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Sociedade incivil: Orientalismo e a Praça Tiananmen em 1989

A visão sobre Tiananmen foi influenciada por um triunfalismo da Guerra Fria e um excepcionalismo mítico que o resto do mundo deve seguir de alguma forma.
por Daniel F. Vukovich | Cultural Logic: An Electronic Journal of Marxist Theory and Practice – Tradução de Gabriel Deslandes
Praça Tiananmen em 1988. (Foto: Derzsi Elekes Andor)

Na quinta parte da série sobre os 30 anos do incidente da Praça da Paz Celestial em Pequim, o professor-associado da Escola de Humanidades da Universidade de Hong Kong, Daniel Vukovich, examina o episódio a partir das imagens historicamente construídas no Ocidente sobre a China como Estado-nação e sociedade e sobre as manifestações de 1989 em si. A partir do conceito de orientalismo, o autor desmistifica narrativas recorrentes na Sinologia ocidental que enquadram os protestos antigovernamentais como uma “busca pela democracia americana” ou o “surgimento de uma sociedade civil na China”. Entre os textos que são objetos de crítica pelo autor, Vukovich analisa “Os trabalhadores e Tiananmen: A política da Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim”, disponível aqui na Revista Opera.

Na conjuntura atual, caracterizada tanto pela ascensão aparentemente irresistível da China como pelo Império americano, a força social chamada orientalismo conhece uma nova oportunidade de vida. Por meio de uma leitura extensiva dos protestos da Praça Tiananmen em 1989, argumento que há uma nova forma sinológica de orientalismo em ação no mundo. Variando de acadêmicos a meios de comunicação e círculos de política de Estado, esse orientalismo surge onde o relato disseminativo de 1970 de Edward Said termina: o momento em que o orientalismo completa sua migração da Europa e da filologia para as ciências sociais e “estudos de área” americanas, para a Pax Americana e para uma relação mais próxima com a lógica e as políticas do Estado.

1978 também marca o fim da era incerta de Hua Guofeng na China, a subsequente ascensão de Deng Xiaoping e o desencadeamento do poder do capital dentro da China. Deng conduziu não apenas a uma “desmaoficação” ideológica, mas também material, eliminando sistematicamente vestígios das instituições de esquerda, salvo o próprio Partido. As políticas capitalistas de Deng e sua despolitização das esferas culturais e acadêmicas do Estado foram calorosamente recebidas não só pelas potências e corporações ocidentais que agora tinham acesso à fantasia de um bilhão de consumidores, mas enfaticamente pelos estudos da China. Para os sinólogos, uma nova temporada havia começado agora na China, e a produção de um “novo” conhecimento sobre a China despertava mais uma vez.[1] O espectro de uma China sonâmbula prestes a acordar é tão antigo quanto Napoleão e tão recente quanto a página editorial do New York Times. A partir dessa perspectiva global, ainda que orientalista, compartilhada por alguns intelectuais chineses liberais e modernizadores vulgares e estudos da área, a China estava a caminho de se tornar um país “normal”. O Outro estava finalmente se transformando e entrando na história real.

Dentro dessa nova forma de orientalismo, a China é vista como evoluindo rapidamente do Outro primitivo, comunista e “despótico” para um distante primo nosso, um que está, querendo ou não, tornando-se ocidental e “moderno”. A China está colocando seu passado “asiático” para trás e se tornando, de um modo geral, equivalente ao Ocidente. Lembre-se de que, para o orientalismo, o Outro é radicalmente e essencialmente diferente: diferente em psicologia, costumes, política (“despotismo”), sexualidade, mente e assim por diante. Como disse Kipling, “Oriente é Oriente, e Ocidente é Ocidente, e nunca os dois se encontrarão”. Ou como Said resume: o orientalismo é um “estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica entre ‘o Oriente’ e (na maior parte do tempo) ‘o Ocidente’”. Porém, no caso da era da “reforma” chinesa pós-Mao, essa forma de orientalismo gira em torno de seu objeto de estudo – a China e suas massas vitimizadas, mas “dissidentes” – inexoravelmente, mas inevitavelmente, se tornando o mesmo que “nós”. Isto é, os chineses estão seguindo em nossa esteira, tornando-se o mesmo que nós, sujeitos livres de um Estado-nação liberal “aberto” e uma “sociedade civil”, um processo teleológico que, um dia, prosseguirá a reboque de sua economia capitalista.

Essa forma sinológica do orientalismo marca uma mudança da lógica diferencialista documentada por Said para uma que agora se volta para a similaridade (o tornar-se o Mesmo da China). Como convém ao sistema-mundo atual, também segue uma lógica do capital de equivalência geral. Essa mudança histórica tem consequências como a crítica ao modelo de orientalismo de Said e dos estudos pós-coloniais, pois nos mostra que eles não conseguem lidar com uma das principais contradições do colonialismo moderno, a saber, que, em algumas instâncias e projetos absolutamente cruciais – por exemplo, projetos missionários e teorias da modernização – não é simplesmente permitido, mas obrigatório que o Outro se torne o Mesmo ou que o Outro entre em um processo de tornar-se o Mesmo. Isto é, apesar do senso de diferença entre uma localização do “Oriente” e o observador externo, uma lógica opositora – uma ontologia e epistemologia opostas, agora enraizadas na equivalência – prevalece. E, todavia, se tudo isso mudou dentro desse novo orientalismo, seus efeitos são, de modo crucial, familiares: não só é uma deturpação do República Popular da China e parte de uma produção global e desigual de conhecimento que beneficia o Ocidente; ele também produz o que realmente conta como a “China real”.[2] Também retém a estratégia retórica-chave do orientalismo, como Said teorizou: a superioridade posicional do observador da China (ou especialista), de tal modo que a China ou as coisas chinesas nunca são autorizadas a desafiar as categorias de pensamento recebidas. Em outras palavras, as realidades sociais, textos ou contextos que os intelectuais confrontam, nunca podem fazer diferença na produção do conhecimento (sinológico). Que possa haver uma incomensurabilidade entre a teoria ocidental ou os métodos de uma disciplina e a realidade estrangeira é uma noção muito remota, se não impossível, dentro do orientalismo e dos principais estudos da China. Em lugar algum os problemas da “teoria das viagens” são abordados e raramente, se não nunca, são contrastados, ou os conhecimentos “locais” são consultados.

A maior parte deste ensaio tratará dos protestos da Praça Tiananmen e argumentará que sua interpretação pelos estudos da China e pela mídia ocidental são emblemáticos dessa nova forma de orientalismo sinológico. Este último se volta às figuras tradicionais do discurso colonial – por exemplo, despotismo e sujeitos “nativos” passivos e irracionais –, mas a mudança para a similaridade é trazida para o Ocidente pelo novo domínio da retórica das ciências sociais, em particular sua ênfase na China de hoje ou de um futuro próximo, que finalmente produzirá uma sociedade civil e indivíduos liberais, seguindo assim um padrão “universal” de modernização. Ao invés de ser somente um caso de estudos de área, esse orientalismo, argumento eu, faz parte do imaginário social dos EUA-Ocidente e da cultura intelectual-política contemporânea. Tiananmen como a verdade da sociedade civil “depois de Mao” tem menos a ver com a China do que com a auto-imagem do Ocidente e seu excepcionalismo.

Tiananmen, 1989, nas mentes ocidentais

Desde o final da era Mao, houve um evento – um evento de mídia global – que mais vigorosamente garantiu o lugar da China dentro das “mentes ocidentais” (meu uso da última frase se destina a demarcar o tipo de violência semântica que subentende uma antiga frase do orientalismo: a mente chinesa). Eu me refiro, é claro, ao movimento de protesto de 1989 na Praça Tiananmen, incluindo as mortes que o encerraram. Para os espectadores que vão desde a CNN até o Marxism Today,[3] os eventos da primavera de 1989 representam uma tentativa frustrada do povo chinês de entrar na modernidade política e social para alcançar uma democracia liberal e uma sociedade civil em sintonia com seus mercados recém-livres ou, em suma, para terminar uma teleologia que foi rudemente interrompida pelos – nas palavras de um jornalista da Guerra Fria – “novos imperadores”, Mao e Deng.[4]

Embora nas primeiras décadas após 1989 houvesse uma enorme quantidade de conhecimento sobre o movimento, há pouca crítica às compreensões especificamente “ocidentais” do evento. De fato, dentro dos estudos chineses, o livro de Dingxin Zhao, The Power of Tiananmen, marca o primeiro envolvimento total do trabalho de um sinólogo ocidental no tema de Tiananmen. O meticuloso estudo sociológico de Zhao faz essa crítica tanto omitindo como atacando diretamente os mais renomados decanos sinólogos de Língua inglesa. Pelo menos, foi assim que o livro foi recebido. Assim, Jeffrey Wasserstrom o critica simplesmente por não citar o trabalho de Geremie Barmé, um especialista prolífico e notoriamente versado em assuntos chineses, mas também notoriamente condescendente com praticamente todas as coisas chinesas: “Isso não importa, exceto pelo fato de que alguns especialistas (inclusive eu) o consideram [Barmé] um dos analistas da cultura e política chinesas mais perspicazes e astutos”.

Enquanto Wasserstrom fundamenta sua crítica apenas no nome próprio de Barmé, Elizabeth J. Perry condena as próprias críticas de Zhao às abordagens culturalistas e do “faccionalismo de elite chinesa” em 1989. O que mais aparece na resposta de Perry a Zhao é que ele cometeu o pecado de dispensar as principais contribuições de alguns dos arautos da Sinologia – do ex-consultor da CIA, Lucian Pye, a Roderick MacFarquhar. Perry conclui que “para um livro ousado em sua crítica às abordagens analíticas alternativas e parcimonioso em seu reconhecimento das contribuições de estudos anteriores, pode ser perdoado por termos esperado dele um pouco mais de rigor metodológico”.

Entretanto, o livro de Zhao é de fato reflexivo, e são sinólogos especializados como Perry que confiam em um empirismo pré-teórico. Zhao analisa como o espaço construído nos campi de Pequim literalmente possibilitou o movimento, e examina a construção social da opinião pública na praça. Isso certamente marca um avanço ante a hostilidade dos sinólogos anglo-americanos à teoria. Assim, o ponto de Perry sobre “rigor” deve, na verdade, ser outra coisa: a rejeição de Zhao à Sinologia como algo não muito útil para a compreensão da Praça Tiananmen. O ponto aqui é que, se o primeiro livro a repreender as abordagens dos estudos chineses sobre 1989 se depara com tal intransigência, é menos surpreendente que as questões cruciais de como “nós” vemos a China contemporânea tenham, até agora, pouca repercussão do dentro do campo acadêmico de estudos chineses.

Em relação a 1989, essa ausência de discussão sobre epistemologia e ideologia na formação do conhecimento é ainda mais infeliz. Para além da complexidade do evento, a Tiananmen foi o primeiro e talvez o mais duradouro evento de mídia global “ao vivo”. De muitas maneiras, a grande vencedora da tragédia foi a CNN americana. Contra uma área de estudos que ainda necessita questionar suas fontes mediadas de informação, a transmissão televisiva de Tiananmen dificilmente pode ser considerada uma fonte neutra. Essas imagens se tornaram emblemáticas daquilo que se enxerga como a China pós-Mao – seu verdadeiro povo, por assim dizer, e a maquinaria real e impiedosa da opressão estatal. Assim, a revista Time incluiu, em sua lista das “100 maiores pessoas do século”, o “homem-tanque” anônimo que, com sacolas plásticas na mão, aparentemente bloqueou uma fileira de tanques do Exército de Libertação do Povo se movimentando em ziguezague e se recusando a sair, até que alguns os espectadores o afastaram.[5]

O “homem-tanque” da Praça Tiananmen foi para a lista das “100 maiores pessoas do século”.

Em resumo, foi durante a primavera de 1989 que “nós” aprendemos que “os” chineses não só estavam insatisfeitos com Deng Xiaoping (o “Homem do Ano” da revista Time em 1984 e 1985), mas eram, na verdade, “americanos” disfarçados “exigindo a nossa democracia, usando nossos símbolos (a famosa estátua da Deusa da Democracia), citando até mesmo Patrick Henry (“Dê-me a Liberdade ou Dê-me a Morte!” e morrendo de vontade de se livrar do totalitarismo. Enquanto os sinólogos apreciam a oportunidade de ridicularizar a intelectualidade progressista ou simpática à Revolução Chinesa,[6] eles ainda ficam incomodados com qualquer preocupação metodológica que questione sua celebração de uma “nova China” e de seu movimento “liberalizante” e “modernizador” rumo à americanização.

“Dê-me a Liberdade ou Dê-me a Morte!”, diz um cartaz nas manifestações.

Cabe, portanto, à figura improvável de Slavoj Zizek – em um ensaio que, de outra maneira, busca defender as virtudes do eurocentrismo e a origem ocidental da democracia – desmentir essa fantasia. Referindo-se aos comentários sobre as Revoluções de Veludo nos antigos Estados socialistas do Leste Europeu, ele observa:

Viram neles a confirmação de que as pessoas do Oriente queriam aquilo que os ocidentais já tinham; isto é, eles traduziram automaticamente essas demandas para a noção liberal-democrática ocidental de liberdade (o jogo político da economia global de mercado). Emblemática foi a figura de Dan Rather, repórter americano, na Praça da Tiananmen em 1989, em frente à cópia da Estátua da Liberdade [sic: Deusa da Democracia] e alegando que essa estátua dizia tudo sobre o que os estudantes manifestantes demandavam (em suma, se você rasgar a pele de um chinês, por baixo você encontrará um americano).” (“Leftist Plea” p. 23).

Com base na noção de “igualdade” de Etienne Balibar – a “exigência incondicional de liberdade e igualdade que explode qualquer ordem social positiva” –, Zizek indica, assim, como Rather reinscreveu esse desejo “nos limites de uma determinada ordem” (o capitalismo democrático liberal). Da mesma forma, a percepção de que a estátua da Deusa da Democracia “dizia tudo” é um exemplo clássico de ideologia em ação, pois, como Althusser expressou sucintamente, a ideologia funciona interpelando obviedades como tais.[7] É possível ver essa reinscrição ideológica ainda em ação em um recente artigo do Asia Times:

Eu nunca estive mais orgulhoso de ser um americano do que quando a estátua da Deusa da Democracia, com sua impressionante semelhança com a Estátua da Liberdade, abriu seu caminho através da Praça Tiananmen. Isso tornou ainda mais frustrante ver e ouvir os líderes do protesto estragarem os princípios pelos quais presumivelmente lutavam.”[8]

No artigo, o autor assimila sem hesitar a Estátua da Deusa a seu próprio imaginário e vai além de Rather em sua prerrogativa colonialista: não apenas era o “nosso” símbolo, mas os nativos fizeram tudo errado e precisam simplesmente acertar da próxima vez. Essa última atitude lembra ainda a visão dos marxistas ocidentais sobre a China maoísta, segundo os quais os chineses, tal como os soviéticos antes deles e de todos os outros, teriam distorcido, se não traído, o marxismo – isto é, o marxismo real e autêntico, que só existe nas cabeças dos marxistas ocidentais, da Escola de Frankfurt ao trotskismo. Meu interesse aqui não está em qualquer “igualdade” sem conteúdo nem no suposto “desejo utópico” que Zizek vê agindo na Praça Tiananmen, mas no processo de reinscrição. A codificação dos eventos da Praça Tiananmen dentro de uma outra ordem social já dada remete a uma das características cruciais do orientalismo – a saber, que, em última instância, trata-se da autoconstituição e identidade do Ocidente.

A estátua da Deusa da Democracia, erguida pelos estudantes na Praça Tiananmen em 1989.

De fato, a impressão de que os manifestantes de 1989 eram praticamente “nossos” dissidentes é tão forte que os protestos em todo o país após o bombardeio da embaixada chinesa em Belgrado, em 7 de maio de 1999, foram inequivocamente condenados como uma regressão pré-1989. A Estátua da Liberdade reaparece, mas agora revestida com tinta vermelho-sangue e coberta com uma suástica (como aconteceu). Então, essa sociedade civil deve estar dominada por nacionalistas fanáticos e irracionais, manipulados pelo Estado. Contudo, alguns acadêmicos e a mídia ligaram os dois eventos e retornaram ao tema da longa marcha da China rumo à sociedade civil e moderna. Para outros, 1989 foi evocado, mas só para alegar que o movimento anti-OTAN de 1999 não deveria ser comparado àquele de 1989 porque o anterior era real e espontâneo, e o segundo organizado pelo governo ou, pelo menos, induzido.

Estátua da Liberdade nos protestos anti-americanos em Pequim, em 1999, após o bombardeio da OTAN à embaixada da China em Belgrado.

“Sociedade civil” continua sendo o critério. Na New Left Review, a autoproclamada “principal revista de esquerda em Língua inglesa”, Wasserstrom enquadra os dois protestos como um sinal de que, a despeito da retórica anti-EUA e “xenófoba”, os chineses ainda estavam se desenvolvendo adequadamente e acabarão por estabelecer uma sociedade civil e uma esfera pública verdadeiramente liberal, cosmopolita e antirregime.[9] Wasserstrom analisa 1989 e 1999 e vê a esperança da China repousando no último evento, e eu retornarei mais tarde a essa codificação dominante da China pós-Mao. Porém, perceba aqui que as principais datas da sua perspectiva histórica são todas antes e depois de Mao: da era nacionalista do Generalíssimo Chiang Kai-shek até meados da década de 1980. Wasserstrom pula a longa Revolução Chinesa em si e as três primeiras décadas radicais da República Popular. Em vez disso, ele fundamenta sua análise no breve período – se é que é possível chamar a década de 1980 assim – que melhor se ajusta à sua narrativa de sociedade civil ocidental. Em um artigo posterior na mesma revista, Wasserstrom diz o mesmo sobre um debate a respeito do significado de 1989 entre três proeminentes participantes que se tornaram acadêmicos norte-americanos (Wang Dan, Li Minqi e Wang Chaohua). Tal qual uma autoridade colonial de Oxbridge, Wasserstrom se refere ao debate entre os três como “louvável”, mas “insuficiente”, porque seus relatos não se encaixavam “com [sua] visão de 1989” e porque eles prestavam “pouca atenção” àquilo que ele já considerava ser os “dois períodos particularmente relevantes da história da China” – a República pré-Guerra Civil e meados da década de 1980. O fato de que Wasserstrom possa facilmente dispensar as análises de três ativistas e culpá-los por serem ignorantes de sua própria história diz tudo.

Há muito que poderia ser dito sobre a periodização modernizadora de Wasserstrom (e de outros autores) aqui, mas, em relação ao orientalismo, o cerne da questão é que esses movimentos retóricos ilustram perfeitamente a superioridade posicional. A era Mao simplesmente não está em discussão, apesar do fato de ter literalmente desformado e reformado grande parte da cultura e da política chinesas. O que é suprimido aqui é o próprio coração do projeto maoísta na China: a busca, historicamente sem precedentes, de uma modernidade alternativa. Como argumentaram Liu Kang e Arif Dirlik, e apesar de seus graves erros e sua substituição por Deng, o maoísmo chinês era uma alternativa ativa e real ao “desenvolvimento” e à modernidade dos soviéticos e americanos. Sinais dessa alternativa são facilmente indexados: o projeto maoísta de “marxismo sinodificante”; as políticas sociais radicalmente igualitárias centradas no desenvolvimento rural cooperativo; a criação e o empoderamento de um proletariado urbano; a tentativa de reparar a divisão do trabalho rural/urbano e manual/intelectual; a paixão distintamente maoísta pelas massas; o etos da autoconfiança e a recusa da Pax Americana; e a tentativa, desejada na China desde o século XIX, de produzir nada menos que uma nova cultura.

Tudo isso não era mera retórica estatal, mas uma crença profundamente arraigada e parte de um discurso maoísta popular e – além do mais – esteve, na verdade, institucionalizada por um breve período. Como Zhang Xudong observou, os sinólogos, assim como a intelligentsia liberal chinesa, ainda não chegaram a um acordo sobre o fato de que a Revolução Cultural continua sendo o período mais significativo de democracia participativa da China.[10] Assim, qualquer periodização dos movimentos democráticos na China deveria envolver essa era. Também assim esse período influenciou 1989, quando estudantes e trabalhadores faziam referência aos slogans da era de Mao e da Revolução Cultural (mesmo quando o objetivo era dizer como o movimento estudantil não tinha relação com isso).[11] Desse modo, não era permitido nem às experiências nem ao projeto da era Mao desafiarem o conhecimento sinológico, incluindo a verdade sobre a Praça Tiananmen como sociedade civil-modernização. Este ensaio oferecerá uma crítica dessa última codificação. Contudo, trata-se de uma crítica destinada a servir a outro propósito simultâneo: reformular a Praça Tiananmen como, em parte, enraizada na história e experiência profundamente políticas e profundamente complexas da era Mao e em sua recente negação pelo crescimento do capitalismo dentro da China. A crítica imanente do orientalismo, se é para ser mais do que a análise do estereótipo e do discurso colonial, também tem que prosseguir – em contraponto a Said – por meio de uma análise das complexidades históricas e culturais que são negadas pelo primeiro.

Visão geral dos protestos

Como a Tiananmen é tão amplamente invocada e ainda pouco estudada, vale a pena recordar uma narrativa básica dos protestos, antes de mergulhar ainda mais no seu lugar dentro do orientalismo sinológico.[12] Eles são datados de 15 de abril, com a morte de Hu Yaobang. Hu era o ex-herdeiro de Deng Xiaoping, mas foi expurgado em 1987 em uma campanha “antiliberalização burguesa” por estar demasiadamente enamorado com a ocidentalização/mercantilização e como uma retaliação por ter expurgado maoístas não arrependidos ou os chamados linha-dura remanescentes do Partido. Para os estudantes, a morte de Hu propiciou a ocasião para iniciarem as manifestações que eles já estavam planejando em comemoração ao 70º aniversário do Movimento 4 de Maio, uma ocasião de longa data para protestos comemorativos.

As principais características do contexto de 1989 incluem a inflação descontrolada em uma economia estagnada; migração rural maciça para as cidades (resultado da descoletivização); a disparada do desemprego nas empresas estatais; a corrupção oficial desenfreada; e o fermento ideológico para atividades políticas e culturais nos campi e além deles. Estas últimas iam desde os “salões democráticos” nas universidades e cartas abertas de vários intelectuais pedindo anistia para todos os “presos políticos”, à mais radical “paixão por Mao” e “febres culturais” que ocuparam muitos outros campi.[13] Assim, é preciso reconhecer que a China do início dos anos 1980 estava – como sempre – longe de um cenário de conformidade e controle de massas, e os protestos eram tudo menos uma manifestação espontânea de dissidência, desejo utópico ou Zeitgeist milenar.

Poucas horas após a morte de Hu, cartazes de luto foram colocados, pedindo sua segunda reabilitação (ele foi expurgado pela primeira vez durante a Revolução Cultural), protestando contra a corrupção e apelando a um papel maior para a educação e para os intelectuais. Nas semanas e dias seguintes, o número de cartazes explodiria, e seu conteúdo passaria do destino de Hu para demandas mais políticas e específicas, muitas vezes atacando Deng Xiaoping e Li Peng (que mais tarde declarariam a Lei Marcial, em 28 de maio). As primeiras manifestações na praça foram escassamente atendidas e não aumentaram até o “incidente sangrento do Portão Xinhua” de 20 de abril. Nesse portão dos escritórios do Comitê Central, os estudantes exigiam o diálogo, mas acabaram se enfrentando com a polícia. O incidente provocou paralisações estudantis e mais manifestações. A partir daí, o próximo momento-chave foi o funeral de Estado de Hu, em 22 de abril, do qual os estudantes, com mais de 50 mil homens na praça, foram impedidos de participar. Após o diálogo com os funcionários – talvez mais lembrado por causa de três estudantes se ajoelhando nos degraus do Grande Salão do Povo para fazer uma petição (um gesto que Geremie Barmé codifica como “feudal”) –, o líder estudantil Wuer Kaixi garantiu a promessa de que uma reivindicação dos estudantes finalmente havia sido atendida: Li Peng sairia à Praça para conversar. Peng não o fez. Daí a grande raiva e trauma (muitos estudantes choraram por isso), o que resultou, portanto, no surgimento de novas organizações estudantis e na radicalização do movimento.[14]

Uma convocação para uma greve estudantil municipal foi anunciada, e os protestos continuaram nos campi e na praça. O governo lançou sua primeira resposta pública: uma denúncia de “turbulência” antigovernamental (uma palavra-código remetendo à Revolução Cultural) promovida por um número “extremamente pequeno” de pessoas. Transmitido pela televisão e depois impresso como o editorial do Diário do Povo em 26 de abril, esse pronunciamento enfureceu os estudantes porque os acusava de serem antipatrióticos. Isso imediatamente levou a grandes manifestações no dia 27, realizadas por dezenas de milhares.

Em 29 de abril, o governo iniciou vários diálogos com os estudantes. Embora amistosos, os diálogos iniciais não tinham substância e não levavam a nenhum lugar.[15] Porém, vale a pena notar que o governo cedeu à exigência básica de reconhecimento dos estudantes e de suas queixas. Zhao Ziyang, primeiro-ministro “reformador” e possível sucessor de Deng (e expoente liberal neo-autoritário[16]), disse em uma reunião do Banco Asiático de Desenvolvimento que os estudantes “não eram, de forma alguma, opositores ao nosso sistema básico”, conforme evidenciado por seus slogans (“Apoie o socialismo!”, “Defenda as reformas”, “Oponha-se à corrupção” e coisas como essa). Zhao também fez com que a mídia estatal reportasse as manifestações de forma mais positiva, o que, de fato, aconteceu, tendo revertido o editorial infame.

Esses gestos em direção à conciliação foram um pouco tarde demais, e o movimento se intensificou – o que não foi menos importante, pois o movimento não estava mais nas mãos dos estudantes. Em 2 e 4 de maio, houve grandes manifestações chegando a 100 mil no segundo dia, que era uma data comemorativa. Enquanto isso, trabalhadores urbanos, jornalistas e outros começaram a participar. Na verdade, o momento da participação dos trabalhadores – completamente desperdiçada no fascínio ocidental com os estudantes e cidadãos “anônimos” – foi essencial e tornou Tiananmen um movimento de massas. Voltarei abaixo a esse tema negligenciado. No dia 13 de maio, dois dias antes do próximo diálogo oficial, começou a primeira greve de fome, absolutamente radicalizante, com a participação de até dois mil estudantes. Zhao, de forma conservadora, sugere que a greve de fome foi um erro, marcando o início do declínio do movimento, sua desorganização e sua cooptação por “radicais”, como a líder estudantil Chai Ling; Maurice Meisner observa, de forma perceptiva, que se tratava de “um golpe tático de gênio político” que ativou o apoio popular e “politizou um número cada vez maior de cidadãos entre os 10 milhões de pequineses”. A greve galvanizou Pequim e levou o movimento a um forte conflito com o governo. A visita histórica de Mikhail Gorbachev teve de ser transferida para a pista do aeroporto, longe de Tiananmen. Três dias após a greve de fome, em um sinal de apoio em massa ao movimento e da crescente tensão, um milhão de pessoas encheu a Praça Tiananmen.

Nesse ponto, com o apoio de um grupo de 50 intelectuais, alguns líderes estudantis tentaram persuadir os outros a porem um fim à greve, até porque a própria lei marcial parecia imanente (no dia 20, a greve de fome terminou). De fato, na noite de 19 de maio, as tropas do Exército de Libertação do Povo entraram em Pequim a partir dos subúrbios e, na manhã seguinte, Li Peng e o presidente Yang Shangkun declararam a lei marcial. Zhao Ziyang votou contra a lei marcial e foi forçado a renunciar. Naquela noite, ele fez sua chorosa despedida aos estudantes que faziam greve de fome, depois de pedir a eles que voltassem a seus campi.

A população da cidade se defrontou com a chegada de um exército de pessoas quase desarmadas erguendo barricadas, interrompendo efetivamente a logística do exército. Entretanto, as relações entre o povo e o exército eram notavelmente pacíficas, com casos de violência apenas ocasionais. Como resultado, um impasse foi alcançado, com o governo retirando suas tropas em 22 de maio. A essa altura, numerosos outros grupos de estudantes, muitos deles de fora de Pequim, também ocuparam a praça e desafiaram a autoridade dos líderes originais da greve de fome. Estes últimos não conseguiram persuadir todos os estudantes a deixarem a praça. Enquanto muitos saíram, a praça era diariamente preenchida de novo por grupos de trabalhadores recém-chegados e outras pessoas comuns. Duas outras chegadas notáveis – a estátua da Deusa da Democracia e estrela do rock taiwanês, Hou Dejian (que fez uma apresentação com entusiasmo) – atraíram ainda mais gente. Nesse ponto, Tiananmen era um movimento de massas.

O astro de rock taiwanês, Hou Dejian, participou da ocupação da Praça Tiananmen.

Naquela noite, novas tropas avançaram rumo à praça. Os detalhes do confronto permanecem um tanto obscuros, mas o que sabemos agora é que nenhuma morte ocorreu na própria praça. Os estudantes restantes foram autorizados a sair, graças, em parte, às negociações dos intelectuais e de Hou com as tropas. As mortes aconteceram nos arredores da praça, principalmente na Avenida Chang’na, a oeste. A grande maioria das vítimas eram trabalhadores e outras pessoas “comuns” envolvidas em combates com as tropas ou simplesmente no caminho do enfrentamento. Mais de 100 veículos militares foram queimados. O número exato de mortos é desconhecido, mas foi revisado para baixo de vários milhares para algumas centenas.[17]

Tumultos irromperam na distante Chengdu, um trem foi queimado em Xangai, e houve relatos de escaramuças entre as tropas. Nos meses seguintes, o governo prendeu muitos estudantes, trabalhadores e pessoas que teriam lutado nas ruas. Houve inúmeras execuções pós-4 de junho (embora eu não tenha conhecimento de nenhum estudante morto depois de 4 de junho). Outros conseguiram fugir do país. Deng apareceu em público em 9 de junho, elogiando os militares. Contra a expectativa de muitos especialistas da China, o evento de Tiananmen não provocou nem o colapso do regime nem seu ostracismo internacional; em uma economia rapidamente mais globalizante, o incidente não introduziu uma era de freios aos ditos linhas-duras. Deng lançou sua famosa Turnê ao Sul, em 1992, aumentando consideravelmente o ritmo da liberalização econômica e, em 2000, a China aderiu à Organização Mundial do Comércio com status permanente de “nação favorecida” junto aos EUA. A legitimidade do Partido passou a estar indissoluvelmente atrelada ao desempenho econômico nacional.

Reinscrevendo Tiananmen como o nascimento da sociedade civil

A seguir, desejo mostrar o que é deixado de lado em relatos-padrões (como o acima) e em sua reinscrição, na qual Tiananmen serve como significado de sociedade civil e de que a China “está se tornando um país normal”. Criticarei essa codificação sinológica como análoga a um antiquado discurso colonial e oferecerei aspectos alternativos de 1989 que complicam e deslocam tal conhecimento. Essa informação alternativa se destina a sugerir um contra-conhecimento do evento de Tiananmen, das formas políticas e da realidade chinesas e das conexões do presente com o passado maoísta. Como sugeri, podemos apreender essa forma de orientalismo da maneira como Tiananmen foi explicada e construída – o que aconteceu, por que aconteceu e o que significa para o futuro da China, bem como para entender seu passado maoísta (ou anterior). Porém, o que emerge dessas análises-padrões é o “conhecimento” de que a China está em um processo histórico-mundial para se tornar moderna e equivalente em geral ao Ocidente, e isso deve acontecer para que o país progrida, se desenvolva ou se torne livre e moderno. Essa declaração atravessa virtualmente todas as explicações, dentro e fora da Sinologia, e é talvez o elemento primordial do orientalismo sinológico e sua abrangência global – seu “sistema global de dispersão” (segundo Foucault).

Das principais escolas de interpretação de Tiananmen – as abordagens faccionalistas, culturalistas e de sociedade civil – é a última que predomina, embora todas se sobreponham, muitas vezes na mesma análise.[18] A sociedade civil é o subtexto dos outros dois, na medida em que serve como aquilo que está faltando às elites e à cultura chinesa. Assim, Jonathan Unger observa: “O que a população urbana da China exigia, em suma, não era menos nem mais que uma ‘sociedade civil’. Quando colocaram suas bandeiras com a palavra ‘democracia’, o que a palavra significava não era democracia nos nossos termos, mas sim Sociedade Civil”. A sociedade civil é aqui definida (mesmo capitalizada) no sentido convencional liberal ou hegeliano – tal qual acontece em toda parte nos estudos da China – como o “espaço” social entre a esfera política (sociedade) e a população em geral e é constituída por instituições não estatais; ela requer ainda “um etos independente” que Unger vê como antes ausente nos vários milhares de anos da história chinesa.[19] Assim, dentro da criação de organizações “autônomas” de estudantes e trabalhadores, “uma nova consciência [um ‘espírito independente’] havia nascido”, e, ainda assim, formou-se tragicamente “de forma muito grosseira” (assim como suas noções de democracia), e os chineses têm “muitos mais passos a dar” antes de alcançar a indefinida terra prometida.

Da mesma forma, o eminente teórico social Craig Calhoun proclamará que o que os estudantes verdadeiramente desejaram – e o que o próprio evento marca – era o surgimento de uma “esfera pública” e da sociedade civil dentro da República Popular da China. É como se a narrativa burguesa de “desenvolvimento” político e econômico fosse verdadeiramente universal e como se soubéssemos o que a “sociedade civil” e a “esfera pública” realmente são no Ocidente e, mais ainda, o que elas são no contexto da China contemporânea. Por isso: “O protesto estudantil foi moldado pelo surgimento de uma sociedade civil na qual os cidadãos estavam conectados por fora do controle direto do Estado e de uma esfera pública não restrita a intelectuais”. Além disso, o movimento fracassou devido à negação “totalitária” de longa data da China sobre a esfera privada e familiar e do espaço para o “discurso racional-crítico”. Na verdade, Calhoun supera Unger na descoberta do que realmente sempre faltou no caráter chinês e em sua sociedade, mas que começou a surgir com movimento estudantil e a impulsioná-lo: a amizade. Devido à diferença cultural (um valor mais atribuído aos membros do grupo do que à individualidade) e às deformações passadas infligidas pelas lutas de classes e categorias de classe (o Estado), o “novo fator” dos “ideais de amizade” só surgiu em 1989. Calhoun não define amizade aqui, mas a usa no sentido de “laços pessoais” e sentimento “individual”. Assim, ao invés de, digamos, permitir que sua noção de amizade seja desafiada pelo contexto chinês, ou analisar a cultura chinesa em outros termos que não sejam apenas o de falta, Calhoun supõe que os chineses sempre foram socialmente controlados pelo Estado e sem amigos. Tão forte é seu desejo de codificar o evento da Praça Tiananmen como um surgimento da sociedade civil e de uma esfera pública (com o necessário “etos independente” e “redes pessoais de amizades”) que a própria psicologia, cultura e caráter de seus objetos de estudo devem ser tipificados e encaixados no modelo, naquilo que ele e os sinólogos veem como um processo histórico mundial de democratização.

A codificação de Tiananmen como a verdade da sociedade civil implica um culturalismo impressionante, apontando o que sempre faltou à cultura chinesa, e uma aplicação universalizada e sem problemas de conceitos enraizados na história ocidental em uma realidade chinesa dócil. Também nega ação ao povo chinês, que é visto não só como controlado, mas dominado pelo Estado despótico, totalitário e pré-moderno. Esses referenciais da prática orientalista informam muitas das análises sobre Tiananmen na influente coleção “Protesto popular e cultura política na China Moderna”. Elizabeth Perry, por exemplo, refere-se à “fragilidade” da sociedade civil na China, já que a “onipresença” do Estado “inibiu” seu “florescimento”. Os protestos de 1989 foram condenados tanto pela cultura chinesa quanto pelo próprio poder do Estado. O Estado, como sempre, deformou a cultura: o “tradicionalismo” dos estudantes explica a sua – fracassada e não moderna – “ênfase no moralismo” e “estilo de protesto feudal” (petições e cartazes) e suas “tendências centradas no Estado” (pedindo que suas demandas fossem reconhecidas, além de sua “deferência à autoridade do Estado”). Em suma, o movimento estudantil era “notavelmente confucionista”.

Perry nota que o suposto “tradicionalismo” dos estudantes “não foi decorrente de alguma cultura confucionista imutável”, mas foi antes o resultado das antigas “ligações entre o Estado e Confúcio”. Porém, culpar o Estado “confuciano” em vez da “cultura confuciana” não é um grande avanço em relação à imagem convencionalmente orientalista de usar o confucionismo para explicar a China moderna. Isso também ignora o trabalho de estudiosos como Vivienne Shue, que argumentou de forma persuasiva que o Estado comunista chinês é, ou era, muito menos controlador do que a Sinologia acreditava até então.[20] Shue argumenta que a substituição da “política de favo de mel” da era Mao pelas “teias de comércio” de Deng, na verdade, resultou em uma maior controle e dominância do Estado, uma análise que poderia ter servido de base para Perry. No entanto, Perry não estabelece diferenças entre os regimes, vis-à-vis o Estado.

Essa mesma falta de ação e excesso de poder do Estado – sempre construídos como um problema exclusivamente chinês – estão presentes nas análises feitas por Joseph Esherick e Jeffrey Wasserstrom. Depois de observar que, com o advento da República Popular da China, “os brotos da sociedade civil republicana foram cortados completamente”, implicando assim novamente a teleologia da modernização burguesa ou da Europa, eles resumem sua análise da Tiananmen como um tipo de “teatro” encenado e proclamam: “Sem uma sociedade civil, apenas o teatro de rua permanece como um modo de expressão política”. Eles começam alegando que os protestos da Praça Tiananmen não podem ser rotulados como um “movimento democrático” (infelizmente, havia “vários contornos de significado” para minzhu ou “poder do povo”); eles então codificam o movimento e toda a moderna política chinesa como uma forma de “teatro político”, cheio de rituais e “performances carregadas de símbolos” para mover “plateias”.

Meu ponto não é que essa metáfora esteja além dos limites do razoável, mas que ela deveria ser demarcada como tal: como uma metáfora. Ela também seria mais eficaz se fosse teorizada adequadamente, talvez com base no trabalho de Erving Goffman sobre a “dramaturgia” da auto-apresentação, ou ainda sobre a relevante teoria chinesa do teatro.[21] Nos ensaios de Esherick e Wasserstrom, a política chinesa moderna é realmente um palco, e todo o seu povo é apenas um ator. É como se a complexa realidade humana e política do evento de 1989, sem falar nas oito décadas anteriores, fosse simplesmente uma grande ópera chinesa e nada mais. Na melhor das hipóteses, trata-se de uma análise trivial, e, na pior das hipóteses, um exotismo em sua redução da China a algo meramente cultural. O impulso da metáfora do teatro é mostrar a falta de sociedade civil, que é o ponto da comparação de seu ensaio sobre a China com as revoluções “bem-sucedidas” da Europa Oriental. A ironia dessa comparação é especialmente notável, dada a comparação do antigo Bloco socialista com a China de hoje. Apontando novamente para um vazio no coração da China – a saber, a ausência de instituições da esfera pública ocidental como a Igreja e “a cultura da sociedade civil” em geral –, os chineses estão desamparados. Ficam com o “teatro de rua” e seus rituais (um palco fascinante, espetacular, hollywoodiano, mas muito pré-moderno e limitado). Desnecessário dizer que essa fetichização de rituais e “superfícies” em si tem uma longa história dentro dos escritos sobre o Oriente, variando de Mateo Ricci e Marco Polo até O império dos signos, de Roland Barthes.

Outras reinscrições da Tiananmen como a verdade da sociedade civil ocidental são menos culturalistas, mas, mesmo aqui, o ponto do modelo conceitual não se limita a só criticar o regime, mas mostrar a China apenas vagarosamente, a contragosto, e mostrar seu desvio da teleologia adequada do progresso e da modernidade. Assim, Andrew Nathan comentará: “A China está finalmente se unindo ao mundo – econômica, cultural e politicamente. Ela acabará se tornando uma democracia”. A posição de Nathan e outros da China como não sendo – até recentemente – parte do mundo é uma peça com fantasias orientalistas clássicas sobre o Shangri-La (o Tibete Ocidental), mas o ponto mais importante é que ela nega não só a história chinesa – mesmo a “autarquia” desconectada dos maoístas era parte integral do sistema mundial de comércio, política e cultura – mas também a natureza contemporânea do tempo e do espaço compartilhados pelos “chineses”.[22] Ralph Litzinger resume bem o problema aqui:

“A antropologia colonial europeia tendia a construir outros não europeus como objetos de ausência. Esses outros, rotulados variadamente como o primitivo, o não letrado e o subdesenvolvido, eram vistos fora do espaço e do tempo da modernidade ocidental; eles eram essencialmente negados a qualquer senso de contemporaneidade compartilhada. A cultura, tanto na antropologia colonial quanto na modernista primitiva, estava quase sempre situada no reino do costume, do festival e do ritual, todos considerados fora da problemática histórica da modernidade ocidental.”

Enquanto Nathan acredita que a China se tornará uma democracia algum dia (e é óbvio para ele que nem a Revolução Cultural nem o período da “Nova Democracia” até os anos 1950 foram democráticos), ele discorda de Tony Saich e outros que saúdam a “nova classe de pequenos empreendedores individuais gerados pelas reformas” como prova da existência de uma sociedade civil em 1989. Para Nathan, essa “classe” carecia como requisito de um “nível de coerência e autonomia social” que o termo “sociedade civil” – mais uma vez, assumido como uma coisa real originada no Ocidente – implica, classificando mais uma vez a consciência chinesa e os atores apontados por Unger em Tiananmen como “grosseiramente formados”. Porém, dizer que a consciência e a política “propícias” eram incipientes ainda é dizer que os chineses estão em processo de se tornarem iguais a nós. Assim, é a figura da falta que, paradoxalmente, subscreve a lógica da equivalência, de uma semelhança, que é a base do novo orientalismo.

Contudo, concebida como inteiramente ausente, circunscrita ou nascente, a noção ocidental de sociedade civil é raramente ou nunca contrastada com discussões nativas de uma versão historicamente chinesa, ou alternativa, de sociedade civil e de esfera pública.  Wang Hui argumentou, por exemplo, que a esfera pública na China existe há muito tempo “dentro do espaço do Estado” e, portanto, não pode ser “separada naturalmente” do poder estatal. O ponto de vista de Wang, partilhado por Zhang Xudong e outros, é que a reforma democrática na China terá necessariamente que trabalhar dentro e contra o Estado e também contra o mercado.[23] Embora não haja praticamente nenhum debate sobre isso nos relatos sinológicos que se recusam a envolver as questões da sociedade civil e da esfera pública, elas foram objeto de intenso debate dentro da China nos anos 1980 como parte da era da febre cultural. Embora pareça correto o julgamento de Haun Saussy de que esses debates estivessem “viciados” por usarem um conceito que a China não possuía – uma sociedade civil –, outras análises reformularam muito produtivamente todo o tema da esfera pública e da democracia realmente existente na história chinesa.

Além de Wang e Zhang, Liu Kang argumentou que tanto a prática maoísta da Revolução Cultural quanto a teoria dos múltiplos “centros culturais” de Hu Feng sobre a China mostram a existência de alternativas chinesas à modernidade burguesa e sua sociedade civil. Dado o que Kang apropriadamente caracteriza como “as dicotomias liberais/totalitárias ou antimarxistas/marxistas” que filtram o conhecimento sinológico, a hostilidade do campo de estudos chineses ao marxismo chinês não é surpresa. Talvez mais surpreendente seja o nível de superioridade posicional, o consistente fracasso – inclusivo entre acadêmicos fluentes em mandarim – de consultar fontes “nativas” que possam desafiar suas suposições dominantes. O par de dicotomias formuladas por Kang também nos alerta para as conexões profundas, especialmente no caso da China e da Ásia, entre o orientalismo e o anticomunismo. Os sinólogos pós-Mao podem trabalhar com tais noções vulgares e não interrogadas do “Outro Chinês” precisamente porque seu objeto de crítica não é o povo chinês em geral (a quem eles, todavia, frequentemente depreciam por implicação), mas o Estado chinês ou a política chinesa e o marxismo chinês. Eles fazem parte da longa história de comunistas orientalistas – desde bem antes de Wittfogel ter caracterizado Stálin e a Rússia soviética como “asiáticos” nos anos 1930 (por exemplo, A crescente maré da cor, de Lothrop Stoddard, de 1920).

Tão importante quanto isso, havia muitas coisas em Pequim que desafiam diretamente a interpretação da sociedade civil. Entre elas, destacam-se a criação, em 22 de abril, da Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim e seus 20 mil membros, e a greve geral de facto que irrompeu em toda a cidade no início de junho.[24] Claramente, Deng e cia. viram isso como um desenvolvimento mais significativo do movimento: daí a “disparidade” entre quem foi morto e preso e a velocidade de aplicação da Lei Marcial e a repressão em primeiro lugar. Enquanto os estudantes podiam conquistar os corações e as mentes dos observadores locais e globais, particularmente dos americanos que viram “seus” símbolos sendo exibidos, apenas os trabalhadores poderiam representar uma ameaça real ao Partido Comunista e à economia.

Enquanto alguns sinólogos examinaram a formação da Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim e o papel dos trabalhadores no movimento,[25] ninguém até hoje permitiu que ela reformulasse a questão da sociedade civil como a verdade de Tiananmen, ou do passado e futuro da China. Isso, a despeito do fato de que são precisamente a figura e o lugar da classe trabalhadora dentro da história e das teorias europeias, se não globais, que desmentem a sociedade civil e a esfera pública como o reino da liberdade e da democratização. Lembre-se de que, para Marx, escrevendo do ponto de vista do proletariado, a emergência histórica da época burguesa e a consequente emergência da igualdade formal e da sociedade civil representaram um passo à frente e dois passos atrás.[26] Pois elas só surgiram quando a força de trabalho se tornou uma mercadoria e todo o trabalho concreto foi reduzido a trabalho abstrato e homogêneo. Isso quer dizer, então, que a sociedade civil se baseia no sistema de classes capitalista e que os direitos políticos e civis formais – por mais valiosos que sejam – não podem resultar em emancipação social para a classe trabalhadora. Para ela, os meios de reparação estão bem além da sociedade civil: o processo de trabalho nos campos e fábricas e a administração estatal da economia. “Liberdade e democracia”, a suposta razão de ser da sociedade civil, aparecem assim como os significantes vazios que são, capazes de serem articulados a qualquer coisa que não a economia como tal – ao menos para a grande maioria dos trabalhadores na China, que passam a maior parte do tempo trabalhando e reproduzindo sua força de trabalho.

Agora, pode-se argumentar, na forma tradicional liberal, que o Estado pode ser obrigado a se curvar, se não ser derrubado, em resposta à sociedade civil, de modo que a bifurcação de classe possa ser corrigida, se não for transcendida, pela política da esfera pública. Entretanto, essa perspectiva, seja qual for o sentido que tenha tido no Ocidente nos anos 1960, ainda pressupõe que a sociedade civil é independente e, em última instância, mais forte que o Estado. E são precisamente esses dois fundamentos e requisitos históricos que têm sido contestados por teóricos políticos e historiadores tão diversos quanto Sheldon Wolin e Antonio Negri e Michael Hardt.[27] Baseando-se em uma genealogia do pensamento “pós-moderno” e americano “comunitário”, Hardt e Negri argumentam que, neste ponto da história, o Estado subordinou a sociedade civil e é capaz de “legitimar autonomamente a nova ordem social”, com as classes e outras divisões intactas. Ou, mais especificamente, o capital não só instrumentalizou o Estado, mas agora este último “mostra um nível de integração estrutural da sociedade civil que se aproxima dos limites extremos previsíveis”. Em suma, “a sociedade civil não existe mais”, já que o Estado não precisa mais dela para lidar com os antagonismos sociais ou para “legitimar seu poder”.[28]

Essa subsunção teórica e histórica da sociedade civil levanta muitas questões em relação ao contexto chinês. Em um nível, sugere que são o Ocidente e os EUA que seguem o caminho chinês e não o contrário, mas aqui eu simplesmente quero afirmar que o ponto de Hardt e Negri, assim como o leque de estudos que eles elaboram, questionam a aplicabilidade do modelo de sociedade civil aplicado à China. A implicação é que a abordagem é anacrônica. Além disso, o argumento global sobre a subsunção da sociedade civil pelo Estado se encaixa com a análise de Marc Blecher das relações contemporâneas entre sociedade e Estado na China. Blecher argumenta que, embora os protestos da Praça Tiananmen sugiram que a “sociedade” na era Deng conquistou certa autonomia do Estado, o outro lado dialético é que “o Estado também vem adquirindo da sociedade civil novos tipos de autonomia”. Enquanto pressupõe que alguma forma não especificada de sociedade civil “se encaixa” na China, o ponto principal é que o Estado parece estar preparado para simplesmente ignorar a agitação civil. Pode dizer que essa sociedade civil imputada não existe mais. E independentemente da teorização específica sobre o tema, “sociedade civil” é um veículo improvável para a “liberalização” política do Estado chinês que os estudos ocidentais sobre China tão fortemente desejam.

Incivilidade, ansiedade sinológica e a Tiananmen do trabalhador

Todavia, para retornarmos ao envolvimento da Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim e dos trabalhadores nos protestos na Praça Tiananmen, pode-se ver como é problemático inserir suas demandas e atividades em uma sociedade civil em ascensão (ou ausente). Pois suas demandas eram, em geral, tudo menos um modesto e reservado lugar dentro de tal esfera:

A classe trabalhadora é a vanguarda da República Popular. Temos todo o direito de expulsar os ditadores. Com um grande esforço conjunto, lutamos bravamente para defender a verdade de Marx, Engels, Lênin e Mao e para derrubar a ditadura dos agressores Deng e Zhao. Nós os faremos pagar a dívida de dez anos de sangue e lágrimas.”[29]

O que fica claro a partir dessas e de outras declarações semelhantes (de dazibaos ou de cartazes de grandes caracteres) não é só sua retórica marxista (na verdade, marxista-leninista-maoísta), mas que a perspectiva e a autoria implícitas nelas se contrapõem a um etos meramente civil, “independente”, que reconhece todos os “cidadãos” como equivalentes em uma “cultura da sociedade civil”, que não é prejudicada por traços tão infelizes como o ódio de classe e ressentimento (para lembrar a caracterização de Calhoun da era Mao). Como diz outro pôster, a classe trabalhadora é a vanguarda precisamente porque “a riqueza, criada pelo nosso trabalho, é usada para manter o estilo de vida daqueles senhores sentados nas costas do povo”, e assim essa classe tem “uma missão histórica e um dever sagrado”.[30] Como no caso acima, essa declaração “incivil”, de autoria de “um funcionário do Sindicato e 253 trabalhadores”, recusa qualquer noção de que a classe trabalhadora é apenas um dos atores no jogo da sociedade civil. Seu ponto de vista lembra não apenas Lenin, mas Mao e o posicionamento de décadas e privilégios dos trabalhadores – inclusive por meio da educação e propaganda sindical – como a classe-líder da revolução e do Estado-nação.

Porém, também lembra o trabalho clássico de Georg Lukács sobre reificação e consciência de classe, que teorizava como o proletariado, por causa de seu posicionamento histórico dentro do processo de produção, é singularmente capaz de ver (totalizar) a totalidade social e levar à sua transformação.[31] Contudo, o argumento de Lukács é maior do que isso e está relacionado justamente à problemática da sociedade civil em sua dissecação famosa das antinomias do pensamento burguês. De uma perspectiva lukácsiana, a classe trabalhadora simplesmente elimina tais antinomias como sociedade civil, uma esfera de liberdade predicada na divisão de classes, e parcela da anarquia e diferenciação social que torna a totalidade tão difícil de apreender. Em outras palavras, se uma antinomia é uma contradição insolúvel entre uma ideia de razão e um conceito ou fato de experiência, então, do ponto de vista da sociedade civil da classe trabalhadora, é uma antinomia – uma mentira – em si mesma.

O que também está claro é que os trabalhadores e a Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim rejeitaram o discurso dos direitos liberais (uma marca registrada do modelo da sociedade civil) e o mito de que a era da reforma denguista era para o bem. Na verdade, não só Deng (que os estudantes evitaram criticar), mas também o “reformador” liberal Zhao Ziyang, tão admirado por alguns estudantes e intelectuais, são responsáveis ​​pela “dívida de dez anos de sangue e lágrimas”. Na verdade, o gosto de Zhao pelo golfe foi ridicularizado por um dos primeiros pôsteres da federação: “O sr. e a sra. Zhao Ziyang jogam golfe toda semana. Quem paga os green-fees e suas outras despesas?”.[32] A rejeição dos trabalhadores e a desconstrução da noção de direitos liberais/civis podem ser vistas em seus textos. Ao invés de simplesmente reivindicar, como os estudantes, o direito de ter suas demandas reconhecidas e abordadas pelo regime, eles insistem no direito de “expulsar ditadores”, uma rejeição do direito à mediação via sociedade civil. Além disso, eles recusam o direito à autopreservação. Como diz o poema de um trabalhador intitulado “Carta rápida”:

“Se a morte de um ou mais

Permite que muitos vivam melhor

E a pátria prosperar

Então não temos o direito de arrastar uma existência ignóbil.”

O comprimento mais longo do último verso, seguindo os três primeiros versos mais curtos, qualificatórios e preliminares, confere uma força especial à rejeição do “direito”.[33] É uma rejeição do direito como tal, pois nenhum direito é mais básico que o de autopreservação. As breves declarações dos trabalhadores acima certamente mostraram sua raiva, mas o que é notável nesse pequeno poema, além de sua compressão de um pensamento complexo em tão poucas linhas, é a “existência ignóbil” final. É aqui que sentimos a tragédia da grande reversão, a mudança de um regime que considerava a classe trabalhadora e os camponeses como seu summum bonum e que havia inscrito a nobreza do trabalho, o valor fundamental dos trabalhadores e a militância proletária em todas as suas principais instituições, desde as artes à própria Constituição. Pois mesmo que se tenha uma visão obscura tanto da prática maoísta como da prática imediatamente pós-regime maoísta (e isso seria decididamente unilateral), ninguém pode contestar que os trabalhadores urbanos e rurais eram, de fato, dotados de uma nobreza e status especial, incomparável até à União Soviética.[34]

Assim, a referência do poeta à vida agora “ignóbil” de um trabalhador não traz apenas um lampejo de insight histórico – a “revolução” denguista era, para muitos, uma contrarrevolução –, mas o significado de ser rebaixado de uma vanguarda nobre e simbólica à impotência. É claramente um “cidadão” desinteressado no jogo da sociedade civil e na negociação com o Estado. Essa opção parece não estar disponível (dada a posição de classe do poeta e do destinatário), e, nesse poema, bem como nas declarações de outros trabalhadores, não há a demanda frequente dos estudantes por reconhecimento e aprovação individual, nem um “etos independente”. Aquelas décadas de valorização proletária na China e o status especial dos trabalhadores não desapareceram com os ataques denguistas a elas. Pois o trabalhador, nesse poema, ainda vê a si – e sua classe – como tendo o papel crucial a desempenhar: somente com sua luta final – se necessário, até a morte – “muitos viverão melhor”, e a “pátria prosperará”.

De fato, essa “Carta rápida” é bastante endereçada a um destinatário coletivo: no lugar da primeira pessoa “eu” vista tantas vezes nos pôsteres dos estudantes (“Eu tenho um sonho / Para esse sonho, estou disposto a derramar o meu sangue”), ou a sua retórica familiar (“Mamãe, não estamos errados”), aqui há um “nós” contundente.[35] E a lógica da “sentença” do poema – a transformação do “se” para o “então” – pode ser vista como uma saudação intersubjetiva da classe operária revolucionária, o proletariado como tal. O que esse poema indexa, em suma, não é um discurso civil ou independente emergente, mas um retorno da militância da classe trabalhadora e, no lugar da reforma e do diálogo, a revolução vermelha e irada. É essa incivilidade e o discurso militante e marxista dos trabalhadores em geral que ajuda a desmentir a codificação da sociedade civil. Do ponto de vista dos trabalhadores da praça e da federação, a problemática relevante da política e do protesto chineses não é a agitação e a reparação da sociedade civil e da “normalidade”, mas a revolução de esquerda. Não obstante a maciça e institucional desmaoficação dos anos 1980, vemos aqui também o legado da era Mao na Praça Tiananmen, em 1989.[36] Retorno a esses pontos depois.

A ocupação da Praça Tiananmen por estudantes e trabalhadores em 1989.

E, todavia, Andrew Walder e Gong Xiaoxia, por sua vez, codificaram a Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim e os próprios trabalhadores em termos do modelo convencional da sociedade civil – neste caso, a partir do movimento trabalhista polonês Solidariedade. Embora inicialmente críticos da federação (e dos protestos como um todo) por não serem tão ativos quanto o Solidariedade, eles veem a federação de Pequim como mais parecida com sua analogia “natural” em Gdansk (Polônia) e com a necessária “mentalidade sindical descarada da classe trabalhadora”. Assim, a Tiananmen e a federação são avaliadas com base em um tipo ideal: um populismo e sindicalismo que é anticomunista e “democrático” em oposição ao “socialista”. Dessa maneira, qualquer reserva quanto ao uso de modelos liberais e ocidentais convencionais é apenas sobre quão bem a China e seus trabalhadores estão à altura deles e não sobre como os chineses por si só podem desafiá-los, quiçá até derrubá-los. Isto é, em outras palavras, outro exemplo da estratégia da superioridade posicional.

Essa técnica é ainda mais revelada quando Walder e Gong usam elogios fracos para condenar os trabalhadores de 1989. Assim, eles se referem aos trabalhadores de 1989 como “trabalhadores afiados”, mas “bastante comuns”, com limitada capacidade de educação e escrita (como os seus cartazes e folhetos evidenciam)”. Agora, a primeira coisa que chama a atenção sobre essa descrição é que, de fato, ela nega a criatividade e a qualidade extraordinária de grande parte dos pôsteres do Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim. Tome a seguinte declaração do cartaz “Dez estranhos aspectos da situação atual”: “5. Há um monte de novos hotéis elegantes. Uma grua em pé entre galinhas pegando vento. Casas para o povo são insuficientes. Lenta é a entrada de uma experiência valiosa; no entanto, os zeladores de banheiro aprendem rapidamente a pedir dinheiro”.

Aqui o autor começa com um aspecto da paisagem urbana de Pequim na era da “reforma” que é tão frequentemente notado pelos sinólogos e correspondentes estrangeiros como o sinal mais óbvio da sabedoria e sucesso da “revolução” denguista – a explosão de arranha-céus e novas construções como locais de negócios multinacionais (ou de propriedade mista) e turismo. Porém, como em uma resposta direta e dialógica a esse ponto de vista sinológico – uma resposta que internaliza o discurso do outro e o rearticula –, o autor o desfaz e transforma os arranha-céus em um sinal da grande inversão. O autor invoca a perspectiva das pessoas (e sua falta de moradia) e, ao fazê-lo, desmistifica o significado “óbvio” dos hotéis e da nova paisagem urbana. O que os hotéis significam é nada menos que a traição denguista do socialismo e do mandato do Partido em “servir o povo”. Como a “Carta rápida”, esse cartaz – de forma indireta, mas poderosa – documenta a degradação do trabalho e o status da classe trabalhadora como vanguarda simbólica da revolução “em andamento”, invocando aqui o tipo de trabalho mais humilde e degradante para dizer: “aqui está o que os trabalhadores são hoje, meros zeladores que têm que pedir um pouco de gorjeta apenas para sobreviver”.

Contudo, a declaração também caracteriza simultaneamente a ação do trabalhador de cobrar dinheiro para limpar o banheiro. É pungente e vergonhoso, mas perfeitamente razoável e natural, e apenas apresente os trabalhadores fazendo o que todo mundo faz – praticando o capitalismo. Além disso, ao fechar essa análise breve, mas complexa, com a figura do zelador-empreendedor, o autor desmascara de novo um pouco do discurso oficial e intelectual que o precede. Pois a “entrada de experiências valiosas” pode somente se referir à própria legitimação dos problemas e custos sociais da privatização por parte do governo – afirmando que o regime e supostamente a sociedade chinesa como um todo estão inevitavelmente e simplesmente passando por uma curva de aprendizado no grande processo histórico de modernização. Assim, de acordo com o discurso oficial, os custos sociais da “reforma”, do esmagamento da tigela de ferro da segurança social ao desemprego em massa, são problemas infelizes, mas inevitáveis ​​e temporários, no processo de modernização. Para o chamado autor “comum”, esse discurso cerebral e oficioso é invocado, mas apenas para ser ridicularizado como verborragia inútil. O que a modernização e sua legitimação significam: um zelador de banheiro cobrando um pouco por fora.

Finalmente, observe a concepção central do poema que impulsiona o argumento e o torna tão memorável: a metáfora notável, incorporada em um velho coloquialismo, que transforma os novos hotéis em uma cidade cheia de desemprego e carente de moradia acessível semelhante a uma grua em pé entre as galinhas. Pois a visão panorâmica distante da “grua” deixa de lado todos os detalhes e é cega para a realidade a nível do solo. Assim também há um trocadilho inteligente em “grua” como pássaro e como guindaste de construção. Assim, ao invés de evidenciar falta de educação e de capacidade de escrita, essa afirmação rigorosamente irônica é, de fato, contundente em conteúdo e forma e poética em sua expressão compacta e densa de um pensamento e amplitude complexos de sentimentos em poucas palavras.

Fica demonstrado assim como é falsa a ideia de carência intelectual que Walder e Gong atribuem aos trabalhadores de 1989. Porém, eles a enxergam como uma vantagem para o desenvolvimento da sociedade civil e da democracia na China. Eles contrastam de forma favorável a “ignorância” e a falta de educação dos membros da Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim com os protestos e textos “relativamente letrados” da década da Revolução Cultural, cuja grande maioria dos participantes era radicalmente socialista e maoísta. Pois aparentemente estes últimos eram muito radicais e militantes, enquanto a federação em 1989 era propriamente polonesa e “sindicalista” em sua “mentalidade e orientação política” e, portanto, representa um novo futuro para a democracia chinesa, apesar de sua relativa falta de alfabetização. E, entretanto, essa nova formação termina sendo igual ao velho “populismo trabalhista” e a incorporação de “cidadãos comuns” e da classe trabalhadora dentro de um “movimento democrático” – em outras palavras, o programa da esquerda do Partido Democrata dos EUA até meados dos anos 1980.

Como algo novo e inovador, oposta a uma imposição do caminho euro-americano a uma realidade chinesa recalcitrante, esse é um chá bem fraco. Quanto à natureza “populista” do Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim, pode ser verdade em um sentido banal, mas, na prática, todos os seus cartazes e declarações reais evidenciam a orientação especificamente marxista e, muitas vezes, confessadamente maoísta da federação. Certamente, nem todos os membros eram radicais nesse sentido. Han Dongfang, um dos primeiros líderes da federação e ainda um ativista trabalhista em Hong Kong, ironicamente disse acreditar no mercado “livre” e não no socialismo.[37] Porém, mesmo que sua visão fosse representativa, ela dificilmente faria com que a federação incorporasse uma “consciência sindical universal”, como se uma consciência não pudesse ter características nacionais (como o catolicismo de Solidariedade).

Além disso, o peso de 1989 sugere que Han é mais a exceção que prova da orientação socialista e de “vanguarda” dos protestos dos trabalhadores. Assim, não só as repetidas convocações para uma greve geral, mas os cartazes e apelos da federação revelam suas raízes radicais. Na verdade, não é surpreendente que Walder, Gong e outros não citem nenhum dos documentos acima referidos (embora a coleção de Lu Ping apareça em suas notas). Assim também não há referência a cartazes de trabalhadores como “Uma denúncia oficial de Deng elaborada por Marx”, ou “Lênin está chorando no além” ou outro pôster da federação, “Dez perguntas”, que sarcasticamente pede ao Partido para “explicar o conceito e significado” de “revolução”.[38] Para citar tais publicações, as declarações públicas apresentariam aos sinólogos uma grande dificuldade em enquadrar orientações políticas dos próprios trabalhadores chineses no modelo Solidariedade/sociedade civil.[39] As intenções dos trabalhadores e sua autocompreensão simplesmente não fazem parte da equação sinológica.

O método de Walder e Gong – de entrevistas típicas das ciências sociais convencionais –, acaba sendo, na verdade, anti-empírico e marca uma tentativa de incitar os trabalhadores a dizerem o que eles querem: que eles sejam pró-reforma e “sindicalistas” anticomunistas. Isso é indicado na seguinte admissão: “Depois de algumas sondagens, nossos informantes gongzilians admitiram que, apesar da inflação severa dos últimos anos, para a maioria deles, os padrões de vida não haviam declinado desde a época de Mao” (ênfase nossa).[40] Embora suas perguntas não sejam reveladas, está claro que, para os especialistas, os trabalhadores têm algo a admitir. Ou até mesmo confessar: que as “reformas” antimaoístas e neoliberais foram todas para o bem, e os trabalhadores são pessoas simples e piedosas, nada parecidas com os irados, radicais militantes das décadas de Mao. Dada a prova visível da militância radical (os cartazes, a iconografia e a retórica), a análise de Walder e Gong – como com a maioria dos entendimentos sinológicos da Tiananmen – é, assim, anti-empírica, um conhecimento baseado em quão bem tais declarações e outros signos se encaixam a priori no esquema de civilidade, sociedade civil e modernização. Como Said e outros observaram, o orientalismo em si é profundamente anti-empírico e tem “o caráter autocontido e autorreforçador de um sistema fechado”.

A rejeição de Walder e Gong da retórica maoísta dos cartazes da Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim e de outros grupos e dos trabalhadores da década de 1970 é um sinal de superioridade posicional e da imposição não reflexiva de teorias estrangeiras. No entanto, também é talvez uma inquietação com a “chinesidade” ou a natureza “maoísta” dos trabalhadores. De fato, como explicar a cegueira a tais sinais visíveis de uma tradicional militância proletária (por exemplo, A Internacional frequentemente entoada), do espectro de Mao e do comunismo? Isso não quer dizer que todo o evento da Praça Tiananmen tenha sido simplesmente um movimento “maoísta” ou da classe trabalhadora, nem que haja alguma essência na “chinesidade”, mas certamente existem noções profundas de “chinesidade”, e, pelo menos entre observadores estrangeiros, uma delas é a do maoísta chinês “vermelho”, “fundamentalista” e ameaçador. É essa figura que assombra o desejo de Walder de fazer com que seus entrevistados – construídos como objetos antropológicos – se pronunciem contra tal identidade. Eles devem reduzir os escritos e atividades dos trabalhadores a uma interpretação que os torne adequados dentro de um padrão “normal” ou universal de protesto “democrático”, sindicalismo e “desenvolvimento” moderno. Até os grevistas militantes e proletarizados devem se tornar o “mesmo que nós”.

Uma análise completa dos paralelos entre a era Mao e o movimento de 1989 está além do escopo do presente ensaio. Porém, dada a recodificação orientalista de 1989 como uma ruptura (fracassada) dessa época, algumas observações são necessárias. O ponto essencial aqui é que o evento de 1989 não foi, de fato, uma ruptura, mas sim condicionado pela democracia em massa dos anos de Mao e pela Revolução Cultural. Como se observou, os sinais mais visíveis variam da iconografia maoísta à retórica (livros vermelhos, distintivos, retratos, slogans, reivindicações). Enquanto os pôsteres da Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim falam por si mesmos a esse respeito, é igualmente impressionante a popularidade entre os estudantes dos slogans da Revolução Cultural de Mao sobre a juventude da Guarda Vermelha. Como lembrou o líder estudantil Shen Tong, referindo-se a uma marcha que ele liderou, com o megafone na mão: “Eu andei de um lado para o outro ao lado dos manifestantes, encorajando-os, citando algumas das frases de Mao. ‘Aqueles que reprimem os movimentos estudantis têm um futuro sombrio’ e ‘Se os estudantes não agirem, quem o fará?’ – slogans que pareciam perfeitos para nós agora”. Isso não quer dizer que Tiananmen foi simplesmente a continuação da Revolução Cultural. Alguns estudantes e praticamente todos os intelectuais contrastaram explicitamente seu movimento patriótico “puro” com o dos Guardas Vermelhos. Isso é de se esperar, dadas as “punições” maoístas contra a classe intelectual e a desmaoficação. Contudo, a relação complexa e paradoxal entre Tiananmen, o maoísmo e a Revolução Cultural – conforme evidenciado pela iconografia e a retórica – fala, de fato, de uma história maior, ou mais especificamente de uma certa construção marxista ou revolucionária que permanece disponível décadas após 1989.[41]

Grupos de manifestantes com retratos de Mao Tsé-Tung e Zhou Enlai em 1989.

Precisamos aqui retornar ao ponto de Zhang Xudong sobre a Revolução Cultural ser a maior e mais singular forma de democracia de massa da China. Ele reconhece a violência, o caos e o fracasso final do Revolução Cultural, mas também tem como alvo a reificação da democracia processual ocidental como o único tipo verdadeiro. Ele postula a história da China no século passado e enfatiza os aspectos de massa e participação da “democracia”. A partir daqui, pode-se ver Tiananmen como um legado da era Mao, e o retorno do “direito à rebelião” massivo e atualizado da Revolução Cultural. O ponto aqui não é apenas que a forma do protesto de Tiananmen deve muito à Revolução Cultural (a retórica, a enorme mobilização, a raiva contra a corrupção e a burocracia). Ser contrário à burocracia estatal e a inspiração maoísta também fazem parte da história de luta popular ou democrática desde 1949.

Em suma, ao contar a história da democracia na China como uma luta fracassada, mas inevitável, contra um Estado feudal e depois de Partido único, do qual Tiananmen é só mais um exemplo fracassado, o orientalismo sinológico oculta o fato de que Mao e seus seguidores também tentaram democratizar o Estado e a sociedade que eles criaram. Para ter certeza, um sistema de votação multipartidário nunca foi uma opção, por razões históricas e ideológicas (a Guerra Fria e a “ditadura do proletariado”), assim como pela paixão essencialmente maoísta por uma política e democracia de compromisso, mobilização e participação acima de tudo. Que a maioria dos ocidentais não compartilhe dessas crenças, ou que possamos ver a importância relativa do voto, não significa que não houvesse democracia ou teoria política racional na China. Assim, Lin Chun – às vezes, uma crítica do Estado maoísta como uma forma de “socialismo patriarcal” – observa que “os experimentos de curta duração encorajados por Mao na participação dos trabalhadores e na democracia no local de trabalho eram realmente valiosos”, apesar de não terem sido duradouros. E uma das razões pelas quais não duraram foi a virada à direita após a morte de Mao.

O ponto essencial aqui, a meu ver, é que, sob Mao, houve tentativas de uma maior democracia para os trabalhadores. O exemplo mais famoso disso continua sendo a efémera Comuna de Xangai de 1967, mas deve incluir também a formação, durante um período de 18 meses, de organizações de massas (como os grupos de gestão de trabalhadores documentados por Charles Bettleheim)[42] e os “comitês revolucionários” provinciais, que deveriam transformar a estrutura existente do Partido. Essas organizações e comitês incluíam trabalhadores e permitiam a eles uma voz política dentro de seus locais de trabalho e comunas. Assim, deve-se lembrar também que foi durante a Revolução Cultural que Mao e a esquerda pressionaram pela inclusão do direito de greve na Constituição (um direito posteriormente rescindido em 1980), em resposta direta às greves que irromperam de tempos em tempos durante a década da Revolução Cultural, especialmente na década de 1970. Em resumo, como Maurice Meisner observou, “a Revolução Cultural ativou politicamente a classe trabalhadora urbana da China pela primeira vez desde que o proletariado foi brutalmente esmagado pelos exércitos de Chiang Kai-shek em 1927”. Essas lutas por uma maior democracia dos trabalhadores fracassaram por causa da incapacidade de Mao e da esquerda de institucionalizar seus programas e ganhos, e porque a Revolução Cultural foi encerrada à força por Hua Guofeng e Deng.

Esse fracasso – um nobre fracasso – não deve nos cegar para a história dessa luta, ou para suas conexões e influências na Praça Tiananmen, incluindo seu status como um processo de décadas de educação política para os trabalhadores de Tiananmen e de hoje. Esse aspecto da cultura política histórica dos chineses e especialmente dos trabalhadores milita contra a codificação sinológica de Tiananmen como um momento de fracasso, porém inevitável, da China em se tornar o mesmo que “nós”, por meio de uma narrativa universal da democratização “normal” e “civil”. Assim, oferece também uma contra-explicação para a chamada “nostalgia” que os trabalhadores e alguns estudantes sentiram pela liderança e a sociedade da era Mao. Isso é explicado, em parte, pelas décadas anteriores de cultura revolucionária e educação proletária ou marxista, incluindo os aspectos mais benéficos da Revolução Cultural (programas rurais de saúde, educação e desenvolvimento, luta pela igualdade das mulheres, além do registro da força de trabalho). Em outras palavras, as lutas de décadas por uma ordem nova e radicalmente igualitária, bem como símbolos e mitemas ainda influentes como “o caminho de Yan’an” persistem até mesmo 30 anos depois de Tiananmen. E eles persistem apesar – ou talvez por causa – da propaganda de que “alguns devem ficar ricos primeiro” e da influência do consumismo e do neoliberalismo na China.

A chamada nostalgia da era Mao – pela paixão revolucionária, ideais e ausência de corrupção no antigo Estado-Partido – é explicada pelo retorno das enormes desigualdades econômicas e exploração já presentes em 1989, durante a revolução capitalista pelo alto de Deng e de um “sistema escolar altamente elitista” que, com efeito, barra a classe trabalhadora. Pois as injustiças econômicas que já eram evidentes em 1989 só pioraram nas décadas seguintes. Assim, quando Walder e Gong fazem questão de evitar que seus entrevistados declarassem que até economicamente as coisas eram melhores na era Mao, eles perdem o ponto de que tal nostalgia não é uma fantasia, um simples anseio por uma Idade de Ouro ou um exemplo residual de lavagem cerebral. É antes uma resposta racional, ética e ainda apaixonadamente política às condições reais de existência e baseada nas circunstâncias históricas herdadas da era Mao, em oposição ao tipo ideal de protesto político que existe na cabeça dos especialistas chineses.

Como em 1989, não há dúvida de que a marca de Mao ainda é grande hoje, que entre os camponeses, trabalhadores urbanos e até mesmo alguns intelectuais, Mao ainda é visto de maneira bastante positiva, apesar dos esforços da Sinologia, dos “reformadores” liberais e da própria liderança do Partido.[43] Essa é uma dimensão da cultura política e popular chinesa com que a Sinologia e o Ocidente em geral ainda precisam lidar, preferindo – precisando – ver Mao como um monstro totalitário, exatamente tal qual Stálin, ou como um déspota depravado (como em numerosas biografias que “dizem tudo”).[44]

Em suma, dada a “sabedoria recebida”, que constrói o maoísmo como “totalitarismo” ou “despotismo oriental” (e estes são sinônimos no presente contexto), uma parte crucial desse conhecimento reforça a autoconstituição do Ocidente capitalista como a própria epifania da razão, liberdade e democracia. Não é por acaso que os espectros de Mao e do comunismo precisam ser exorcizados. É essa dinâmica, enraizada tanto na fantasia quanto na produção de conhecimento, que resulta em declarações como “Mao bin Laden ou Osama Tsé-Tung” de Barmé, ou no comentário desumanizador de Nathan sobre a era coletivista: “O povo de Mao obedecia ao patriotismo, um senso de indignidade, a fé na sabedoria de um déspota, pois preferiam estar entre os vitimizadores do que entre as vítimas”.[45] Escritas antes da recente Guerra do Iraque, tais declarações – que revelam não só a arrogância colonial, mas inquietações quanto ao “terrorismo” e ao fundamentalismo da Pax Americana – salientam o fato de que o orientalismo e a superioridade posicional continuam a constituir a identidade do Ocidente e dos EUA. Com isso em mente, não é por acaso que a sociedade civil e o modelo de modernização “democrática” são dominantes no campo de estudos da China, pois hoje esse modelo e a cultura americana permanecem profundamente influenciados por um triunfalismo da Guerra Fria e um excepcionalismo mítico que o resto do mundo deve seguir de alguma forma.

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Notas:

[1] – “Sinologia” e “Estudos chineses” são sinônimos neste ensaio. Gostaria de sugerir que, como instituição, esta última é tão anti-intelectual e subjetiva quanto à Sinologia, muito mais antiga, muitas vezes explicitamente colonial e “não-científica”. Na Europa, “Sinologia”, como “Oriental”, ainda é correntemente usada.

[2] – Real China: From Cannibalism to Karaoke (Nova York: Simon and Shuster, 1996) é o título supremamente confiante de um livro do veterano observador britânico da China, John Gittings.

[3] – Veja Gareth Steadman Jones, “The Crisis of Communism,” em New Times: The Changing Face of Politics in the 1990s (Ed. Martin Jacques e Stuart Hall. Londres: Lawrence e Wishart, 1989). Jones se refere ao PCCh “abdicar” de seu “mandato do céu” por falta de “qualquer fonte de legitimidade na sociedade civil” (230). Esse “discurso da sociedade civil” floresceu na Europa na esteira do movimento dissidente na Polônia e na Tchecoslováquia, contextos radicalmente diferentes do da China.

[4] – Veja Harrison Salisbury, The New Emperors: Mao and Deng (Nova York: Little Brown, 1992).

[5] – Veja as breves palavras de Richard Gordon sobre ele, “One Act, Many Meanings” (Media Studies Journal 13.1 Inverno 1999: 82). Ainda uma figura desconhecida, vários afirmaram ser ele, assim como Benetton e as autoridades chinesas usaram sua imagem para seus próprios fins.

[6] – Veja China Misperceived de Steven Mosher (Nova York: Basic Books, 1990) e suas contribuições para “Um ato, muitos significados” simpósio em: <http://www.gwu.edu/~sigur/assets/docs/scap/SCAP7-Trends.pdf>. Como Arif Dirlik e Maurice Meisner observam: “A orientação ideológica dominante é ainda mais poderosa porque suas avaliações negativas do socialismo na China não são oferecidas em argumentos explícitos, mas sim encontram expressão em uma orientação geral que é mais uma ‘estrutura de sentimento’ do que uma de ideias. Isso consiste em uma alegação aqui e uma sugestão lá e toma conta de nossa consciência”. “Política, bolsa de estudos e socialismo chinês” 7.

[7] – Veja “Ideology and Ideological State Apparatuses,” especialmente 171-2. Lenin and Philosophy. Trans. Ben Brewster. Nova York: Monthly Review Press, 1971. 127-86.

[8] – Gary LaMoshi, “Echoes of Tiananmen.” Asia Times Online 4 de junho de 2003. <http://www.atimes.com/atimes/China/EF04Ad02.html>.

[9] – Não é por acaso que o tropo de uma suposta xenofobia chinesa tem suas raízes na resistência chinesa do século XIX a missionários e imperialistas.

[10] – Veja Zhang Xudong, “Nationalism, Mass Culture, and Intellectual Strategies in Post-Mao China.” (Social Text 16.2 Verão 1998: 109-40). Veja também James R. Townsend, Political Participation in Communist China para as décadas anteriores (Berkeley: UCB Press, 1969).

[11] – Sobre a GRCP e os movimentos de democracia posteriores, veja Lee Feigon, China Rising (Chicago: Ivan R. Dee, 1990), bem como o seu Mao: A Re-interpretation (Chicago: Ivan R. Dee, 2002).

[12] – As principais coleções de documentos são: Lu Ping et al., A Moment of Truth: Workers’ Participation inChina’s 1989 Democracy Movement, and the Emergence of Independent Unions (Trans. Gus Mok e outros Hong Kong: Centro de Educação Sindical da HK, 1990); Mok Chiu Yu et ai., Eds. Voices from Tiananmen Square (Montreal: Black Rose Books, 1990); Han Minzhu, ed., Cries For Democracy: Writings from Tiananmen Square (Princeton: Princeton UP, 1990); Michael Oksenberg e outros, editores, Beijing Spring, 1989 Confrontation and Conflict: The Basic Documents (Nova York: ME Sharpe, 1990) e Suzanne Ogden e outros, eds., China’s Search for Democracy: The Student and Mass Movement of 1989 (Nova York: ME Sharpe, 1992). A história mais detalhada é Zhao, Power of Tiananmen. Além de outros estudos citados abaixo, destaca-se a China Rising, de Feigon, e The Great Reversal: The Privatization of China, 1978-1989, de William Hinton, (Nova York: Monthly Review Press, 1990).

[13] – Veja Jing Wang, High Culture Fever: Politics, Aesthetics, and Ideology in Deng’s China (Berkeley: UCP, 1996), Zhang Xudong, Chinese Modernism In the Era of Reforms (Durham: Duke UP, 1997) e a coleção de textos de Geremie Barmé do renascimento de Mao, Shades of Mao: The Posthumous Cult of the Great Leader (Armonk, Nova York: ME Sharpe, 1996). Kalpana Mishra em From Post-Maoism to Post-Marxism: The Erosion of Official Ideology in Deng’s China (Nova York: Routledge, 1998) e Liu Kang em Aesthetics and Chinese Marxism: Chinese Aesthetic Marxists and Their Western Contemporaries (Durham: Duke UP, 2000) fornecem ricas descrições do meio intelectual.

[14] – Além de Zhao Dingxin, veja Almost a Revolution de Shen Tong, citada acima.

[15] – O texto do diálogo foi transmitido pela Beijing Television Service e está disponível em Oksenberg.

[16] – O “neo-autoritarismo” se refere ao controle político da população durante o período “necessário” de deslocamento social e descontentamento durante as “reformas” denguistas. O que se queria era um líder forte e “liberal”. Sobre essa questão, veja Sautman, “Sirens of the Strongman” (The China Quarterly 129, março de 1992: 71-102).

[17] – Zhao observa que o governo registra 300 mortes, incluindo de soldados, e Timothy Brook em Quelling the People (Nova York: Oxford UP, 1992) foi responsável por contar 478 mortes. Porém, o número pode ser maior, especialmente se incluirmos execuções não documentadas.

[18] – A predominância dessa abordagem é revelada no número de publicações sobre o assunto. Veja a edição especial da Modern China (19.2 abril 1993) sobre “Esfera Pública / Sociedade Civil na China?”, Baogang He The Democratic Implications of Civil Society in China (Nova York: St. Martin’s Press, 1997), Gordon White e cols. In Search of Civil Society: Market Reform and Social Change in Contemporary China (Oxford: Clarendon Press, 1996), e Chinese Democracy after Tiananmen, de Ding Yijiang (Vancouver: UBC Press, 2001), entre outros.

[19] – Uma suposição implícita, mas central, para Unger e para outros, é que a esfera econômica – isto é, o sistema de mercado capitalista – é tanto uma pré-condição para o desenvolvimento da sociedade civil quanto é incorporada a ela, na forma de um Estado “independente”) sindicatos e outras atividades. É apenas a perspectiva marxista que vê a esfera econômica como antagônica, e não meramente simbiótica, para a sociedade civil e política.

[20] – Vivienne Shue, The Reach of the State: Sketches of the Chinese Body Politic (Stanford: Stanford UP, 1988).

[21] – Os autores fazem uma breve referência ao trabalho de Clifford Geertz sobre Bali e observam os termos do teatro chinês, embora nada disso avança em sua análise. Os autores também não demonstram o reconhecimento de que o trabalho de Geertz tenha sido frequentemente criticado por seu suposto etnocentrismo. Veja, por exemplo, Islam in Java de Mark Woodward (Association for Asian Studies Monograph Series: University of Arizona Press, 1989) e Andrew Gordon, “A pobreza da involução” (Journal of Contemporary Asia. 22.4 [1992]: 490-513).

[22] – Devemos a crítica da negação do discurso antropológico da contemporaneidade a Johannes Fabian, em seu livro Time and the Other: How Anthropology Makes Its Object (Nova York: Columbia University Press, 1983).

[23] – Veja Zhang Xudong, nota de rodapé 10 acima.

[24] – A cifra de 20 mil membros registrados vem de Ching Kwan Lee, em “Caminhos da Insurgência Trabalhista” (Chinese Society: Change, Conflict and Resistance. Ed. Mark Selden e Elizabeth Perry. Nova York: Routledge, 2000. 41-61) 56. Calhoun, todavia, refere-se a cinco mil membros. Refiro-me a uma greve geral de facto porque, apesar de os repetidos apelos do Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim por uma greve oficial de abril a 3 de junho não terem materializado, o evento em 4 de junho em Pequim e, em menor escala, em outras partes da China foi severamente afetado pela quantidade de pessoas – principalmente trabalhadores e cidadãos comuns – na praça ou se juntando à Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim ou outras federações de trabalhadores. Para mais detalhes, veja Ching, assim como Walder e Gong.

[25] – Além de Walder e Gong discutidos acima, veja Wang Shaoguang, “De um pilar de continuidade a uma força de mudança: trabalhadores chineses no movimento” em Chinese Democracy and the Crisis of 1989: Chinese and American Reflections (ed. Roger V. Des Forges, Luo Ning e Wu Yen-bo, Albany: SUNY Press, 1993). A coleção de documentos, entrevistas e análises de Lu Ping sobre o Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim em The Moment of Truth é inestimável.

[26] – O tratamento mais buscado por Marx para essas e outras questões relacionadas, sua “teoria social”, encontra-se no volume 1 do Capital, particularmente no capítulo 1 e no “Apêndice: Resultados do Processo Imediato de Produção” (Trans. Ben Fowkes, Nova York: Vintage Books, 1977). Veja também “Sobre a Questão Judaica” e “Crítica à Doutrina do Estado de Hegel”, coletadas em Primeiros Escritos com uma brilhante introdução de Lucio Colletti (Trans. Rodney Livingstone e Gregor Benton. Londres: Penguin, 1974).

[27] – Sheldon S. Wolin, The Presence of the Past (Baltimore: Johns Hopkins UP, 1989.)

[28] – O objetivo da genealogia é mostrar um consenso não reconhecido, mas comum, sobre o eclipse da sociedade civil. Seu amplamente debatido Império repete grande parte dessa análise de forma menos desenvolvida.

[29] – A primeira citação é de “O Manifesto dos Trabalhadores” da Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim, cujo gênero também ajuda a explicar a retórica marxista, e o último é de “Salmo ao Povo de Pequim” por “um trabalhador chinês”.

[30] – Este documento data de 20 de maio, o momento da lei marcial, e intitula-se “A classe trabalhadora não ficará de pé indiferentemente”.

[31] – Georg Lukács, “Reificação e consciência do proletariado.” History and Class Consciousness: Studies in Marxist Dialectics. Trans. Rodney Livingstone. Cambridge, MA: MIT Press, 1971. 83-222. [1923] [32] – Este dazibao foi intitulado “Dez perguntas para o Partido Comunista Chinês”.

[33] – Estou, portanto, assumindo que esse argumento de comprimento do verso vale para a versão chinesa do poema. Eu não consegui localizar a versão original.

[34] – Pois até mesmo o stakhanovismo foi um caso comparativamente curto, embora não haja dúvidas de que foi uma febre cultural popular por algum tempo e não só uma estratégia do Estado stalinista.

[35] – O poema “Mamãe, não estamos errados” é de Ye Fu e data de 1º de maio. Porém, como os editores notam, essa frase apareceu no início do movimento (9 de abril). Esse poema também usa a primeira pessoa e exige reconhecimento pessoal e aprovação. “I Have A Dream”, de Jie Fu, foi publicado na Universidade de Nanquim em 21 de maio. Correndo o risco de ser pouco generoso, é impressionante comparar o uso de Jie da frase de Martin Luther King (supondo que isso seja intencional), para o famoso apelo universal de King. Enquanto o autor traz esse verso de volta para si mesmo, o destinatário de King saúda uma entidade coletiva de todos os americanos.

[36] – O documentário influente – ainda que profundamente problemático, se não racista – sobre Tiananmen, The Gate of Heavenly Peace (1995) de Carma Hinton e Richard Gordon (com créditos de escrita de tela para Geremie Barmé entre outros), também conecta o movimento de protesto a Mao, mas em um ponto de vista puramente negativo e no estilo Fu Manchu. Eu critico este filme como o primeiro filme de estudos da China em um trabalho em andamento.

[37] – Veja a entrevista com Han e outro ativista da Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim identificado apenas como “Perfil Um”, em Lu Ping.

[38] – Os pôsteres “A denúncia… a Marx” e “Lênin está chorando” podem ser encontrados em Ogden et. al., 310-11 e 111. O primeiro foi publicado na Universidade de Pequim, e o segundo na praça. “Dez questões”, da Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim, está no mesmo volume, 87-8.

[39] – Eles se referem de passagem a alguns panfletos da Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim, mas a maioria de suas “provas” vem de entrevistas com dois “ativistas”, um deles um empreendedor de pequeno porte. Eles também traduzem um documento que se assemelha ao texto “Dez aspectos estranhos” discutido acima. Contudo, caso esses documentos forem idênticos, é claro que eles radicalmente despolitizaram o texto da Federação Autônoma dos Trabalhadores de Pequim e eliminaram seu brutal sarcasmo e ironia, de modo a torná-lo pró-reforma. No lugar do escárnio do discurso oficial, eles têm o texto endossando-o. Compare com a versão de Lu Ping.

[40] – Deixemos de lado a questão sobre se os “padrões de vida” aumentaram e como isso se relaciona com as questões de qualidade de vida. Isso certamente é discutível para os mais de 100 milhões de trabalhadores desempregados na China em 2009. Veja também os comentários do “Ativista # 1” em Walder e Gong: “Após a reforma, temos geladeiras; mas olha, o que vamos colocar neles? … E os frigoríficos são comprados com empréstimos de qualquer maneira” (20).

[41] – Em um artigo recente, Calhoun e Wasserstrom abordam as relações entre a Tiananmen e a Revolução Cultural, mas de uma maneira quase totalmente negativa e sintomática. Nisso, seus pontos de vista estão próximos dos líderes estudantis mais conservadores, bem como da própria condenação do PCCh à Revolução Cultural como um longo trauma; e a sociedade civil continua sendo o critério implícito para medir os dois eventos. “Legados do radicalismo: Revolução Cultural da China e Movimento da Democracia de 1989”, Thesis Eleven, maio de 1999: 33-52.

[42] – Veja Bettleheim, Cultural Revolution and Industrial Organization in China (Trans. Alfred Ehrenfeld. Nova York: Monthly Review Press, 1974).

[43] – Os “incidentes de massa” relativos aos temas de justiça social geralmente apresentam retratos ou slogans de Mao como uma forma de lembrar o Estado de suas obrigações (passadas). Shades of Mao, de Barmé, embora repleto de seus comentários maliciosos, detalha de maneira útil a complexa vida do presidente após a morte. Veja também Han Dongping, The Unknown Cultural Revolution (Nova York: Garland, 2000).

[44] – Para uma crítica de tais textos orientalistas, veja Gao Mobo, The Battle for China’s Past (Londres: Pluto Press, 2008).

[45] – Geremie Barmé, “Mais de 30 anos da China e da Austrália”. Série de seminários da Asialink. Novembro de 2002.

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