. A iniciativa acabou paralisada pelos protestos dos clérigos e particularmente dos jesuítas, mas serviu para consolidar na opinião pública a noção de que, longe de favorecer os interesses estatais através da expulsão de uma seita subversiva, o Édito de Fontainebleau de 1685 havia estimulado a dispersão de indivíduos que eram benéficos à riqueza da nação.

Nessa década formulam-se diferentes propostas para a remediar a situação – a maior parte delas se detém somente na questão do direito ao casamento civil por parte dos protestantes, não chegando a propor que eles voltem a ter direito a ocupar cargos públicos. Um importante pastor, Antoine Court, chega até a reforçar essa proposta dizendo que, excluídos dos cargos públicos, os homens de negócio seriam estimulados a acumular mais e mais riquezas e, assim, a desenvolver a renda nacional. A necessidade de evitar o fortalecimento de potências rivais vai, aos poucos, se sobrepondo às exigências religiosas e à máxima “um Rei, uma lei, uma fé” (un Roi, une loi, une foi).

No contexto da Guerra dos 7 Anos, os ingleses possuíam um poderoso aliado em solo francês: o pastor Jean-Louis Gilbert, que liderou um movimento de imigração em massa de protestantes da região do Languedoc para a Irlanda, aonde assumiram funções como colonos, ou seriam enviados para o mesmo serviço às colônias norte-americanas.

O conflito militar que opôs a Inglaterra às suas rivais bourbônicas Espanha e França envolvia, em grande parte, o controle do mundo colonial. Nos 7 anos do conflito de facto, os ingleses tiveram diversas conquistas no Canadá, no Caribe e na Índia, arrancando diversas possessões coloniais das mãos francesas e hispânicas. A emigração em massa de huguenotes, realizada em 1763, deve ser entendida também no contexto de uma medida de sabotagem econômica levada a cabo pelos ingleses contra um estado rival.

Dependência tecnológica

Se no século XVIII enfraquecer os estados bourbônicos foi um passo importante para a hegemonia econômica e militar inglesa sobre o mundo (e consequentemente ao próprio desenvolvimento do capitalismo), é possível dizer que a imigração de força de trabalho qualificada ainda está ligada às rivalidades econômicas e à questão militar?

Por um lado é verdade que não é mais comum vermos países alimentando suas Forças Armadas com batalhões de refugiados estrangeiros, nem vermos diferentes países disputando o recrutamento desses refugiados, como franceses e espanhóis fizeram em relação aos irlandeses que fugiam da opressão colonial inglesa. Por outro lado, o assédio e o recrutamento de trabalhadores qualificados entre Estados rivais continua sendo uma importante medida de desestabilização econômica e militar. As formas e meios para se conseguir extrair “cérebros” de outros países mudaram, às vezes obedecendo somente às dinâmicas econômicas, o que dá a elas a aparência de “naturais” e “espontâneas”.

N’O Capital, Marx compara dois momentos da acumulação capitalista – um primeiro onde, para formar uma multidão de pessoas que não tenham nada para vender além da própria capacidade de trabalhar, os senhores de terra violentamente expulsaram milhares de camponeses de suas moradas e colocaram cercas em territórios antes considerados como comunais; e um segundo onde a própria concorrência do mercado capitalista leva os pequenos agricultores à falência, forçando-os a engrossar as fileiras do proletariado.

A isso Marx chamou “superpopulação relativa”: a tendência do capital de, ao se concentrar em poucas mãos, criar um excedente populacional “de reserva” – pessoas que, embora não possuam nada para vender a não ser sua força de trabalho, não são absorvidas pelo mercado de trabalho.

Ademais, a própria dinâmica da concorrência entre capitalistas impõe a tendência de se investir cada vez mais em capital constante (tecnologia, instalações, matéria-prima, etc.) e, assim, cada vez menos em capital variável (o custo de reprodução da força de trabalho). Os capitalistas que conseguem aumentar a composição orgânica do capital (a relação entre capital e capital variável) conseguem, pelo aumento da produtividade, vender a mercadoria com o preço flutuando um pouco abaixo do seu valor social médio. Assim, derrotam na concorrência os capitalistas que operam com baixa composição orgânica, que vendem a mercadoria com um preço flutuando um pouco acima de seu valor social médio. Todo o mais-valor produzido pelos trabalhadores do capitalista de baixa composição orgânica é transferido ao capitalista de alta composição orgânica, um fenômeno que Marx chamou de superlucro.

Esse mecanismo possui duas consequências que nos interessam aqui: primeiro, a médio-prazo ele leva alguns capitalistas à falência, reforçando a tendência à concentração do capital; segundo, dentro do curto-prazo ele leva vários trabalhadores ao desemprego, substituídos pelo novo maquinário. Reforça, assim, a superpopulação relativa, criando uma massa de trabalhadores que não são absorvidos pelo mercado de trabalho.

No contexto imperialista, a fusão entre capitalistas nacionais e investidores estrangeiros dá lugar tanto à exportação das relações de produção capitalistas quanto à crescente composição orgânica do capital, criando uma superpopulação relativa que é, ao mesmo tempo, integrada no mercado mundial como mercadoria (força de trabalho) pelas inovações em meios de circulação. Não é surpresa, portanto, que os trabalhadores da periferia migrem para o centro em busca de oportunidades. Isso permite, aliás, que o país exportador reduza seus níveis de desemprego ao passo que o país importador reduza o nível médio dos salários – algo que é bem recebido em países centrais, onde normalmente as conquistas do movimento operário impõem salários maiores.

Em partes, a “fuga” dos trabalhadores qualificados (ou cérebros) se inscreve nesse contexto mais amplo da migração da força de trabalho como um todo. A força de trabalho qualificada faz parte do exército industrial de reserva, e como tal, não é completamente absorvida mesmo pelo país que importa trabalhadores – essa tese é confirmada pelo já mencionado informe do SELA, segundo o qual mais de 60% dos profissionais latino-americanos com diploma universitário que migram para países centrais acabam trabalhando em funções que não correspondem à sua formação.

O leitor atento deve ter recordado a tese liberal segundo a qual os países que exportam cérebros “recebem de volta conhecimentos úteis do exterior”. O primeiro ponto fraco desse argumento é justamente este: o que temos, em realidade, são profissionais latino-americanos com diploma universitário trabalhando em outras funções (como a recepção de hotéis em Nova Iorque, etc), e não engajando-se em pesquisa científica. O segundo ponto diz respeito à propriedade efetiva das novas tecnologias e da indústria de inovação.

Os mecanismos que impulsionam a fuga de cérebros (como, por exemplo, o “visto dos gênios” concedido pelos EUA) tendem não só a privar os países exportadores de resultados imediatos, como a consolidar um monopólio do país importador sobre a tecnologia produzida. É claro que uma consideração como essa não interessa a um economista liberal, que acredita que é possível ser um país rico vendendo bananas, mas ela possui consequências importantes na realidade.

Em primeiro lugar, ao possivelmente reforçar a tendência à alta composição orgânica do capital no país importador, e ao mesmo tempo eliminar a possibilidade do desenvolvimento de ciência e tecnologia no país exportador, ela torna os países periféricos dependentes do capital financeiro dos países estrangeiros, o que gera distorções significativas nas economias periféricas (como a excessiva concentração de tecnologia em setores voltados à exportação). Em segundo lugar, ela limita as possibilidades que o país periférico tem de desenvolver uma diplomacia independente dos grandes centros imperialistas: cabe lembrar que em 2006 o Brasil foi impedido de vender aviões militares para o Irã e a Venezuela, já que peças essenciais dos mesmos eram produzidas em solo norte-americano.

Apesar das teorias sobre os impactos positivos da fuga de cérebros nos países exportadores, baseadas no modelo neoclássico, que acreditam que as remessas enviadas do exterior e a circulação de saberes tenderiam a acelerar o desenvolvimento dos países de origem, os estudos empíricos encontram outra coisa. Um estudo conduzido pelo FMI aponta que os países da Europa oriental enfrentam dificuldades para substituir os trabalhadores qualificados que os deixam por outros, gerando atraso no PIB per capita (o que, grosseiramente falando, indicaria uma redução da produtividade no sentido marxista do termo) e estima que, não fosse a diáspora de cérebros entre 1995 e 2012, esses países possivelmente teriam um crescimento do PIB 7% mais alto em 2012.

Tanto nesse estudo quanto em outros, mais apologéticos ao roubo de cérebros, boa parte dos efeitos positivos da fuga de cérebros é associada ao aumento do investimento externo direto – uma observação que não entra em contradição com a nossa, já que esse é também um mecanismo de aprofundamento da dependência.

Conquista militar

Recentemente, Gabriel Deslandes publicou na Revista Opera um artigo onde mostra como a Fundação Ford protagonizou na Polônia aquilo que chamou de um “Plano Marshall intelectual”, destinado a atrair acadêmicos poloneses para estudar nos EUA e, a partir disso, ganhá-los para a ideologia neopositivista que dominava a cena intelectual estadunidense dos anos 50.

A atuação de uma “diplomacia subversiva” não é novidade do século XX. Em seu famoso “Como Negociar com Príncipes” (1713), François Callières dá dicas ao diplomata em corte estrangeira sobre como sabotar a política do príncipe do país em que trabalha – e inclusive dicas jurídicas para evitar cair sob custódia do estado em questão caso a trama seja descoberta.

Mas é inegável que o desenvolvimento do imperialismo, principalmente a partir do impasse nuclear gerado pela Guerra Fria, sofisticou muitas das práticas desse tipo de diplomacia. Com a experiência das revoluções coloridas, os governos de todo o mundo aumentaram em muito o seu know-how sobre como cooptar agentes internos de um Estado rival para influenciar a sua política interna.

Embora ainda lancem mão da expedição mais clássica – como bombardear os centros de pesquisa em inovação científica da Síria – os Estados Unidos e demais potências ocidentais conhecem agora outros meios para a conquista militar. Basta pensar, por exemplo, na comunidade cubana que reside na Flórida, em cujo seio florescem organizações terroristas que tentam realizar ataques na ilha – especialmente de sabotagem econômica, mirando alvos turísticos – e que contam com a anuência tácita das autoridades norte-americanas.

Cabe lembrar que além da própria pressão econômica que leva cubanos a emigrarem aos Estados Unidos (causada, em grande parte, pelo embargo que assola a ilha há mais de 50 anos), as autoridades norte-americanas fizeram o possível para incentivar e para atrair cérebros da ilha. Desde medidas como a Lei de Ajuste Cubano (que garantiam que cada cubano que pisasse nos EUA seria considerado cidadão norte-americano) até medidas de assédio mais diretas, como a famosa Operação Peter Pan.

Nessa ocasião, 14 mil crianças foram levadas de Cuba para os Estados Unidos, após a proliferação de boatos (divulgados pela CIA e pela Igreja Católica cubana) de que o governo revolucionário planejava abolir o direito dos pais de criar seus filhos, que passariam a ser responsabilidade exclusiva do Estado. Muitos anos depois, Fidel Castro recordaria o episódio da seguinte forma: “nós achávamos que a revolução deveria ser obra voluntária de um povo livre, e não pusemos nenhum obstáculo às saídas do país”. A resposta do imperialismo, segundo o líder cubano, foram agressões como a Operação Peter Pan.

Recentemente, um grupo de acadêmicos ocidentais publicou um estudo onde tentam provar os impactos da imigração na “democratização” dos países que exportam trabalhadores. Analisando um caso específico, o da Moldávia (onde o Partido Comunista voltou ao poder, através de eleições, em 2001), os pesquisadores tentam mostrar como a influência dos imigrantes vivendo em países ocidentais foi significativa para a derrota eleitoral dos comunistas em 2009, o que recolocou o pequeno país sob a zona de influência europeia, culminando na sua entrada na UE em 2014.

O que é mais significativo nesse estudo é a constatação de que não se trata tanto da influência eleitoral em sentido meramente estratégico (como votar em um político que irá defender seu familiar no exterior, por exemplo) ou do retorno dos migrantes ao país, mas de uma influência cultural mais profunda. Comunidades e famílias com parentes importantes no Ocidente apresentaram definitivamente uma tendência maior a votar contra os comunistas, bem como a esposar visões de mundo contrárias às tradicionais do Leste Europeu.

Ao conduzirem entrevistas com os moldavos vivendo no Ocidente, os pesquisadores ouviram de seus entrevistados que eles se viam na posição de “ensinar” a seus parentes na terra natal como a Europa ocidental “funciona”, e a recomendar uma série de posturas eleitorais e políticas – uma legítima circulação de valores culturais, acima da mera questão eleitoral. Um exemplo, fornecido por um imigrante vivendo na Itália, é a censura a certas práticas “clientelistas”: ele expressamente avisou sua família a recusar presentes dos comunistas em campanha eleitoral, como sacos de batata ou garrafas de vodka.

Os pesquisadores chegam mesmo a especular porque a imigração não produziu os mesmos efeitos transformadores em casos como o cubano e iraniano, e levantam motivos como a capacidade da comunidade imigrante de comunicar-se com aqueles na terra natal, as diferenças culturais e o nível de integração dos imigrantes no país que os acolhe. Trata-se de uma investigação que, nas palavras dos próprios, busca entender como o exílio e o contato com a terra natal “podem ser complementares em trazer mudanças políticas e contribuir para a difusão global da democracia”.

Os dados apresentados por esse estudo corroboram a tese avançada por Gabriel Deslandes sobre a relevância do estudioso atraído ao exterior para a difusão de cosmovisões liberais em um país socialista (ou, no caso mais recentes, para os países da ex-URSS). O fato de ser um assunto debatido com interesse pelos acadêmicos ocidentais sugere ainda que não se tratam de simples conspirações de gabinete articuladas entre diplomatas ocidentais, mas de um verdadeiro projeto de longo prazo, compartilhado por amplos setores da sociedade civil dos países ocidentais, de assimilação cultural e influência política sobre os países identificados como “problemáticos” do ponto de vista da democracia política e das relações comerciais sadias com o Ocidente.

Cabe lembrar que o apoio da “assistência internacional” em termos financeiros e de montagens de uma rede de comunicações é energicamente recomendado por Gene Sharp (um dos principais teóricos das revoluções coloridas) na montagem de uma rede de propaganda que ataque o apoio popular da ditadura que se pretende derrubar. Embora seja claro que Sharp se referia aqui aos serviços secretos estrangeiros, não se pode negar a possibilidade que as redes de intelectuais exilados possam igualmente servir de auxílio nesse aspecto da diplomacia subversiva.

Notas:

[1] Esse é o processo que os livros didáticos costumam chamar pelo nome de “absolutismo”. Um conceito impreciso, justamente porque sugere o desmonte definitivo das estruturas mais antigas, ligadas à autoridade da Igreja e ao poder secular exercido por senhores feudais e outros membros da alta e média nobreza – caso se prefira, pode-se usar o termo “monarquia absoluta”, desde que se entenda que entre a teoria e a prática política efetiva havia aqui certa distância.

[2] Ao longo do presente texto, nós tentamos apresentar todas as informações objetivas a partir de referências diretas ou do recurso ao uso de hiperlinks, de forma a tornar mais fácil a vida de nossos leitores. Infelizmente, não foi possível fazer isto no texto inteiro, de forma que deixamos aqui indicadas as fontes das informações cujas referências não puderam ser indicadas de passagem nem referenciadas através de endereços na internet:

As informações relativas à conquista colonial do território irlandês pelos ingleses podem ser encontradas em Sean Connolly, Divided Kingdom. Oxford University Press (2008). Cap. 1: “The crisis of composite monarchy”, pp. 3-5. As informações relativas à diáspora irlandesa e os dois grupos sociais que deixavam a ilha podem ser consultadas no artigo de Diego Tellez Alarcia, “O exílio jacobita irlandês e o Oeste da França (1691 – 1716)”. Boa parte das informações objetivas apresentadas na seção sobre a diáspora dos huguenotes franceses (o número de exilados, a ação de Jean-Baptiste Machault e a reação a ela, as propostas para remediar o êxodo de cérebros e o recrutamento pró-inglês de Jean Louis Gilbert)  pode ser consultada em G. Adams, The huguenots and French opinion. Waterloo: Editions SR, 1991. pp. 42-97. Os protestos do governador de Brouage sobre o exílio de marinheiros é discutido por M. Yardeni em “La France Protestante et le refuge huguenot”, um capítulo da coletânea La diaspora des huguenots (Paris: Honoré Champion Éditeur, 2001), p. 35. As informações sobre a Lei de Ajuste Cubano, a Operação Peter Pan e as reflexões de Fidel Castro sobre o assunto foram consultadas em F. Morais, Os Últimos Soldados da Guerra Fria. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp. 61-91. Para a teoria das revoluções coloridas de Gene Sharp, pode-se consultar tanto o seu livro (“Da ditadura à democracia”) ou o capítulo 9 do livro de Domenico Losurdo A Não-Violência (Rio de Janeiro: Revan, 2012) onde os escritos de Sharp são analisados. Para a discussão teórica sobre a economia política da fuga de cérebros, o leitor interessado deve consultar não apenas O Capital de Marx e O Imperialismo de Lênin mas também o livro do Centro de Estudios Puertorriqueños intitulado Labor Migration Under Capitalism: The Puerto Rican Experience (Nova Iorque, City University of New York, 1979), especialmente o capítulo 2.

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