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Comida para o dragão: como a China ascende no comércio global de alimentos

No mercado global de alimentos, o reinado das gigantes ocidentais começa a ser ameaçado pela jovem estatal da China COFCO International.
por Gabriel Deslandes | Revista Opera

Por quase dois séculos, os fluxos do comércio agrícola mundial estiveram nas mãos de quatro gigantes da produção e processamento de alimentos – Archer-Daniels-Midland (ADM), Bunge, Cargill e Louis Dreyfus, também conhecidas em conjunto como ABCDs. No decorrer das décadas, as gigantes do agronegócio global construíram seus impérios centenários assumindo uma posição hegemônica na propriedade de transportadoras, silos, portos e relacionamento diversificado com produtores agrícolas.

Pois parece que o reinado da sigla ABCD se vê desafiado pela filha novata de uma velha senhora, que agora coloca seu forcado para trabalhar mundo afora: a chinesa COFCO Internacional (CIL), criada em 2014 como desdobramento para o comércio exterior da gigante estatal COFCO, conglomerado de processamento de alimentos fundado em 1952, três após o triunfo da Revolução Chinesa. Com investimentos diretos hoje em 35 países, a jovem trading agrícola, mesmo mal tendo quatro anos de existência, tem como objetivo explícito tornar-se a líder mundial na cadeia de abastecimento de grãos, oleaginosas e açúcar.

A liderança expoente da China no setor agrícola global avança na medida em que a gigante COFCO expande sua rede de negócios por mais de 50 países e avança na aquisição de ativos, especialmente nas Américas, no Mar Negro e na Europa. O crescimento da trading chinesa e a ameaça às tradicionais ABCDs no mercado de alimentos e oleaginosos são tamanhos que valeram o destaque nas páginas da revista britânica The Economist. A publicação dedicou, em sua primeira edição impressa de fevereiro de 2019, uma reportagem completa acerca do histórico e das cifras atuais da COFCO Internacional e as razões da China em internacionalizar seu setor de abastecimento alimentar.

Segundo a revista inglesa, as motivações chinesas não são somente comerciais, mas estratégicas, visto que a China sozinha não possui terra arável suficiente para alimentar seus 1,4 bilhão de habitantes. À medida que a ascendente classe média chinesa consome mais carne, tal insuficiência se agrava, já que a alimentação animal é composta principalmente de grãos. A alternativa inicialmente encontrada pelo governo chinês tem sido a compra de terras agrícolas no exterior, fazendo com que a China expandisse seu controle de propriedades em mais de 30 países. A matéria lembra que a China se tornou, por exemplo, o maior proprietário estrangeiro de terras agrícolas na Austrália.

Esse expansionismo encontrou empecilhos a partir das restrições crescentemente impostas pelos governos de países anfitriões sobre o investimento estrangeiro no setor agropecuário, além de barreiras locais às exportações que poderiam tornar inúteis as aquisições chinesas. Desse modo, a opção por construir sua própria campeã nacional no mercado de produção e abastecimento – a COFCO Internacional – diz mais respeito à tentativa da China de estabelecer uma posição dominante no comércio mundial de alimentos. Por isso mesmo, de acordo com The Economist, a China abandonou em 2014 sua meta oficial de ser autossuficiente em soja, indicando que estava disposta a depender de fornecedores globais para alguns alimentos básicos.

A atribuição maior da COFCO Internacional hoje é obter colheitas diretamente de fazendeiros estrangeiros, fornecendo logística aos parceiros agrícolas e acesso exclusivo ao mercado chinês. O grupo COFCO já cumpria historicamente esse papel como a principal importadora chinesa de alimentos do exterior desde os primórdios da Revolução Chinesa, porém seu foco era limitado à administração do abastecimento interno, enquanto a missão da COFCO Internacional é global. Como pano de fundo, está o fato de que a margem das importações de comida na China subiu 12 vezes desde 2000, alcançando US$ 117 bilhões em 2017.

Internacionalização da COFCO

O primeiro passo significativo da COFCO Internacional no mercado mundial foi considerado um fiasco. A estatal chinesa começou, em 2014, comprando as participações de 51% da Nidera Seeds da Holanda e da Noble Agri, sediada em Hong Kong, duas tradings de grãos com forte presença no Brasil e na Argentina. O aporte inicial foi de US$ 3 bilhões, e o foco das aquisições estava na originação de matérias-primas, em especial soja. Dois anos mais tarde, a COFCO Internacional assumiu o controle de 100% da Nidera.

Entretanto, meses após à compra total da Nidera, foi descoberto um rombo de US$ 150 milhões nas contas da divisão brasileira da empresa, apresentado como um “problema contábil”. Os prejuízos levantaram incertezas sobre as perspectivas de curto prazo da COFCO Internacional e motivaram a companhia chinesa a oficializar a venda da Nidera para Syngenta, com sede na Suíça, em novembro de 2018. As concorrentes passaram a “achar hilário” o quanto a novata chinesa parecia tão sem noção, afirmou o especialista em commodities e ex-funcionário da Cargill, Jonathan Kingsman, para a The Economist.

Ninguém mais ri agora. A COFCO Internacional já fatura US$ 34 bilhões em receita – 4/5 da Louis Dreyfus, a menor empresa da ABCD – e transfere um volume de 105 milhões de toneladas de grãos, sementes oleaginosas e açúcar por ano, um volume aproximadamente igual à produção inteira de soja americana. A empresa chinesa conta com uma capacidade portuária de 33 milhões de toneladas e uma capacidade de processamento de 30 milhões de toneladas, além de mais 2,7 milhões de toneladas em armazenamento. Os investimentos da COFCO Internacional mimetizam a estrutura das ABCDs, com a aquisição de silos, conexões de transporte e instalações de processamento, principalmente na América Latina.

A gigante chinesa é hoje a quarta maior empresa exportadora de soja do Brasil e estuda a compra de novos ativos de logística e armazéns para expandir sua capacidade de importação do grão diretamente de produtores brasileiros. Em 2017, a COFCO exportou aproximadamente 7 milhões de toneladas de soja do Brasil segundo a Bloomberg, o que inclui também embarques feitos a partir das empresas adquiridas recentemente pelo grupo chinês. A empresa, que chegou ao Brasil em 2014, investe na compra direta de grãos a fim de diminuir sua dependência de outras tradings para o abastecimento de suas unidades na Ásia.

Guerra comercial com os EUA e perspectiva de futuro

Um revés aos negócios internacionais da China tem sido a guerra comercial infringida pelo governo Donald Trump contra os produtos chineses. Porém, a mesma guerra também serviu para reafirmar o papel vital desempenhado pela COFCO. Tal qual ressalta The Economist, a China respondeu às tarifas americanas sobre suas mercadorias justamente impondo altas taxas sobre os grãos de soja dos EUA, o que forçou o país asiático a encontrar uma nova fonte para um terço de sua necessidade anual de US$ 40 bilhões em grãos – totalizando 33 milhões de toneladas, ou quatro vezes aquilo que consome todo o Sudeste Asiático. A COFCO fez grande parte do trabalho encontrando novos fornecedores no Brasil.

Em meio à disputa comercial entre as duas superpotências, o presidente Trump e seu homólogo Xi Jinping negociaram uma trégua de 90 dias em dezembro de 2018, em encontro após a reunião do G20 em Buenos Aires. O “cessar-fogo” temporário renovou o interesse chinês em ingressar no mercado agrícola dos EUA e, em 3 de janeiro de 2019, a COFCO voltou a realizar cotações de preços da soja americana. Semanas mais tarde, a firma chinesa comprou um lote de soja equivalente a “milhões de toneladas” dos EUA como parte dos esforços para o estabelecimento de um “consenso” comercial entre os dois países e, segundo o próprio Trump, as importações chinesas da soja americana devem aumentar.

Apesar das consequências da guerra comercial, o presidente da COFCO Internacional, Chi Jingtao, argumenta que a empresa se encontra enfim em uma posição “para abraçar o crescimento e o desenvolvimento”, tendo alcançado em 2018 uma lucratividade “inédita em sua história” (não foram revelados números). A firma também investirá no fornecimento de mais grãos diretamente dos grandes celeiros do mundo, como a Rússia, Argentina e América do Norte, e buscará novos clientes na Europa, Sudeste Asiático e Oriente Médio, incluindo negócios com comerciantes locais, plantações de trigo e processadores de alimentos.

A agressiva expansão da COFCO Internacional vem preocupando suas principais rivais também pelos esforços da trading para dominar por completo o vasto mercado consumidor de grãos na China, tanto por motivos estratégicos quanto comerciais. A estratégia da COFCO, conforme resume Chi, é “alavancar a forte presença interna na China para, assim, expandir os negócios globais”. O efeito colateral pode ser o bloqueio do mercado chinês às demais gigantes, obrigando-as ter a COFCO Internacional como intermediária inevitável para o acesso direto aos consumidores do país asiático.

Até o momento, as ABCDs se encontram em uma posição robusta no comércio mundial e ainda operam grande parte da infraestrutura usada na armazenagem, processamento e envio de grãos nos principais mercados, como os EUA e a Rússia. A ADM, a maior das empresas privadas listadas, é quase duas vezes maior que a COFCO Internacional, de modo que seria difícil engoli-la. A Bunge, empresa americana mais fraca do grupo, pode ser um bom alvo, mas o Comitê de Investimentos Estrangeiros dos EUA provavelmente bloquearia uma oferta chinesa. “É muito difícil, se não impossível, tornar-se uma ABCD sem comprar uma ABCD”, explica o especialista em comércio de grãos, Jay O’Neil, da Universidade Estadual do Kansas, a The Economist.

“Alimentando o dragão!”

A larga concorrência no comércio de mercadorias a granel oferece um desafio para a COFCO e as demais gigantes do ramo alimentício. A atividade vem se tornando dificilmente lucrativa, fazendo com que outras tradings estejam migrando para produtos de maior valor agregado: a Cargill faz a maior parte de seu dinheiro produzindo ração animal e proteínas; a ADM criou um nicho em ingredientes alimentícios, como adoçantes e corantes. A COFCO precisa dominar as atividades básicas primeiro. “Esta é uma empresa jovem. Neste momento, temos outras prioridades”, afirma o diretor da firma no Brasil, Valmor Schaffer.

Esses obstáculos fazem com que, de acordo com Sönke Lorenz, da consultoria Boston Consulting Group, o principal objetivo da COFCO Internacional continue sendo até hoje o mesmo de quando a estatal chinesa foi fundada nos primeiros anos de governo Mao Tsé-Tung: “alimentar o dragão”. Caso os negócios internacionais se compliquem, os insiders suspeitam que a firma poderá recorrer diretamente ao governo chinês em busca de capital de reserva barato.

Nesse sentido, a COFCO anunciou, logo nos primeiros dias de janeiro de 2019, que o fornecimento de soja para toda a China já está assegurado para o ano inteiro com operações de mercado estáveis e estoques garantidos vindos da Argentina e dos EUA. Além disso, o governo chinês trabalha em 2019 pelo estímulo à soja plantada em seu próprio território, expandindo sua área cultivada. “A região nordeste da China entrará na fase-chave da lavoura de primavera e de preparação de sementes nos próximos meses, para a qual daremos extrema atenção”, afirmou o diretor do Departamento de Mercado e Informações Econômicas do Ministério da Agricultura, Tang Ke.

De toda forma, na perspectiva de comércio internacional, a COFCO corre para ascender ante as centenárias concorrentes, mas larga contando com uma garantia de que as ABCDs não dispõem, que é o acesso privilegiado ao mercado de alimentos da China, o maior do mundo. Como salienta a reportagem da The Economist, a competição empresarial é uma guerra de informação: insights sobre a produção global, preços, estoques e capacidade de envio são os tendões do lucro das comerciantes.

Nesse aspecto, a vantagem do domínio do mercado chinês pela COFCO poderá torná-la inigualável, tal qual afirma um ex-executivo da ABCD: “Tudo começa e termina com a demanda chinesa. Entenda o que o maior comprador nacional está fazendo, e você controla o jogo comercial”.

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