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Direitos humanos como arma: O relatório de Bachelet sobre a Venezuela segue o roteiro dos EUA

Ignorando a violência da oposição e as sanções e atacando programas sociais, o relatório de Bachelet sobre a Venezuela usa os direitos humanos como arma.
por Anya Parampil | The Grayzone Project – Tradução de Igor Galvão para a Revista Opera
Comitê de Vítimas das Guarimbas em Maracay. (Foto: Ciudad MCY)

Quando a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, viajou à Venezuela no início deste ano, ela se encontrou com uma série de cidadãos que perderam membros da família para a violência da direita no país.

Entre eles estava Inés Esparragoza, cujo filho de 20 anos, Orlando Figuera, foi encharcado de gasolina e incendiado por uma multidão de opositores durante protestos violentos contra o governo, conhecidos como guarimbas, em maio de 2017.

“Ele foi esfaqueado, espancado e cruelmente queimado vivo”, Esparragoza disse para Bachelet em março. “Simplesmente por causa da cor de sua camisa, da cor de sua pele e porque ele disse que era Chavista.”

Enquanto Esparragoza despejava o tormento de sua família diante da ex-presidente chilena, Bachelet rabiscou notas e olhou para fotos horríveis que registraram o momento em que homens mascarados atacaram Figuera. Quando o jovem se ajoelhou no chão, uma gangue de bandidos oposicionistas despejou gasolina sobre seu corpo antes de acender um fósforo.

“Eu peço ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos para fazer justiça”, disse ela. “Eles não são manifestantes pacíficos, eles são sanguinários”.

No entanto, surpreendentemente, quando Bachelet divulgou seu tão esperado relatório sobre a situação na Venezuela em 5 de julho, foi como se a reunião nunca tivesse acontecido.

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Aparentemente indiferente ao testemunho da mãe desolada de Figuera, ou de qualquer outra história de danos e sofrimento, Bachelet não mencionou a violência da oposição em seu relatório. Sua incapacidade de detalhar adequadamente a situação dos venezuelanos que sofreram nas mãos de manifestantes contrários ao governo foi apenas uma das muitas omissões gritantes que fez com que um dos maiores especialistas em direito internacional a ter servido na ONU ter questionado a objetividade da Alta Comissária.

Alfred de Zayas tornou-se o primeiro relator da ONU a visitar a Venezuela em 21 anos, viajando para o país em 2017 para examinar o impacto social e econômico de medidas coercitivas unilaterais aplicadas pelos EUA. Ele determinou que as sanções lideradas pelos EUA são em grande parte as culpadas pelas dificuldades do país, acusando Washington de travar “guerra econômica” e comparando suas duras medidas com “cercos medievais de cidades”.

De Zayas não foi menos contundente em relação ao relatório de Bachelet, criticando-o como um documento politizado que dependia fortemente de alegações infundadas por ativistas dedicados à deposição de Maduro. “O novo relatório de Bachelet é metodologicamente falho, assim como os relatórios anteriores, baseado esmagadoramente em alegações não verificadas por políticos da oposição e defensores da mudança de regime que só estão interessados ​​em se aproveitar dos direitos humanos como pauta”, disse o ex-relator especial ao The Grayzone.

“O mesmo ocorreu com os relatos de Zeid Raad Al Hussein (ex-ACNUR)”, continuou de Zayas, referindo-se ao antecessor de Bachelet. “A falta de profissionalismo por parte do secretariado da ONU é uma vergonha e deve ser exposta para a sociedade civil.”

“Eu não era um funcionário remunerado da ONU e ninguém poderia me dar instruções”, observou de Zayas, “um alto comissário não é independente e está sujeito à pressões políticas. Eu enfrentei assédio no período de pré-missão, durante a missão e no pós-missão. Um relator é obrigado a ser independente. Com certeza, fui pressionado, intimidado, insultado por organizações não-governamentais e até por colegas, mas pude prosseguir com minha investigação e refletir o que vi e aprendi no país. Eu não sou um ideólogo. Há muitos no secretariado da ONU.”

Antes de servir como Alta Comissária da ONU, Bachelet era uma política de carreira no Chile, onde se tornou a primeira presidente do país em 2006. Ela era a figura mais centrista entre os líderes da progressista “maré cor-de-rosa” que passou por toda a América Latina. Em janeiro deste ano, uma investigação de corrupção de anos sobre os contratos de terras de seu filho foi encerrada.

Ignorando convenientemente o impacto das sanções dos EUA

Apenas três breves parágrafos do documento de 16 páginas de Bachelet são dedicados às sanções severas que os EUA e seus aliados impuseram contra a Venezuela desde 2015. Ela continuou com a alegação de que “devido ao excesso de compliance, as transações bancárias foram adiadas ou rejeitadas, e bens congelados, dificultando a capacidade do Estado para importar alimentos e medicamentos”, enquanto o governo apenas “atribui culpa” por suas dificuldades.

A rejeição de Bachelet do impacto destrutivo das sanções sobre o governo Maduro negligencia anos de ataque à economia venezuelana promovido pela nação mais poderosa da Terra. Com a decisão do governo Obama de declarar o governo da Venezuela uma “ameaça à segurança nacional” em março de 2015, a economia da Venezuela e sua capacidade de reestruturar sua dívida estão sob ataque sistemático.

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Como divulgou a mídia independente venezuelana Mision Verdad, “a Venezuela foi catalogada pela empresa financeira francesa Coface como o país com maior risco na América Latina, semelhante aos países africanos que estão atualmente em situações de conflito armado… A partir de 2015, a variável de risco do país começou a aumentar artificialmente para impedir a entrada de financiamento internacional”.

Mesmo os principais meios de comunicação como o The Wall Street Journal reconheceram que as medidas aplicadas pelos EUA “deixaram os bancos mais relutantes em tocar as contas que podem estar relacionadas à Venezuela por medo de violar as sanções”. O jornal até observou que o Goldman Sachs foi criticado em 2017 “quando foi revelado que a empresa comprou cerca de US$ 2,8 bilhões em bônus venezuelanos, que foram vistos como uma sobrevida para o governo de Maduro”.

De acordo com o próprio resumo do governo dos EUA sobre as sanções venezuelanas, medidas unilaterais introduzidas pelo governo Trump em 2017 e 2018 “restringem o acesso do governo venezuelano aos mercados de dívida e de ações dos EUA” e “[proíbem] transações relacionadas à compra de dívida venezuelana”.

Considerando essas restrições e a medida de Washington de congelar o que o assessor de segurança nacional John Bolton estimava em 7 bilhões de dólares em ativos venezuelanos, é difícil entender como Bachelet descartou tão facilmente a ideia de que as sanções contribuíram para a crise econômica. Como o site The Grayzone reportou em maio deste ano, o Departamento de Estado dos EUA abertamente se gabou de sua capacidade de destruir a economia da Venezuela em uma ficha informativa publicada em seu próprio site, que foi rapidamente excluída por aparente constrangimento.

Entre os “principais resultados da política dos EUA” listados no documento estava o fato de que a produção de petróleo no país havia sido drasticamente reduzida.

“Se eu fosse o Departamento de Estado, não me gabaria de causar um corte na produção de petróleo para 763.000 barris por dia”, disse Mark Weisbrot, Co-Diretor do Centro de Pesquisa Econômica e Política ao The Grayzone na época. “Isso significa mortes ainda mais prematuras do que as dezenas de milhares que resultaram de sanções no ano passado”.

Em abril, Weisbrot foi co-autor de um relatório que documentou 40.000 mortes evitáveis ​​que ocorreram entre 2017 e 2018 como resultado direto das sanções dos EUA. Este relatório inédito também foi ignorado por Bachelet, que tinha muito mais recursos à sua disposição para investigar suas graves conclusões e, talvez, evitar mais milhares de mortes.

Embora Bachelet tenha admitido que “as sanções estão exacerbando” os problemas econômicos da Venezuela, ela argumentou que a atual crise antecedeu essas medidas, transferindo assim a culpa para as políticas de um governo bloqueado.

A autora deste artigo participou recentemente de um painel durante o qual o embaixador da Venezuela nas Nações Unidas, Samuel Moncada, abordou acusações como essas.

Respondendo à acusação amplamente repetida de má administração econômica, Moncada perguntou: “Se estamos cometendo suicídio [econômico], para que você precisa de sanções? O problema é que eles estão aplicando sanções como nunca antes. Então, eles realmente acham que as sanções têm um objetivo e um resultado final, e estão tentando implodir o país”.

Moncada também explicou como a queda dos preços do petróleo de 2015 impactou a economia da Venezuela, insistindo que “nós tentamos, talvez erroneamente, manter a mesma política de apoio social sem a riqueza do petróleo” da qual o governo tradicionalmente dependia. O mercado internacional de petróleo entrou em colapso em 2015, apenas alguns meses depois que a Reuters informou que o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, se reuniu com o rei saudita Abdullah para discutir planos para aumentar a produção de gasolina.

O ex-relator especial de Zayas concordou, dizendo ao The Grayzone, “a causa inicial da crise econômica foi, naturalmente, a dramática queda nos preços do petróleo. A crise atual é ‘made in the USA’ e corresponde diretamente às sanções e ao bloqueio financeiro”.

Bachelet afirmou que a indústria petrolífera da Venezuela já “estava em crise antes que quaisquer sanções setoriais fossem impostas”, ignorando o fluxo e refluxo do mercado internacional. Ela também observou uma “redução drástica das exportações de petróleo” entre os anos 2018 e 2019, mas surpreendentemente não conseguiu conectar o declínio às sanções dos EUA lançadas em janeiro de 2019, que visavam especificamente impedir a indústria de petróleo da Venezuela de exportar produtos para o exterior.

Pela lógica da Alta Comissária Bachelet, Maduro é tão incrivelmente incompetente ou perverso que se recusou a pagar as contas de seu país e destruiu toda a indústria petrolífera sozinho, em um esforço para privar seu próprio povo.

Atacando o programa de distribuição de alimentos da Venezuela com alegações infundadas

Em 2016, o governo de Maduro introduziu o Programa de Comitês Locais de Abastecimento e Distribuição de Alimentos (CLAP) para compensar o impacto das sanções e a crise econômica provocada pela queda dos preços do petróleo. Hoje, o programa oferece alimentos e suprimentos sanitários a quase seis milhões de famílias – uma fatia enorme da população da Venezuela.

De acordo com Bachelet, Maduro não iniciou este programa para alimentar os mais vulneráveis ​​entre a população de seu país, mas para promover “tarefas de coleta de informações para inteligência e defesa”. Ela não forneceu evidências para sua alegação.

Bachelet também alegou sem fundamento que o programa de distribuição de alimentos foi usado de maneira politicamente prejudicial, afirmando que algumas famílias “não foram incluídas nas listas de distribuição… porque não eram apoiadores do governo”.

O ataque de Bachelet ao CLAP ocorreu no momento em que a administração Trump ameaçou atacar o programa de distribuição de alimentos com sanções.

As alegações feitas por Bachelet durante uma turnê encurtada na Venezuela estavam em desacordo com as descobertas de vários meios de comunicação, cidadãos venezuelanos e estrangeiros que recentemente viajaram para a Venezuela para testemunhar a distribuição do CLAP.

Terri Mattson, da organização CODEPINK, passou três meses morando com uma família na Venezuela no início deste ano e também esteve no painel acima mencionado com a autora deste artigo e o embaixador Moncada.

“É um programa fantástico e está ajudando pessoas que, de outra forma, não teriam acesso à comida”, observou Mattson. “Meu bairro… era predominantemente de opositores. Aquelas pessoas recebiam comida assim como nós, na casa chavista, recebíamos comida. A comida foi distribuída através do conselho comunitário, o conselho da comunidade era de maioria oposicionista… todos receberam comida, todos participaram nas reuniões semanais do conselho comunitário”.

O ataque de Bachelet ao CLAP será indubitavelmente usado para justificar as tentativas do governo dos EUA de sancionar o programa e contribuir ainda mais para a fome dos venezuelanos. Se um programa essencial de distribuição de alimentos é prejudicado de fora, que outro resultado pode ser esperado além de mais fome?

Ironicamente, a crítica de Bachelet ao CLAP contradiz diretamente a recomendação no final de seu relatório, que solicitou que o governo “tome todas as medidas necessárias para garantir a disponibilidade e acessibilidade de alimentos, água, medicamentos essenciais e serviços de saúde” para os venezuelanos. No entanto, ela não exigiu que o governo dos EUA acabe com as sanções que impôs contra o país, o que torna o cumprimento de sua recomendação quase impossível.

“O governo da Venezuela demonstrou que já está fazendo o máximo para garantir a disponibilidade e a acessibilidade de alimentos e remédios”, disse o ex-relator especial de Zayas em resposta, “o que o alto comissário deveria ter exigido é o fim imediato das sanções dos EUA e da União Europeia ”.

As recomendações de Bachelet equivalem a um ataque total à estrutura da Revolução Bolivariana. Se implementadas, elas não apenas resultariam no desmantelamento da estrutura do governo, mas provavelmente levariam ao caos da sociedade e à fome em massa.

Ecoando a propaganda dos EUA sobre os ‘coletivos’

Além de atacar o programa CLAP, Bachelet pediu ao governo que “desarme e desmonte grupos civis armados pró-governo” conhecidos como colectivos, acusando-os de “exercer controle social”.

Seus comentários ecoaram manchetes sensacionalistas da mídia corporativa dos EUA, bem como alegações de John Bolton e do senador Marco Rubio, da Flórida, que tentaram classificar os coletivos como gangues violentas controladas pessoalmente pelo presidente Maduro.

Em março, John McEvoy, do The Canary, passou duas semanas morando com um colectivo em Caracas. O repórter britânico descobriu que os grupos têm um propósito totalmente diferente do que o divulgado ao público ocidental pela mídia corporativa e pela liderança centrista Michelle Bachelet.

“Após a eleição de Hugo Chávez em 1998, os colectivos multiplicaram-se pela Venezuela com a devolução de poder em larga escala às comunidades locais”, explicou McEvoy, “a sua demonização nos meios de comunicação corporativos serve a um propósito distinto: deslegitimar os movimentos democráticos de base da Venezuela.”

“Como em toda a América Latina, as organizações sociais na Venezuela são consideradas incompatíveis com o projeto neoliberal da oposição apoiado pelos EUA”, continuou o repórter. “Eles são consequentemente desumanizados, deslegitimados e atacados por uma mídia complacente que categoricamente ignora suas raízes, popularidade e valor social”.

Neste contexto, o pedido de Bachelet para que os colectivos sejam desarmados é igual a pedir que o país entregue a sua última linha de defesa contra uma operação de mudança de regime em curso que incluiu tentativas de assassinato e ameaças de uma invasão militar em grande escala.

Quando Bachelet se reuniu com vítimas da violência das guarimbas em março, muitos esperavam que isso significasse que as vozes ignoradas pela grande mídia ocidental finalmente seriam ouvidas no cenário internacional. No entanto, a Alta Comissária decidiu que suas histórias não tinham valor, apresentando um documento que parece ter sido feito pelo Departamento de Estado dos EUA.

E, como um relógio, o Departamento de Estado aproveitou o relatório de Bachelet para impulsionar sua campanha unilateral de mudança de regime, mas desta vez com o selo da aprovação da ONU e por trás de uma respeitável líder política de centro-esquerda.

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