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China: A Longa Caminhada e suas contradições

A China está construindo alianças baseadas na força, para deslocar a hegemonia ocidental. Mas seus planos são a longo prazo, e implicam em contradições.
Por Leo He Zhao – Tradução de Matheus Ferreira para a Revista Opera

A China superou a opressão colonial, emergiu de “100 anos de humilhação” e agora está desenvolvendo seu poder no cenário mundial. Concomitantemente com outras nações anteriormente colonizadas, através de relações mutuamente benéficas e uma política de coexistência pacífica, a China está construindo alianças baseadas na força, para deslocar a hegemonia ocidental e combater o imperialismo capitalista, abrindo caminho para o comunismo global.

Essa estratégia de longo prazo, ou pelo menos sua primeira fase, não tem como base a luta de classes marxista ortodoxa, mas sim, uma harmonia social quase confucionista, em direção à reestruturação do comércio global.

À medida que esse processo se desdobra, muitas contradições no nível processual podem ocorrer em métodos e táticas específicos. Algumas dessas contradições são resultado de fazer parte de um mercado global dominado pelo neoliberalismo e de usar o empreendedorismo privado como uma ferramenta de desenvolvimento, como desenvolvimento desigual, desigualdade de riqueza, degradação ambiental e questões trabalhistas nos setores privados. Há também problemas que surgem das condições particulares de desenvolvimento da China: as áreas costeiras urbanas tiveram um crescimento mais rápido do que as regiões rurais e, principalmente, a um ritmo sem precedentes: entre 1990 e 2018, o número de chineses vivendo em extrema pobreza foi reduzido de 750 milhões para menos de 10 milhões (Economist).

Outras contradições incluem aquelas que resultam da estrita não-interferência nos assuntos de estados estrangeiros, que caracterizaram a política externa chinesa por milhares de anos, e a priorização de maiores relações comerciais internacionais em detrimento de conflitos ideológicos. Um exemplo são os negócios inescrupulosos com governos de direita ou mesmo fascistas, como Arábia Saudita ou Israel.

(Negócios com canalhas: Narendra Modi, Benjamin Netanyahu, Rei Salman bin Abdulaziz, Donald Trump)

Este modus operandi, cuja ética é “viva e deixe viver”, se aplica até mesmo aos inimigos ideológicos: a China também negocia com a maior organização terrorista do mundo, os EUA, sem criticar sua longa lista de guerras ilegais e crimes hediondos contra a humanidade. Outra contradição é a falta de apoio às lutas de esquerda em nações parceiras, como as insurreições maoístas guerrilheiras no Sudeste Asiático, se isso puder colocar em risco as relações comerciais com entidades estatais. Se as “perdas éticas” temporárias dessas contradições levarem a maiores “ganhos líquidos” e resultados positivos no futuro, elas são calculadas como valiosas ou inevitáveis.

A luta pela socialização global e, eventualmente, a comunização, via comércio pacífico, ao invés de revolução violenta (pelo menos por enquanto), significa que é do interesse do PCCh melhorar as condições dos trabalhadores, corrigir problemas trabalhistas, combater a poluição, promover a igualdade e abordar o desenvolvimento desigual em seus próprios termos e de acordo com seus planos. Mas, ao mesmo tempo, movimentos trabalhistas de base não são apenas permitidos, mas são encorajados. A grande maioria dos protestos contra corporações privadas na China não é suprimida, como acontece nos regimes capitalistas. Os que são suprimidos pertencem, em grande parte, à categoria de causadores de problemas com ligações com entidades imperialistas malignas, como parte dos esforços de desestabilização. A inquietação social no âmbito nacional não é apenas perigosa para a estabilidade, mas dificulta a capacidade da China de vencer os capitalistas em seu próprio jogo.

É uma estratégia longa e audaciosa sobre um grande tabuleiro de xadrez global formado por camadas de injustiças históricas devastadoras e o caos em cascata produzido por processos exploradores e opressivos e, para vencer, contradições relativamente pequenas e particularidades problemáticas não devem obscurecer ou impedir a realização de objetivos maiores.

(Mapeando o progresso da iniciativa “One Belt, One Road”)

Em 1950, no nascimento da China moderna e do Partido Comunista, a expectativa média de vida era de 35 anos.

Em 1980, no final da era maoista, a expectativa de vida havia dobrado para 70, mas o cidadão médio ainda vivia com menos de US $ 2 por dia. Em todos os aspectos, o programa econômico planejado por Zhou Enlai, sob a liderança de Deng XiaoPing, continuou na direção do desenvolvimento visionário maoísta, que está alinhado com as políticas econômicas de Lênin da URSS, corrigindo alguns erros anteriores. Nenhuma nação, seja socialista ou capitalista, pode sobreviver em isolamento; e foram apenas quatro décadas desde as reformas adotadas pela China no mercado internacional, embarcando a China no caminho atual. Essa trajetória, por quaisquer que sejam os meios, deve ser vista como uma continuação e extensão da linhagem histórica da teoria e prática esquerdistas.

“[…] só é possível conquistar a libertação real [wirkliche Befreiung] no mundo real e pelo emprego de meios reais; que a escravidão não pode ser superada sem a máquina a vapor e a Mule-Jenny, nem a servidão sem a melhora da agricultura, e que, em geral, não é possível libertar os homens enquanto estes forem incapazes de obter alimentação e bebida, habitação e vestimenta, em qualidade e quantidade adequadas. A ‘libertação’ é um ato histórico e não um ato de pensamento, e é ocasionada por condições históricas, pelas condições da indústria, do comércio, da agricultura, do intercâmbio […]” – Karl Marx, A Ideologia Alemã (tradução retirada da edição da Boitempo, pg. 29)

“Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado” – Karl Marx, Crítica do Programa de Gotha (tradução retirada da edição da Boitempo, pg. 43)

(Aumento do salário mínimo mensal [China e França] ou por hora [Reino Unido e EUA] entre 2008-2017)

“Pois o socialismo não é outra coisa senão o passo em frente seguinte a partir do monopólio capitalista de Estado. Ou de outro modo: o socialismo não é outra coisa senão o monopólio capitalista de Estado usado em proveito de todo o povo e que, nessa medida, deixou de ser um monopólio capitalista.” – Vladimir Lenin, A Catástrofe que nos Ameaça e como Combatê-la (tradução retirada do site https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/09/27-2.htm)

“O capitalismo de Estado, que é um dos principais aspectos da Nova Política Econômica, é, sob o poder soviético, uma forma de capitalismo que é deliberadamente permitido e controlado pela classe trabalhadora. Nosso capitalismo de estado difere essencialmente do capitalismo de Estado nos países que têm governos burgueses, pois o nosso Estado é representado não pela burguesia, mas pelo proletariado, que conseguiu conquistar a plena confiança do campesinato.” – Vladimir Lenin, Para a colônia russa na América do Norte (traduzido do site https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1922/nov/14b.htm)

(Número de pessoas, em milhões, vivendo com despesas de U$2 ou menos por dia)

“Dizem-nos que ‘necessitamos ter atividades comerciais’. Perfeitamente. Precisamos de atividade comercial. Limitamo-nos a ser contra os reacionários nacionais e estrangeiros que nos impedem de ter atividade comercial, mas não somos contra mais ninguém. É preciso que se saiba que são precisamente os imperialistas e seus lacaios, a camarilha reacionária de Chiang Kai Shek, que nos impedem de comerciar com as potências estrangeiras e estabelecer relações diplomáticas com elas. Quando tivermos mobilizado todas as forças, no país e no estrangeiro, para aniquilar os reacionários chineses e estrangeiros, haverá atividade comercial e será possível estabelecer relações diplomáticas com as potências estrangeiras em base de igualdade, de vantagem mútua de respeito recíproco da soberania territorial.” – Mao Zedong, Sobre a Ditadura da Democracia Popular (tradução retirada do site https://www.marxists.org/portugues/mao/1949/mes/ditadura.htm)

“Então, para construir o socialismo é necessário desenvolver as forças produtivas. Pobreza não é socialismo. Para defender o socialismo, um socialismo que deve ser superior ao capitalismo, é imperativo, em primeiro lugar, eliminar a pobreza. É verdade que estamos construindo o socialismo, mas isso não significa que o que alcançamos até agora esteja de acordo com o padrão socialista. Somente em meados do próximo século, quando tivermos atingido o nível dos países moderadamente desenvolvidos, poderemos dizer que realmente construímos o socialismo e declaramos, de forma convincente, que ele é superior ao capitalismo. Estamos avançando para esse objetivo.” – Deng Xiaoping

(Crescimento Chinês – 
o valor dos investimentos de risco na China disparou nos últimos cinco anos)

Agora vamos dar uma olhada na China moderna, e a forma particular de seu surpreendente desenvolvimento nos últimos 40 anos em um ritmo historicamente nunca visto:

  1. Nunca privatizou grandes indústrias (todas em vários graus públicos / estatais). Compare isso com o colapso da Iugoslávia, URSS, etc., que foram todos marcados por um devastamento imediato da indústria nacional por empresas privadas: verdadeiras transições para o capitalismo.
  2. A terra permanece coletivizada e arrendada a pessoas físicas ou jurídicas. Os representantes do PCCh supervisionam todas as operações das corporações, que são totalmente responsabilidade ​do estado. Os proprietários de empresas privadas compreendem cerca de 26 dos mais de 2000 membros do Congresso Nacional do Povo.
  3. O PCCh é composto quase inteiramente por representantes da classe trabalhadora, são muitos poucos capitalistas. É um sistema altamente meritocrático, no qual a tomada de decisões procede de conselhos locais até o Congresso Nacional, funcionários são eleitos em um processo rigorosamente democrático, e o Estado questiona recorrentemente os cidadãos sobre as minúcias dos assuntos públicos.
  4. Nunca experimentou os típicos ciclos de colapso típicos das economias capitalistas, em seus 40 anos de desenvolvimento constante com uma taxa de aproximadamente 10% ao ano, mesmo com o uso de métodos privados de empreendedorismo.
  5. Os segmentos sociais inferiores da sociedade chinesa tiveram um crescimento no nível de qualidade de vida de 40% desde 1979; já os segmentos inferiores dos EUA durante o mesmo período: 1%
  6. Se os EUA não são uma boa comparação devido às suas drásticas diferenças de história e posição, uma muito melhor é a Índia, outra nação pós-colonial que se desenvolveu durante quase o mesmo tempo, e que na verdade transitou completamente para o capitalismo: muito mais desigualdade, quase nenhum progresso ou até mesmo regresso para os segmentos mais pobres da sociedade.
  7. 1,5 milhão de capitalistas e funcionários punidos por corrupção desde 2007, 17% dos quais foram presos ou executados. (Considerando que os países capitalistas recompensam os excessos e crimes de sua classe capitalista, como os banqueiros de Wall Street em 2008)
  8. Problemas concretos resultantes da construção de infra-estrutura econômica com métodos capitalistas, tais como desenvolvimento desigual, desigualdade, más condições de trabalho, corrupção, poluição, etc. são claramente e repetidamente abordados na TV nacional, ao contrário do Ocidente capitalista. Ao mesmo tempo, as políticas corretivas implementadas, que já surtiram um grande efeito, também são noticiadas.
  9. Relações com outros países não levadas por puro interesse “extrativista”, mas por serem mutuamente benéficas, guiadas pela política de 5000 anos de rígida não-interferência, em apoio ao desenvolvimento independente de parceiros mais pobres. Não apenas isso, mas o envolvimento estrangeiro chinês com países asiáticos, africanos e sul-americanos pode ser visto como uma construção de uma irmandade internacional de antigas nações colonizadas, cujo conjunto de forças se volta contra a hegemonia capitalista e a dominação imperial.
  10. O processo de marginalização e deslocamento de minorias étnicas que se desenrola na China há 6.000 anos tem sido cada vez mais revertido desde a revolução comunista, especialmente nos últimos anos. Quase todas ou todas as regiões de minorias étnicas são hoje governadas por pessoas dessas culturas.
    (A hierarquia do PCCh – 2018)

    Caso a propriedade privada, o dinheiro, a produção abstrata de valor, a sociedade de classes e o Estado forem abolidos prematuramente, enquanto a lógica opressora e o poder do capital ainda controlarem o mundo inteiro, a China se tornaria vulnerável tanto à violência imperialista externa quanto à sabotagem reacionária interna (sem duvida sob a bandeira da “democracia”). O Partido Comunista seria imediatamente comprometido por elementos apoiados pelos estrangeiros; o país poderia ser novamente dilacerado pela guerra civil e mais uma vez submetido à dominação imperialista. A revolução chinesa, pela qual tantos milhões lutaram, trabalharam incansavelmente e sacrificaram suas vidas, terá sido para nada.

    O marxismo é tudo, menos engessado e dogmático, e sempre se adaptou às condições objetivas ​​de cada época, utilizando o que já está disponível para objetivos revolucionários. A opinião daqueles baizuo (neologismo chinês que se refere às elites liberais esquerdistas) que pensam que a China deveria ter escolhido o curso de ação desastroso descrito acima, ou pelo menos permanecer subdesenvolvida, pobre e fraca, a fim de satisfazer sua interpretação fundamentalista do marxismo, não deveria ser tolerada. Esses tipos míopes de “esquerdistas”, “ultra-esquerdistas” ou modernos “maoístas” adoram denunciar a China moderna como uma traição ao socialismo, sem considerar que é o fracasso da esquerda ocidental em realizar revoluções de sucesso em seus países que tornaram necessário que os Estados socialistas existentes se adaptassem às condições globais do capitalismo neoliberal.

    Aqueles que pensam que 1,4 bilhões de pessoas, que durante 200 anos sofreram imensamente sob o domínio colonial cruel e a dominação capitalista brutal, esquecerão tão rapidamente qual é o seu verdadeiro inimigo, não sabem muito sobre capitalismo, colonialismo ou povo.

    A luta contra o capitalismo continua, mas em âmbito econômico. Porque a guerra é o caminho do capitalismo, e 90% do PIB dos EUA, enquanto o socialismo chinês está desenvolvendo alianças com a África, a América do Sul, a Europa e outras partes da Ásia baseadas no desenvolvimento mútuo. Os socialistas irão derrotar os capitalistas no jogo do mercado (o que eles consideram como seu próprio jogo) com planejamento racional e, através de comércio pacífico e prosperidade para todos, acabarão com sua hegemonia global.

    Mas, ao mesmo tempo, a crítica e a autocrítica continuam sendo uma parte central do pensamento e da prática maoísta. E sim, como comunistas, devemos, evidentemente, apoiar movimentos trabalhistas autênticos (enquanto nos protegemos contra a infiltração imperialista), e permanecer sempre vigilantes, em vez de nos tornarmos preguiçosos e colocar nossa confiança cega no Estado, que sempre corre perigo de ser corrompido, até mesmo nos Estados socialistas. Como um corpo político, o PCCh tem sido tão extraordinariamente competente e bem-sucedido exatamente por ter se adaptado a muitas críticas e atendido às demandas de ativistas ao longo dos anos, e,  como qualquer entidade política, não é imune à depravação externa ou interna.

    As estruturas enraizadas e penetrantes do capitalismo levaram 300 anos para serem construídas, e o sistema proprietário do qual é uma extensão, 6000 anos. Sua dissolução requer estratégias em uma escala maior e mais longa do que é facilmente concebida ou compreendida por qualquer indivíduo sem muitos anos de dedicação, e levará mais do que algumas décadas para se desdobrar. Os liberais ocidentais pensam em termos de relatórios trimestrais e ciclos eleitorais. Os comunistas orientais pensam em termos de séculos, se não de milênios.

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