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A mentira da foto noturna: Desenvolvimento econômico na Península Coreana

Quando os ideólogos do livre mercado exibem uma imagem da Coreia do Norte à noite, eles estão enganando em muitos níveis.
Quando os ideólogos do livre mercado exibem uma imagem da Coreia do Norte à noite, eles estão enganando em muitos níveis. Por Caleb Maupin | The Greanville Post – Tradução de Gabriel Deslandes
(Foto: The Greanville Post)

Defensores do capitalismo global desregulado frequentemente comparam as condições econômicas na Coreia do Norte com as da Coreia do Sul para estabelecer um argumento para defender suas políticas. Isto é completamente falacioso, ignorando a história real de como a Península Coreana se desenvolveu desde 1945.

Os defensores do capitalismo de livre mercado, em geral, brincam com a ignorância das pessoas por meio de simplificações exageradas. Por exemplo, é muito comum, entre os críticos do governo cubano, apontar para a baixa qualidade da geladeira que uma família cubana média possui. Os anticomunistas apontarão para esses refrigeradores e declararão que eles são de qualidade muito inferior aos refrigeradores que possuem aqueles que residem nos Estados Unidos. O argumento deles é o seguinte: o capitalismo é melhor porque o frigorífico da família americana média é melhor do que o refrigerador da família cubana comum.

Entretanto, quem vive em outras partes da América Latina sabe que esse argumento é completamente insensato. Em toda a região, em lugares onde o capitalismo de livre mercado reina, há milhões e milhões de pessoas que não têm água corrente ou eletricidade. Milhões de haitianos, que vivem sob o capitalismo de livre mercado americano e, em certos casos, comem terra misturada com óleo, não têm geladeira. Nas selvas e montanhas do Peru, Guatemala e Honduras, há milhões de pessoas que nunca viram um banheiro com descarga em suas vidas, muito menos um refrigerador funcionando.

O sistema cubano, no qual o emprego e a moradia são garantidos pelo Estado, resulta em um padrão geral de vida muito mais alto do que aquele que muitas pessoas experimentam em toda a região vivendo sob o capitalismo. O fato de os frigoríficos cubanos serem de qualidade inferior aos produzidos no industrializado EUA é completamente irrelevante.

Carros feitos na Coreia do Norte – Você sabia que eles até fabricavam automóveis modernos? Claro que não.

A frequentemente referenciada fotografia da NASA da Península Coreana à noite, com o Sul brilhantemente iluminado e o Norte escuro, é igualmente falaciosa. É extremamente imprecisa a ideia de que o “comunismo” tornou o Norte sombrio, enquanto o “capitalismo de livre mercado” tornou o Sul brilhante e próspero.

O boom do Pós-guerra na Coreia do Norte

A história real da Guerra da Coreia é horrível e profundamente desconhecida para a maioria dos americanos. Os militares americanos destruíram todos os edifícios com mais de um andar de altura em toda a parte norte da Península Coreana. Diques e represas foram bombardeados para provocar inundações. O general do exército dos EUA, Douglas MacArthur, discutiu abertamente o uso de armas nucleares contra os coreanos e seus aliados chineses. O número de mortos é estimado entre 3 e 5 milhões.

O fato de os comunistas coreanos e chineses terem conseguido forçar os EUA a um armistício diante de uma ofensiva americana tão massiva e assassina revela um nível muito alto de proeza militar. A República Popular Democrática da Coreia continua a ser o único país da história mundial a ter feito um general do Exército dos EUA como prisioneiro de guerra.

No entanto, ainda mais desconhecido do que as terríveis atrocidades cometidas pelos EUA durante a guerra é o impressionante boom econômico da Coreia do Norte após o conflito. A União Soviética despejou enormes quantidades de assistência econômica no país. Com a assistência soviética, toda a nação foi reconstruída, e o acesso à moradia universal foi estabelecido. Entre 1953 e 1956, de acordo com o texto acadêmico de Martin Hart-Landsberg, “Korea: Division, Reunification and US Foreign Policy”, o PIB da Coreia do Norte triplicou.

A Biblioteca do Congresso dos EUA publicou um estudo sobre a Coreia do Norte que descreve como o analfabetismo foi eliminado, centenas de novos hospitais foram construídos, e enormes avanços foram concretizados para a população. O livro do Dr. Bruce Cummings, North Korea, Another Country, descreve como a economia norte-coreana cresceu a um ritmo muito maior do que o Sul durante os anos 1960 e 1970.

O impecável metrô da capital da Coreia do Norte.

Se uma fotografia noturna tivesse sido tirada durante o período em que a Coreia do Norte estava experimentando o que a BBC descreveu como um “milagre econômico”, é provável que o Sul ficasse mais envergonhado do que o Norte.

A crise econômica na Coreia do Norte durante a década de 1990, especificamente a escassez de alimentos, estava diretamente ligada à queda da União Soviética. Os coreanos se referem a esse período como a Árdua Marcha. A Coreia do Norte não conseguiu importar petróleo para alimentar seus tratores e manter seu sistema agrícola. Além disso, sua capacidade de negociar nos mercados internacionais, na ausência do Bloco Comunista, era muito restrita.

A Coreia do Norte sofreu enormes reveses econômicos durante a década de 1990, com mortes relacionadas à desnutrição. Enfrentando enormes vulnerabilidades, o Partido dos Trabalhadores da Coreia adotou a política Songun, ou “militares em primeiro lugar”, com foco na Defesa.

A imagem escura da Coreia do Norte à noite é o resultado das dificuldades extremas que enfrentou a Coreia do Norte desde a queda da União Soviética. Não representa todo o histórico da RPDC.

Como a Coreia do Sul se tornou próspera

Aqueles que apontam para a fotografia não somente usam a escuridão como metáfora para demonizar o Norte, culpando o “comunismo” pelos seus problemas, mas também apontam para as luzes no Sul como prova das maravilhas do capitalismo. Eles argumentam que o “livre mercado” tornou o Sul próspero, ao contrário do “socialismo” do Norte.

Embora a República da Coreia do Sul sempre tenha mantido um sistema econômico capitalista, vincular sua prosperidade econômica a políticas de “livre mercado”, desregulamentação e neoliberalismo é nada menos do que ilusão. Park Cheung Hee, o ditador militar que assumiu o poder depois que Sygman Rhee – o autocrata anterior, apoiado pelos EUA – foi derrubado, dificilmente era um defensor do livre mercado. Durante seu reinado, os governos Kennedy e Johnson dos Estados Unidos atuaram com o Japão para facilitar o desenvolvimento econômico da Coreia do Sul.

A Revolução de Abril de 1960 envolveu ativistas estudantis e marxistas, unidos sob a bandeira da democracia e do antifascismo, e derrubou o homem-forte militar sustentado pelos EUA. O sentimento entre muitos estrategistas norte-americanos era de que a pobreza e as más condições de vida na Coreia do Sul criariam uma abertura para novas revoltas lideradas pelos comunistas. Na esperança de evitar novas revoltas comunistas no Sul, os EUA facilitaram o empréstimo de milhões de dólares para a República da Coreia, a fim de criar a Companhia de Aço e Ferro Pohang (POSCO), um monopólio do aço controlado pelo Estado.

Hollywood produziu muitos filmes de propaganda e até mesmo populares programas de TV tendo a Coreia como tema. Apesar de seu pedigree liberal, o próprio M*A*S*H pintou de branco as atrocidades americanas, banalizando a horrenda guerra e apresentando os americanos como benevolentes, felizes e sortudos benfeitores. Inocentes caem.

O governo sul-coreano – sob o comando de Park Cheung Hee e até hoje – tem feito um grande esforço para facilitar o desenvolvimento das indústrias e elevar os padrões de vida. Várias indústrias contaram com subsídios estatais, monopólios protegidos pelo Estado e outras formas de facilitação.

O regime de Park Cheung Hee é precisamente chamado de “bonapartista”, já que o Estado suprimiu ativistas marxistas e trabalhistas, bem como certas seções do capital, a fim de restaurar a estabilidade e facilitar o crescimento econômico. Embora as políticas de Park resultassem na criação de uma classe média confortável nas áreas urbanas da Coreia do Sul, elas também envolviam um enorme nível de brutalidade e repressão. Por exemplo, Park supervisionou a criação de campos de trabalho escravo para crianças órfãs e sem teto, nos quais muitas delas foram mortas, maltratadas e torturadas.

Se Park Cheung Hee tivesse feito como os defensores das políticas de livre mercado advogam e deixasse “a economia cuidar de si própria”, a parte sul da Península Coreana ainda seria extremamente pobre e subdesenvolvida.

A diferença entre capitalismo e socialismo

Quando os ideólogos do livre mercado exibem uma imagem da Coreia do Norte à noite, eles estão enganando em muitos níveis*. Eles deturpam toda a história do desenvolvimento econômico da Coreia do Norte anterior à queda da União Soviética. Eles também dão a ilusão de que o desenvolvimento sul-coreano foi realizado com as políticas de laissez-faire que eles advogam, o que claramente não aconteceu. Além disso, aqueles que apontam para a imagem infame da Península Coreana de noite, muitas vezes, compreendem mal a diferença entre capitalismo e socialismo.

O capitalismo é um sistema no qual a economia funciona para os lucros de um grupo de proprietários. Economias capitalistas geralmente incluem estradas construídas pelo governo, usinas elétricas e outras infraestruturas visando facilitar o mercado. A Constituição americana determina que o serviço postal seja mantido sob o controle do Estado, por exemplo. As entidades privadas e lucrativas que são a base de uma economia capitalista tendem a depender de tais coisas. Sob o capitalismo, a intervenção do Estado é, muitas vezes, realizada para favorecer o mercado.

O Serviço Postal americano, o Sistema Federal de Rodovias, o Medicare e outras atividades econômicas do Estado não corroeram o sistema de lucro nos EUA. Pelo contrário, eles melhoraram significativamente sua capacidade de funcionamento. Em alguns casos, os programas de bem-estar social e as proteções no local de trabalho surgiram como resultado do ativismo trabalhista e da ameaça da revolução comunista. Em muitos casos, as principais frações dos proprietários da indústria privada e das empresas estarão dispostas a aceitar tais reformas, à medida que aumentam o nível geral de estabilidade dentro da sociedade.

Programas de bem-estar social, infraestrutura e outros elementos da intervenção estatal na economia não tornam um país socialista. Enquanto a produção é realizada com o propósito de gerar lucros para um grupo de proprietários, o capitalismo prevalece. Tal qual Friedrich Engels colocou: “sob o capitalismo, os meios de produção só funcionam como uma transformação preliminar em capital”. Mao Tsé-Tung descreveu o capitalismo como “o comando dos lucros”.

Assim como a intervenção do Estado não muda a natureza capitalista da economia americana, o setor de mercado não erode a natureza socialista da China. A economia estatal da China permitiu o crescimento de uma enorme quantidade de negócios privados. Embora as indústrias e as instituições bancárias estatais sejam dominantes, um plano de cinco anos foi criado pelo governo para mapear a direção da economia chinesa. Um Partido Comunista, enraizado na ideologia marxista-leninista, tem poder ilimitado para controlar as empresas estatais e privadas, a fim de garantir que elas funcionem de acordo com as metas gerais. O setor privado trouxe quantidades grandes do capital estrangeiro e riqueza, permitindo ao Partido Comunista retirar 700 milhões de pessoas da pobreza, construir uma companhia ferroviária estatal que é a melhor do mundo e alcançar outros sucessos generalizados.

Assim como o serviço postal não torna os EUA socialista, o setor privado na China não a torna capitalista. Nos EUA, os lucros ditam a produção, com o Estado funcionando simplesmente em benefício do capital. Na China, a visão geral do Estado dita a produção, e o capital opera simplesmente à vontade dos planejadores centrais. Para simplificar: no capitalismo, as corporações privadas controlam o governo. No socialismo, o governo controla as corporações.

O vocabulário confuso do neoliberalismo

A inculcação da economia neoliberal na sociedade norte-americana desde a década de 1970 confundiu essas definições. De acordo com libertarians e apologistas do livre mercado, a economia gerida pelos lucros dos EUA é, de algum modo, “socialista” ou “meio socialista”. Os adeptos da Escola Austríaca e de Chicago igualam toda a intervenção estatal na economia ao planejamento central socialista, embora historicamente quase todas as economias capitalistas contaram com a facilitação governamental.

Os seguidores de Milton Friedman e Ayn Rand argumentaram consistentemente que os salários mínimos, os serviços de saúde garantidos e outros programas estatais resultarão em um desastre geral, pois são, de alguma forma, equivalentes ao regime de Pol Pot no Camboja ou à liderança de Stálin na URSS. Na retórica do neoliberalismo, toda intervenção do governo é equiparada aos governos marxista-leninistas do século XX e seus sistemas econômicos.

Esse é um enorme salto lógico, e essa confusão tem permeado a cultura norte-americana. Por exemplo, Bernie Sanders, que agora concorre para presidente, chama a si mesmo de “socialista democrata”. Contudo, a plataforma de Sanders não inclui nenhuma demanda por uma economia estatal ou mesmo uma única nacionalização de indústrias ou recursos. Ele simplesmente pede a expansão do Estado de bem-estar social e o aumento dos impostos sobre os ricos. Sanders chegou a dizer que sua visão de “socialismo democrático” não é contrária ao capitalismo. A declaração neoliberal de que todas as reformas econômicas progressistas são “socialismo” fez com que os liberais do Partido Democrata se proclamassem, equivocadamente, “socialistas”.

Enquanto a Coreia do Norte continua a se relacionar com o presidente dos EUA, Donald Trump, muitos esperam que Kim Jong-un seja capaz de adotar reformas econômicas no estilo de Deng Xiaoping em seu país. Eles esperam que, como a China, a Coreia do Norte possa usar o investimento estrangeiro para fortalecer seu sistema socialista.

Donald Trump recentemente tuitou seu otimismo quanto ao potencial da Coreia do Norte para o sucesso econômico e o investimento estrangeiro. Contudo, Trump insistiu repetidamente que o socialismo tem sido um fracasso em todos os lugares em que já foi tentado. Na realidade, se a Coreia do Norte fosse capaz de atrair investimentos estrangeiros, como a China fez, e se tornar mais próspera, isso seria um exemplo de funcionamento do socialismo.

Investimento estrangeiro não garante crescimento significativo

Muitos países experimentaram investimentos estrangeiros significativos, mas permaneceram profundamente empobrecidos. Os regimes da América Central, apoiados pelos EUA, a Nigéria (o maior Estado produtor de petróleo na África), Bangladesh, Haiti e outros países profundamente pobres, todos foram significativamente penetrados pelo capitalismo ocidental. As fábricas clandestinas de Bangladesh, as praias negras manchadas de óleo do Delta do Níger e as lanchonetes do McDonalds de Honduras e Guatemala não levaram à prosperidade econômica. De fato, muitas vezes resultaram em desalojar empresas locais e encolher a economia doméstica.

Já os sucessos da China são, em grande parte, devido à capacidade do Estado de controlar o investimento estrangeiro e utilizá-lo para executar sua visão econômica geral.

No rescaldo do segundo encontro de Trump com Kim Jong-un em Hanói, Bernie Sanders se lançou como candidato pela segunda vez à nomeação democrata para a Presidência, e muitos americanos estão, sem dúvida, ponderando sobre a persistente alegação de que “o socialismo sempre falha”.

Em um mundo pós-Guerra Fria em que os sistemas econômicos são multifacetados, as realidades nem sempre são muito óbvias. Independentemente disso, a realidade revela que o controle social sobre os centros do poder econômico é preferível a uma economia que funciona simplesmente para aqueles que já são ricos ganharem mais dinheiro.

*Nota do editor: Não são só nestes níveis que há falsificação. Uma explicação quanto ao que de fato significa o fato da Coreia ser “escura” a noite é rara, o que por vezes gera confusão. As luzes vistas do espaço dependem de uma série de fatores. Um dos principais é a densidade populacional – já que, para ser vista do espaço, as luzes dependem de uma determinada aglomeração. A densidade populacional da RPDC, em 1989, era de 167/km2, enquanto que a da Coreia do Sul era de 425/km2. Hoje, o sul tem densidade populacional de 491/km2, e o norte 190/km2. A população do sul é também mais do que duas vezes maior do que a do norte. Além disso, é um fato reconhecido que, em virtude das dificuldades energéticas, o governo do norte tenta definir políticas de economia energética, e que inclusive apagões são comuns no norte. Uma comparação pode ser vista nesta imagem. Os acúmulos de luzes só são vistos em regiões com maior densidade populacional – o que não implica dizer que, nas regiões onde elas não aparecem, não haja energia elétrica.

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