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A carta da oposição boliviana contra Evo Morales

Na Bolívia, em que a eleição de Evo, pela primeira vez em anos, não é certa, o ex-presidente Carlos Mesa é o mais bem posicionado para enfrentá-lo.
por Fernando Molina | Nueva Sociedade – Tradução de Gabriel Deslandes
(Foto: Nina Zambrano Díaz / Cancillería del Ecuador.)

Evo Morales enfrentará as eleições presidenciais de outubro de 2019 sem a certeza antecipada de um triunfo esmagador como dos pleitos anteriores. O candidato mais bem posicionado é o ex-presidente Carlos Mesa, à frente de uma coalizão “cidadã” que representa, acima de tudo, os setores médios urbanos. Embora se autoconceba como mestiço, o mesismo carece de representação em setores indígenas, cholos e populares, e aí estão seus limites políticos e sociais.

A última pesquisa eleitoral mostra o ex-presidente Carlos Mesa empatado com Evo Morales com 32% das preferências dos bolivianos. Dado que essa pesquisa, como a maioria das pesquisas públicas na Bolívia, tende a sobre-representar os eleitores urbanos, que atualmente são os mais críticos a Morales, a situação de Mesa não é tão cor de rosa quanto à vivida em dezembro de 2018, quando parecia que suas intenções de votos cresceriam rapidamente, após a formalização de sua candidatura às eleições de outubro pela Frente Revolucionária de Esquerda (FRI), um acrônimo já sem militantes, mas com personalidade eleitoral.

É verdade que Mesa não tem feito campanha, mas tem usado esse tempo para organizar o grupo político Comunidade Cidadã, que o apoiará de agora em diante. Ou melhor, para reconstruí-lo, já que o mesismo foi inicialmente formado durante seu governo (2003-2005) em guerra contra os “tradicionais” ou partidos “neoliberais”, dos quais foi, todavia, uma espécie de divisão “de esquerda”.

Mesa tomou posse em 2002 como vice-presidente de Gonzalo Sanchez de Lozada, líder do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), arquiteto das chamadas “reformas estruturais” na Bolívia. Mesa simpatizava com esse partido, mas não o integrava. Ele já havia se destacado como o intelectual mais importante em defesa do neoliberalismo: um jornalista popular e historiador que explicava e apoiava na televisão as reformas privatizantes, e que divulgava em seus livros as ideias liberal-democráticas institucionalistas que prevaleciam naquela época e que o MNR adotou como suas próprias, primeiro com Víctor Paz Estenssoro (1985-1989) e depois com Sánchez de Lozada (1993-1997; 2002-2003).

Durante a crise de outubro de 2003, quando uma coalizão de operários, camponeses e moradores de bairros pobres se revoltaram contra Sanchez de Lozada, Mesa se afastou dele, criticou a repressão com a qual o governo procurou se defender e, após a renúncia do presidente e sua saída do país, Mesa ocupou a cadeira presidencial. Seu curto governo não se atreveu a mudar o modelo neoliberal, mas flertou com a nacionalização da indústria do gás e estava prestes a convocar uma Assembleia Constituinte, tarefas que foram cumpridas depois por Evo Morales. No início de seu mandato, Mesa alcançou grandes níveis de popularidade, mas depois foi desacreditado por seu medo de encarar as mudanças nacional-populares exigidas pela situação política e pelo ânimo da população.

Confrontado com o MNR e outros partidos tradicionais, que o consideravam um “traidor”, governou com o segmento intelectual e menos militante do bloco que havia apoiado Sanchez de Lozada e teve de esgrimir, em várias ocasiões, a possibilidade de sua renúncia como meio para mobilizar a classe média que nele confiava contra seus inimigos de direita no Parlamento e seus inimigos de esquerda nos sindicatos (acima de tudo, o Movimento ao Socialismo de Evo Morales). No final, essa prática corroeu sua credibilidade de “capitão na tempestade” e, atacado em seguida por todos os lados, Mesa foi forçado a ceder seu posto ao presidente do Supremo Tribunal, que convocou as eleições que trouxeram Morales ao poder.

Entretanto, Mesa nunca perdeu inteiramente sua popularidade entre as classes médias, e isso o levou, primeiramente, a aparecer nas pesquisas como o melhor colocado para enfrentar Morales e – não sem dúvidas – se lançar na arena eleitoral. Em torno dessas recentes vicissitudes, o mesismo ressurgiu.

O mesismo tem sido pouco estudado. A falta de sua permanência no poder e o sucesso imediato da revolução evista levaram à remoção dessa corrente política da visão dos sociólogos. Supôs-se que se tratava de uma articulação temporária de forças remanescentes do fracasso da ordem neoliberal. Agora ele provou que ele tem um fundo sociológico mais sólido. É evidente que o mesismo e, é claro, o próprio Mesa, incorporam e representam politicamente uma parte delimitada das elites sociais bolivianas.

Que parte é essa? Para responder, devemos observar o perfil de seus principais líderes. Quase todos pertencem à intelligentsia nacional: jornalistas, editores, acadêmicos, ex-funcionários internacionais e ex-diplomatas. Não há empresários, e os políticos convencionais são muito poucos. O grupo inicial formado por funcionários da Mesa de quando ele era presidente estão procurando passar estes meses conquistando jovens que repetem o mesmo perfil: “bem estudados”, ex-alunos de escolas e universidades de renome.

A intelligentsia é uma das várias classes médias nacionais, que se destaca pela posse de capital educacional ou, mais tradicionalmente, “meios espirituais de produção”. Na Bolívia, o capital educacional mais valioso se adquire por meio da educação de elite, da qual ficam marginalizados, por barreiras educacionais e sociais, os grupos de status menos prestigiado, tais como “cholos” e indígenas. Em suma, o acesso à educação de elite (escolas de renome, estudos no exterior) exige alto capital simbólico, que no país está associado à “brancura”.

O núcleo mesista vem principalmente da parte ocidental da Bolívia. Muitos de seus membros mantêm nomes de prestígio nesta região (Quiroga, Paz, Aliaga, Gumucio, Mariaca, Ormachea, Urioste, etc.). Esses dirigentes vêm diretamente da elite branca tradicional, ainda que os mesistas prefiram ser considerado “mestiços”, como fica claro na obra escrita por Mesa, que redigiu o ensaio La sirena y el charango para defender a miscigenação como uma solução para as tensões étnicas do país.

O truque é que, entre mesistas, dificilmente se encontrarão mestiços como cholos, se usarmos esta palavra em um dos dois significados comuns presentes na literatura nacional: carreiristas com pouco capital simbólico buscando se “branquear” ou pessoas de origem indígena das cidades. “Mestiço” se torna assim a auto-identificação moderna – após a Revolução Nacional de 1952 – de um dos grupos de status mais altos do país.

A justificativa para esse estilo de crescimento é a natureza aristocrática ou, para ser mais preciso, tecnocrática: se estes ou aqueles foram convocados para governar, é porque só governam os “melhores”. Os melhores, ao mesmo tempo, são aqueles que se destacam em diferentes campos profissionais. Porém, uma vez alcançada tal distinção graças à educação elitista já descrita, ela é determinada pela hierarquia tradicional de status no país, o que coloca os brancos (embora sejam chamados de “mestiços”) acima e os “índios” (embora não sejam reconhecidos como tal) abaixo.

A intelligentsia branca teve várias expressões políticas ao longo da história. No século XIX, o setembrismo e o Partido Liberal, ainda que este também fosse um instrumento político dos cholos. No século XX, o silismo (seguidores do presidente protonacionalista Hernando Siles), o falangismo e os partidos radicais de esquerda surgidos a partir da democracia cristã no final dos anos 1960, o Exército de Libertação Nacional e o Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR). E agora, o mesismo.

Como se pode ver, as ideologias adotadas pela intelligentsia boliviana foram muito diferentes. O denominador comum dessas várias partes vem sendo formado por grupos de alto status que, por sua vez, são ilustrados, permeando a mesma atitude para com os “outros” com as quais competem na arena política, ou seja, cholos. Essa atitude repetitiva se cristaliza em um forte sentimento de superioridade (às vezes de classe, às vezes intelectual, às vezes moral), que funciona como um elemento coesivo, quase sempre inconsciente, daqueles que o ostentam.

Se você fosse perguntar, provavelmente os mesistas não aceitariam que: a) quase todos os seus líderes fazem parte do status branco, com relações íntimas com o grupo mais elevado na escala de prestígio social, que é aquilo que na Bolívia é chamado de “jailón (o equivalente a “cuico”, “cheto” ou “pijo”), e b) tendem a ver os setores da população cholos e indígenas com paternalismo e superioridade, marcando defeitos de mentalidade que estes supostamente têm (autoritários, depredadores, corporativos, bandidos – os cholos – e ignorantes, ingênuos, bucha de canhão, mal compreendidos – os indígenas). Todavia, sua condição sociológica é evidente para muitos observadores externos, e o classismo que observamos possivelmente explica sua estagnação nas pesquisas eleitorais. Até agora, Mesa tem se recusado a fazer qualquer aliança com os partidos raivosos de oposição a Morales e não implantou qualquer estratégia para penetrar setores indígenas e indigenizados do país, que são o reduto do MAS.

No MIR, a intelligentsia teve que se misturar com setores plebeus de grande força; uma vez que o MIR se dividiu em 1985, o setor intelectual branco do partido formou o Movimento Bolívia Livre (MBL), que não por acaso é o local de origem de muitos dos atuais líderes e conselheiros de mesismo. Anos atrás, parte do MBL se tornou o Movimento sem Medo, que não é por acaso o pai do Soberania e Liberdade (SOL.bo), o principal aliado externo de Mesa. Outro importante aliado, a frente do governador de Tarija, Adrián Oliva, mostra o mesmo perfil sociológico, pois também é formada por jovens tecnocratas.

Outros grupos quiseram entrar na Comunidade Cidadã, mas não mostraram as credenciais necessárias para alcançá-la. Provavelmente talvez haja uma versão mais complexa e “expandida” do mesismo. Se ela não despontar, as limitações dessa corrente para representar a “Bolívia real” poderão se tornar um formidável obstáculo tanto para superar eleitoralmente Morales como para, acima de tudo, governar com eficiência na esteira de um intenso período “indígena e popular”.

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