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A campanha de guerra econômica dos EUA e as defesas estrangeiras

Os EUA globalizam a guerra de classes do capital contra o trabalho enquanto mantêm os países devedores em uma curta coleira financeira.
por Michael Hudson | CounterPunch – Tradução de Gabriel Deslandes
(Foto: Master Sgt. Christopher DeWitt, U.S. Air Force)

O mundo de hoje está em guerra em muitas frentes. As regras da lei e da ordem internacionais postas em vigor desde o fim da Segunda Guerra Mundial estão sendo quebradas pela política externa dos Estados Unidos, aumentando seu confronto com países que se recusam a entregar às empresas americanas o controle de seus excedentes econômicos. Países que não dão aos norte-americanos o controle de seus setores petrolífero e financeiro ou que não privatizam seus principais recursos estão sendo isolados pelos EUA, que impõem sanções comerciais e tarifas unilaterais, concedem vantagens especiais aos produtores norte-americanos e violam acordos de livre comércio com europeus, asiáticos e outros países.

Essa fratura global tem um matiz cada vez mais militar. Autoridades norte-americanas justificam tarifas e quotas de importação ilegais, segundo as regras da OMC, alegando que os EUA, como nação “excepcional” do mundo, podem fazer o que quiserem. Tais autoridades explicam que isso significa que sua nação não é obrigada a aderir a acordos internacionais ou mesmo a seus próprios tratados e promessas. Esse suposto direito soberano de ignorar seus acordos foi explicitado depois que Bill Clinton e sua secretária de Estado, Madeline Albright, quebraram a promessa do presidente George Bush e do secretário de Estado, James Baker, de que a OTAN não se expandiria para o Leste Europeu depois de 1991 (a resposta dos EUA aos acordos verbais já realizados foi: “Vocês não entenderam”).

Da mesma forma, o governo Trump repudiou o acordo nuclear iraniano multilateral assinado no governo Obama e está intensificando a guerra por procuração com seus exércitos no Oriente Médio. Os políticos norte-americanos estão travando uma Nova Guerra Fria contra a Rússia, China, Irã e os países exportadores de petróleo que os EUA tentam isolar caso não puderem controlar seus governos, banco central e diplomacia estrangeira.

O quadro internacional, que originalmente parecia equitativo no pós-Segunda Guerra, era pró-americano desde o início. Em 1945, esse quadro era resultado natural do fato de que a economia dos EUA foi a menos prejudicada pela Guerra e detinha de longe a maior parte do ouro monetário do mundo. Ainda assim, a estrutura comercial e financeira do pós-Guerra foi ostensivamente baseada em princípios internacionais justos e equitativos*. Outros países deveriam se recuperar e crescer, criando paridade diplomática, financeira e comercial entre si.

Entretanto, na última década, a diplomacia americana se tornou unilateral ao transformar o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, o sistema de compensação bancária SWIFT e o comércio mundial em um sistema de exploração assimétrica. Esse arranjo unilateral de instituições, centrado nos EUA, tem sido amplamente visto não só como injusto, mas como limitador do progresso de outros países cujo crescimento e prosperidade são classificados pela política externa norte-americana como uma ameaça à hegemonia dos EUA no mundo. O que começou como uma ordem ostensivamente internacional para promover a prosperidade pacífica se tornou cada vez mais uma extensão do nacionalismo americano, da extração de renda predatória e de um perigoso confronto militar.

A deterioração da diplomacia internacional em uma agressão financeira, comercial e militar pró-americana mais claramente explícita estava subentendida na forma como a diplomacia econômica foi moldada quando as Nações Unidas, o FMI e o Banco Mundial foram majoritariamente criados por estrategistas econômicos dos EUA. Sua beligerância econômica está levando os países a se retirarem da ordem financeira e comercial global, que foi transformada em um veículo da Nova Guerra Fria para impor a hegemonia unilateral dos EUA. Reações nacionalistas estão se consolidando em novas alianças econômicas e políticas, da Europa à Ásia.

Nós ainda estamos atolados na Guerra do Petróleo, que teve sua escalada em 2003 com a invasão do Iraque e rapidamente se espalhou para a Líbia e a Síria. A política externa americana tem sido baseada, em grande parte, no controle do petróleo. Isso levou os EUA a se oporem aos Acordos de Paris para deter o aquecimento global. Seu objetivo é dar aos funcionários americanos o poder de impor sanções energéticas, forçando outros países a “congelarem” se não seguirem a liderança dos EUA.

Para expandir seu monopólio petrolífero, os EUA está pressionando a Europa a se opor ao Gasoduto Nord Stream II da Rússia, alegando que ele faria com que a Alemanha e outros países se tornassem dependentes da Rússia, em detrimento do gás natural liquefeito (GNL) dos EUA. Da mesma forma, a diplomacia americana do petróleo impôs sanções unilaterais contra as exportações de petróleo iranianas, até que uma mudança de regime abra as reservas petrolíferas do país para as grandes companhias norte-americanas, francesas, britânicas e de outros aliados.

O controle americano do dinheiro e do crédito em dólar é fundamental para essa hegemonia. Como disse o congressista Brad Sherman, de Los Angeles, em uma audiência da Comissão de Serviços Financeiros da Câmara em 9 de maio de 2019: “Muito do nosso poder internacional vem do fato de o dólar americano ser a unidade padrão das transações e finanças internacionais. Limpar o FED de Nova York por dentro seria crítico para grandes transações de petróleo e outras transações. É propósito anunciado dos defensores da criptomoeda tirar esse poder de nós, para nos colocar em uma posição em que as sanções mais importantes que temos contra o Irã, por exemplo, se tornariam irrelevantes”.[1]

O objetivo dos EUA é manter o dólar como a moeda de transações para o comércio mundial, poupança, reservas do banco central e empréstimos internacionais. Esse status de monopólio permite que o Tesouro norte-americano e o Departamento de Estado interrompam o sistema de pagamentos financeiros e comerciais nos países com os quais os EUA se encontram em guerra militar direta ou econômica.

O presidente russo Vladimir Putin rapidamente respondeu descrevendo como “a degeneração do modelo de globalização universalista [está] se transformando em uma paródia, uma caricatura de si mesma, em que regras internacionais comuns são substituídas pelas leis de um país”.[2] Essa é a trajetória pela qual essa deterioração do comércio internacional e das finanças anteriormente abertas está se movendo agora. Está se construindo há uma década. Em 5 de junho de 2009, o então presidente russo Dmitry Medvedev citou a mesma dinâmica disruptiva posta em ação pelos EUA, na esteira da crise norte-americana das hipotecas e fraudes bancárias.

Aqueles cujo trabalho era prever eventos não estavam prontos para a profundidade da crise e se mostraram muito rudes, desajeitados e lentos em sua resposta. As organizações financeiras internacionais – e acho que precisamos declarar isso de antemão e não tentar esconder – não estavam à altura de suas responsabilidades, como foi dito sem ambiguidade em vários relevantes eventos internacionais, como nas duas recentes cúpulas do G20 das maiores economias do mundo.

Além disso, tivemos a confirmação de que nossa análise pré-crise das tendências econômicas globais e do próprio sistema econômico global estava correta. O sistema unipolar mantido artificialmente e a preservação de monopólios nos principais setores econômicos globais são as causas-raiz da crise. Um grande centro de consumo, financiado por um déficit crescente e, portanto, dívidas progressivas, uma antiga moeda de reserva forte e um sistema dominante de avaliação de ativos e riscos – todos esses fatores levaram a uma queda generalizada na qualidade da regulação econômica e da justificativa das avaliações efetuadas, incluindo as de políticas macroeconômicas. Como resultado, não houve como evitar uma crise global.[3] Essa crise é o que está causando a atual queda no comércio e transações globais.

Guerra em muitas frentes, com a dolarização sendo a arena principal

A dissolução da União Soviética 1991 não trouxe o desarmamento amplamente esperado. Os líderes norte-americanos comemoraram a morte soviética como a sinalização do fim da oposição estrangeira ao neoliberalismo patrocinado pelos EUA e até mesmo como o Fim da História. A OTAN se expandiu para cercar a Rússia e patrocinou “revoluções coloridas” da Geórgia à Ucrânia, enquanto dividia a antiga Iugoslávia em pequenos Estados. A diplomacia americana criou uma legião estrangeira de fundamentalistas wahabitas do Afeganistão para o Irã, Iraque, Síria e Líbia em apoio ao extremismo da Arábia Saudita e ao expansionismo israelense.

Os EUA estão em guerra pelo controle do petróleo contra a Venezuela, onde um golpe militar fracassou há alguns anos, assim como o promovido entre 2018-19 para reconhecer um regime fantoche não eleito e pró-americano. O golpe hondurenho sob o presidente Obama foi mais bem-sucedido em derrubar um presidente eleito defensor da reforma agrária, dando continuidade à tradição que remonta a 1954, quando a CIA derrubou o governo de Jacobo Árbenz, na Guatemala.

Autoridades norte-americanas carregam um ódio especial por países que foram por eles feridos, desde a Guatemala em 1954 até o Irã, cujo governo foi derrubado para instalar o Xá como ditador militar. Sob a alegação de promover a “democracia”, a diplomacia norte-americana redefiniu o conceito de “democracia” como “pró-EUA” e se opõe à reforma agrária, desapropriação nacional de matérias-primas e subsídios públicos à agricultura ou indústria estrangeira como um ataque “antidemocrático” aos “livres mercados” – entendidos como mercados controlados por interesses financeiros dos EUA e de proprietários distantes de terras, recursos naturais e bancos.

Um dos principais subprodutos da guerra sempre foram os refugiados, e a onda que hoje foge do ISIS, da al-Qaeda e de outros grupos patrocinados pelos EUA no Oriente Médio está inundando a Europa. Onda semelhante está fugindo dos regimes ditatoriais apoiados pelos norte-americanos em Honduras, Equador, Colômbia e países vizinhos. A crise dos refugiados se tornou um fator importante que leva ao ressurgimento de partidos nacionalistas em toda a Europa e ao nacionalismo branco de Donald Trump.

A dolarização como veículo para o nacionalismo americano

O padrão dólar – dívida do Tesouro dos EUA para estrangeiros, detida pelos bancos centrais do mundo – substituiu o padrão de troca de ouro para as reservas do maior banco central do mundo para resolver os desequilíbrios de pagamentos entre si. Isso permitiu que os EUA administrassem exclusivamente déficits no balanço de pagamentos por quase 70 anos, apesar do fato de que essas dívidas do Tesouro têm pouca probabilidade visível de serem quitadas, exceto sob acordos em que a procura de empréstimos dos EUA e a tributação financeira direta de terceiros permita a liquidação de sua dívida externa oficial.

Os EUA são o único país que pode incorrer em déficits sustentáveis ​​no balanço de pagamentos sem ter que vender seus ativos ou aumentar as taxas de juros para tomar dinheiro estrangeiro. Nenhuma outra economia nacional no mundo pode dispor de recursos militares em grande escala no exterior sem perder seu valor de troca. Sem o padrão do Tesouro, os EUA estariam nessa mesma posição junto às outras nações. É por isso que a Rússia, a China e outras potências que os estrategistas americanos consideram inimigas e rivais estratégicas estão procurando restaurar o papel do ouro como o ativo preferido para resolver seus desequilíbrios de pagamentos.

A resposta dos EUA é impor mudanças de regime em países que preferem o ouro ou outras moedas estrangeiras ao dólar como suas reservas cambiais. Um exemplo disso é a derrubada de Muammar Kaddafi, da Líbia, depois que ele tentou basear suas reservas internacionais em ouro. Sua eliminação permanece como um alerta militar para outros países.

Graças ao fato de que as economias com superávit de pagamentos investem suas entradas de dólar em títulos do Tesouro dos EUA, o déficit da balança de pagamentos dos EUA financia seu déficit orçamentário doméstico. Essa reciclagem, via bancos centrais estrangeiros, dos gastos militares dos EUA no exterior em compras de títulos do Tesouro norte-americano dá aos EUA uma carona gratuita, financiando seu orçamento – em especial, também militar – para poder tributar seus próprios cidadãos.

Trump está forçando outros países a criar uma alternativa ao padrão do dólar

O fato de as políticas econômicas de Donald Trump estarem se mostrando ineficazes na restauração da indústria americana está criando uma pressão nacionalista crescente para explorar estrangeiros por meio de tarifas arbitrárias sem levar em conta o Direito internacional e para impor sanções comerciais, além de intromissões diplomáticas a fim de derrubar regimes que buscam políticas que desagradam os norte-americanos.

Há um paralelo aqui com Roma no final do século I a. C., que obrigou suas províncias a pagarem por seu déficit militar, sua demanda de grãos e sua redistribuição de terras às custas das cidades italianas e da Ásia Menor. Isso criou uma oposição estrangeira visando expulsar Roma. A economia norte-americana tem semelhanças com a de Roma: mais extrativista do que produtiva, baseada principalmente em rendas de terra e juros monetários. Como o mercado doméstico está fraco, os políticos dos EUA estão tentando tirar do exterior o que não está mais sendo produzido em casa.

O que é tão irônico – e tão autodestrutivo no percurso global da América – é o objetivo simplista de Trump de reduzir a taxa de câmbio do dólar para tornar o preço das exportações norte-americanas mais competitivo. O presidente almeja que o comércio de commodities passe a compor a balança de pagamentos toda, como se não houvesse gastos militares, para não mencionar os empréstimos e investimentos. Para reduzir a taxa de câmbio do dólar, Trump exige que o banco central da China e os de outros países parem de se apoiar no dólar, reciclando em títulos do Tesouro dos EUA os dólares que recebem por suas exportações.

Essa visão deixa de levar em conta o fato de que a balança comercial não é simplesmente uma questão de níveis comparativos de preços internacionais. Os EUA minaram sua própria capacidade de fabricação de peças sobressalentes e seus fornecedores locais de peças e materiais, enquanto grande parte de sua engenharia industrial e mão de obra qualificada já se aposentou. Uma imensa escassez como essa só pode ser preenchida por novos investimentos de capital, educação e infraestrutura pública, cujos encargos são muito superiores aos de outras economias.

A ideologia pró-infraestrutura de Trump envolve parcerias público-privadas caracterizadas pela financeirização de alto custo, que exigem altos rendimentos monopolizados para cobrir seus juros, dividendos de ações e taxas de administração. Essa política neoliberal eleva o custo de vida da força de trabalho norte-americana, tornando-a pouco competitiva. Os EUA são incapazes de produzir mais a qualquer preço, já que passaram os últimos 50 anos desmantelando sua infraestrutura, fechando fornecedores e terceirizando sua tecnologia industrial.

Os EUA privatizaram e financeirizaram sua infraestrutura e suas necessidades básicas, como saúde pública e assistência médica, educação e transporte, algo que outros países mantiveram em seu domínio público para tornar suas economias mais rentáveis, fornecendo serviços essenciais gratuitamente ou a preços subsidiados. Os EUA também são líderes na prática de pirâmide de dívidas, desde habitação até finanças corporativas. Essa engenharia financeira e criação de riqueza, ao inflacionar bolhas imobiliárias e do mercado de ações, financiadas por dívidas, tornou os EUA uma economia de alto custo, incapaz de competir com sucesso com economias mistas bem geridas.

Incapazes de recuperar seu domínio em manufatura, os EUA estão se concentrando nos setores de extração de renda que esperam monopolizar, liderados pela tecnologia da informação e produção militar. No front industrial, eles ameaçam a China e outras economias mistas, impondo sanções comerciais e financeiras.

A grande aposta é se esses outros países vão se defender juntando-se a alianças que lhes permitam contornar a economia norte-americana. Estrategistas dos EUA imaginam seu país como a economia mais importante do mundo, sem cujo mercado outros países tendem a sofrer depressão. O governo Trump acredita que não há alternativa (“There Is No Alternative” – TINA) para os demais países por conta de seus próprios sistemas financeiros, que dependem de crédito em dólares americanos.

Para se protegerem das sanções norte-americanas, os países teriam que evitar o uso do dólar e, portanto, dos bancos dos EUA. Isso exigiria a criação de um sistema financeiro não dolarizado para uso entre eles, incluindo sua própria alternativa ao sistema de compensação bancária SWIFT. A seguinte tabela lista algumas possíveis defesas relacionadas à diplomacia nacionalista dos EUA:

Como observado acima, o que também é irônico na acusação do presidente Trump de que a China e outros países manipulam artificialmente sua taxa de câmbio em relação ao dólar (reciclando seus superávits comerciais e de pagamentos em títulos do Tesouro para segurar a valorização do dólar) envolve o desmantelamento do padrão da conta do Tesouro. A principal maneira pela qual as economias estrangeiras estabilizaram suas taxas de câmbio desde 1971 foi, de fato, reciclando suas entradas de dólares em títulos do Tesouro dos EUA. Deixar o valor de sua moeda subir ameaçaria sua competitividade de exportação contra seus rivais, embora não necessariamente beneficiasse os EUA.

Acabar com essa prática deixaria como a principal alternativa aos países que querem proteger suas moedas a redução das entradas de dólar, bloqueando os empréstimos dos EUA a mutuários domésticos. Eles podem cobrar tarifas flutuantes proporcionais ao valor do dólar. Desde a década de 1920, os EUA têm um longo histórico de elevação de suas tarifas contra moedas que estão se depreciando: o American Selling Price (ASP). Outros países podem impor suas próprias tarifas flutuantes contra produtos norte-americanos.

Dependência comercial como objetivo do Banco Mundial, do FMI e da USAID

O mundo de hoje enfrenta um problema muito parecido com o que enfrentou na véspera da Segunda Guerra Mundial. Assim como a Alemanha, os EUA representam agora a principal ameaça da guerra, e regimes econômicos neoliberais igualmente destrutivos seguem impondo austeridade, encolhimento econômico e despovoamento. Diplomatas americanos ameaçam destruir governos e economias inteiras que buscam se manter independentes desse sistema, por meio de sanções comerciais e financeiras apoiadas por força militar direta.

A desdolarização exigirá a criação de alternativas multilaterais para as instituições “frontais” dos EUA, como o Banco Mundial, o FMI e outras agências nas quais os norte-americanos têm poder de veto para bloquear quaisquer políticas alternativas consideradas não “benéficas”. As agências de ajuda externa do Banco Mundial e dos EUA visam promover a dependência das exportações de alimentos dos EUA e outras commodities importantes, enquanto contratam empresas de engenharia norte-americanas para construir infraestrutura de exportação para subsidiar por parte dos EUA e de outros países em recursos naturais.[4] O financiamento é principalmente em dólares, fornecendo títulos sem risco para os EUA e outras instituições financeiras. A “interdependência” comercial e financeira resultante levou a uma situação em que uma interrupção repentina da oferta prejudicaria as economias estrangeiras, causando uma quebra nas cadeias produtivas e de pagamentos. Como efeito, os países clientes permanecem presos na dependência da economia norte-americana e de sua diplomacia, eufemizada como “promoção de crescimento e desenvolvimento”.

A política neoliberal dos EUA, por meio do FMI, impõe austeridade e se opõe a amortizações de dívidas. Seu modelo econômico finge que os países devedores podem pagar qualquer volume de dívida em dólar simplesmente reduzindo os salários para extrair mais renda da força de trabalho com o propósito de pagar credores estrangeiros. Isso ignora o fato de que a resolução dos “problemas orçamentários” internos, tributando a receita local, ainda enfrenta o “problema de transferência” de convertê-los em dólares ou em outras moedas fortes, nas quais se encontra a maior parte da dívida internacional. O resultado é que, na verdade, os programas de “estabilização” do FMI desestabilizam e empobrecem os países que são forçados a seguir seus conselhos.

Empréstimos do FMI sustentam regimes pró-EUA, como a Ucrânia, e subsidiam a fuga de capital, apoiando as moedas locais por tempo suficiente para permitir que as oligarquias clientes dos EUA fujam de suas moedas locais a uma taxa de câmbio pré-depreciação do dólar. Quando a moeda local for enfim permitida a entrar em colapso, os países devedores são aconselhados a impor a austeridade antitrabalhista. Esse processo globaliza a guerra de classes do capital contra o trabalho enquanto mantém os países devedores em uma curta coleira financeira.

A diplomacia norte-americana está limitada a impor sanções comerciais a fim de molestar economias que se afastam dos desígnios dos EUA. As sanções são uma forma de sabotagem econômica, tão letal quanto uma guerra militar direta no estabelecimento do controle americano sobre as economias estrangeiras. A ameaça é empobrecer populações civis, na crença de que isso as levará à substituição de seus governos por regimes pró-americanos que prometem restaurar a prosperidade vendendo sua infraestrutura doméstica para os EUA e outros investidores multinacionais.

Problemas globais causados pela política norte-americana / Respostas a essas políticas norte-americanas

Há alternativas, em muitos fronts

Militarmente, a principal alternativa atual ao expansionismo da OTAN é a Organização de Cooperação de Xangai (SCO), juntamente com a Europa seguindo o exemplo da França sob Charles de Gaulle e se retirando da Aliança Atlântica. Afinal, não há ameaça real de invasão militar hoje na Europa. Nenhuma nação pode ocupar outra sem um enorme recrutamento militar e perdas tão pesadas de pessoal a ponto de protestos internos destituírem o governo que travasse tal guerra. O movimento antiguerra norte-americano na década de 1960 sinalizou o fim do projeto militar, não apenas nos Estados Unidos, mas em quase todos os países democráticos.

Os enormes gastos com armamentos para um tipo de guerra improvável não são realmente militares, mas simplesmente para proporcionar lucros ao complexo industrial militar. As armas não são para serem usadas de fato. Elas são simplesmente para serem compradas e, enfim, descartadas. O perigo, é claro, é que essas armas não usadas possam ser usadas, apenas com o objetivo de criar a necessidade de uma nova produção lucrativa.

Da mesma forma, as reservas estrangeiras de dólares não devem ser, de fato, gastas em compras de exportações ou investimentos norte-americanos. Elas são como coleções ​​de vinhos finos: para economizar em vez de beber. A alternativa a tais reservas dolarizadas é criar um uso mútuo de moedas nacionais e um sistema de pagamentos de compensação bancária alternativo ao SWIFT. Rússia, China, Irã e Venezuela já estão desenvolvendo pagamentos em criptomoeda a fim de contornarem as sanções dos EUA e, consequentemente, seu controle financeiro.

Na Organização Mundial do Comércio, os EUA tentaram estipular que qualquer indústria que receba infraestrutura pública ou crédito subsidiado mereça retaliação tarifária a fim de forçar sua privatização. Em resposta à posição da OMC de que as tarifas norte-americanas são impostas ilegalmente, os EUA, em protesto, bloquearam todas as novas nomeações para o Órgão de Apelação de sete membros, deixando-o em risco de colapso por falta de juízes suficientes.[5] Na visão dos EUA, apenas o comércio privatizado, financiado por bancos privados e não públicos, é um comércio “justo”.

Uma alternativa à OMC (ou a remoção de privilégio de veto dado ao bloco americano) é necessária para lidar com a ideologia neoliberal norte-americana e, mais recentemente, com a farsa dos EUA, que reivindicam sua isenção a tratados de livre comércio por razões de “segurança nacional”, impõem tarifas ao aço e ao alumínio e ameaçam países europeus que contornam as sanções ao Irã ou compram o petróleo da Rússia através do Gasoduto Nordstream II, em vez do caro gás liquefeito “livre” norte-americano.

No campo dos empréstimos para desenvolvimento, o Banco da China, juntamente com sua Iniciativa Um Cinturão, Uma Estrada, é uma alternativa incipiente ao Banco Mundial, cujo principal papel tem sido a promoção da dependência externa de fornecedores dos EUA. O FMI, por sua vez, funciona como uma extensão do Departamento de Defesa dos EUA para subsidiar regimes servis como a Ucrânia, enquanto isola financeiramente países que não são subservientes à diplomacia norte-americana.

Para salvar as economias endividadas que sofrem com austeridade no estilo grego, o mundo precisa substituir a teoria econômica neoliberal por uma lógica analítica de amortização da dívida com base na capacidade de pagamento. O princípio orientador da necessária lógica orientada para o desenvolvimento do Direito internacional deveria ser o de que nenhuma nação deveria ser obrigada a pagar credores estrangeiros tendo que vender seu patrimônio público. O caráter definidor da nacionalidade deveria ser o direito fiscal de cada país tributar a compra de recursos naturais e rendimentos financeiros e criar seu próprio sistema monetário.

Os EUA se recusam a ingressar no Tribunal Penal Internacional. Para ele ser efetivo, precisa ter poder de execução para seus julgamentos e penalidades, estando hoje limitado a apresentar acusações de crimes de guerra na tradição do Tribunal de Nuremberg. Colocar os EUA em tal corte, em decorrência de seu crescimento militar que agora ameaça levar o mundo à Terceira Guerra Mundial, sugere um novo alinhamento de países como o Movimento das Nações Não-Alinhadas dos anos 1950 e 1960. Nesse caso, ser não-alinhado significa se ver livre do controle ou das ameaças diplomáticas dos EUA.

Tais instituições requerem uma teoria econômica e uma filosofia de operações mais realistas para substituir a lógica neoliberal de privatização antigovernamental, austeridade antitrabalhista e oposição a déficits orçamentários domésticos e à amortização de dívidas. A doutrina neoliberal hoje opera com taxas financeiras anacrônicas e o aumento dos preços imobiliários como um acréscimo ao “produto real” (PIB), mas considera o investimento público como um peso morto, não como uma contribuição para a produção. O objetivo de tal lógica é convencer os governos a pagarem seus credores estrangeiros, vendendo suas infraestruturas públicas e outros bens de domínio público.

Assim como o princípio de “capacidade de pagamento” foi a pedra angular do Bank for International Settlements em 1931, é necessária uma base semelhante para medir a capacidade atual de pagamento de dívidas e, portanto, da amortização de empréstimos ruins, que foram feitos sem a capacidade correspondente dos devedores de arcarem com tais despesas. Na ausência dessa instituição e de um corpo de análise, o princípio neoliberal do FMI de imposição de depressão econômica e queda nos padrões de vida para pagar aos EUA e outros credores estrangeiros irá impor a pobreza global.

As propostas acima fornecem uma alternativa à recusa “excepcionalista” dos EUA de se unirem a qualquer organização internacional que tenha algo a dizer sobre seus assuntos internos. Outros países devem estar dispostos a virar a mesa e isolar os bancos e exportadores dos EUA e a evitar o uso de dólares e pagamentos via bancos americanos. A criação de um poder de compensação requer uma corte internacional e organizações que a sustentem.

Resumo

O primeiro objetivo existencial é evitar a ameaça corrente de guerra ao acabar com a interferência militar dos EUA em países estrangeiros e remover as bases militares norte-americanas como relíquias do neocolonialismo. O perigo que os EUA representam para a paz e a prosperidade mundial ameaça uma reversão ao colonialismo anterior à Segunda Guerra Mundial, governado por elites clientes similares às alinhadas ao golpe ucraniano de 2014, promovido por grupos neonazistas patrocinados pelo Departamento de Estado dos EUA e pela National Endowment for Democracy (NED). Tal domínio lembra os ditadores instalados pela diplomacia americana por toda a América Latina nos anos 1950. O terrorismo étnico de hoje do islamismo wahabita-saudita, patrocinado pelos EUA, lembra o comportamento da Alemanha nazista nos anos 1940.

O aquecimento global é a segunda grande ameaça existencial. Bloquear tentativas de revertê-lo é um alicerce da política externa americana, já que ela se baseia no controle petrolífero. Portanto, as ameaças militares, de refugiados e de aquecimento global estão interligadas.

Os militares norte-americanos representam o maior perigo imediato. A guerra de hoje é fundamentalmente distinta do que costumava ser. Antes da década de 1970, as nações conquistadoras precisavam invadir as outras e ocupá-las com exércitos arregimentados por meio de um recrutamento militar. Contudo, nenhuma democracia no mundo de hoje pode reviver tal proposta sem desencadear a recusa generalizada de lutar, o que derrubaria o governo que estiver no poder no momento. A única maneira pela qual os EUA – ou outros países – podem lutar contra outras nações é as bombardeando. E como observado acima, as sanções econômicas têm um efeito tão destrutivo sobre as populações civis em países considerados adversários dos EUA quanto a guerra aberta. Os EUA podem patrocinar golpes políticos (como em Honduras e no Chile de Pinochet), mas não podem ocupar. Não estão dispostos a reconstruírem esses países, para não falar em assumir a responsabilidade pelas ondas de refugiados que tais bombardeios e sanções estão causando da América Latina ao Oriente Próximo.

Os ideólogos norte-americanos veem a expansão militar coerciva de seu país e a subversão política e a política econômica neoliberal de privatização e financeirização como uma vitória irreversível que sinaliza o Fim da História. Para o resto do mundo, é uma ameaça à sobrevivência humana.

A promessa americana é que a vitória do neoliberalismo é o fim da história, oferecendo prosperidade ao mundo inteiro. Entretanto, sob a retórica da livre escolha e do livre mercado, está a realidade da corrupção, subversão, coerção, punição pela dívida e neofeudalismo. A realidade é a criação e o subsídio de economias polarizadas, bifurcadas entre uma classe rentista privilegiada e seus clientes, devedores e arrendatários.

É permitido aos EUA monopolizar o comércio de petróleo e de grãos alimentícios e manter seus monopólios de alta tecnologia, de que vivem seus clientes dependentes. Ao contrário da servidão medieval, as pessoas sujeitas ao tal cenário do Fim da História podem escolher viver onde quiserem. Porém, onde quer que eles vivam, elas devem ter uma dívida de vida para obter acesso à casa própria e contar com o controle norte-americano de suas necessidades básicas, dinheiro e crédito, aderindo ao planejamento financeiro de suas economias por parte dos EUA. Esse cenário distópico confirma o reconhecimento de Rosa Luxemburgo de que a escolha definitiva que as nações enfrentam no mundo de hoje é entre o socialismo e a barbárie.

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Notas:

*Nota do editor: consideramos um exagero dizer que as estruturas diplomáticas e comerciais pós-Segunda Guerra foram baseadas em princípios equitativos e justos. Ainda que isso possa ser verdade do ponto de vista formal, e ainda que possa ser verdade, em parte, para grandes potências pós-Segunda Guerra (como o caso da URSS) ou para países estratégicos e/ou centrais (Japão, Alemanha), os princípios equitativos e justos não pareceram ser tão firmes para a maior parte dos países, em especial no Terceiro Mundo, onde precisamente estas instituições trabalharam para reforçar a necessidade de “reformas” para pagamento de dívidas com o Primeiro Mundo. Sobre isso, ler “A Dívida Externa”, de Fidel Castro. De qualquer maneira, o autor mais a frente reconhece precisamente isto – que as instituições não “mudaram”, mas passaram a fazer mais abertamente aquilo para o que haviam sido moldadas.

[1] – Billy Bambrough, “Bitcoin Threatens To ‘Take Power’ From The U.S. Federal Reserve”, Forbes, 15 de maio de 2019. https://www.forbes.com/sites/billybambrough/2019/05/15/a-u-s-congressman-is-so-scared-of-bitcoin-and-crypto-he-wants-it-banned/#36b2700b6405.

[2] – Vladimir Putin, no discurso de abertura do Fórum Econômico, de 5 a 6 de junho de 2019. Putin prosseguiu alertando sobre “uma política de egoísmo econômico completamente ilimitado e um colapso forçado”. Essa fragmentação do espaço econômico global “é o caminho para intermináveis ​​conflitos, guerras comerciais e talvez não apenas guerras comerciais. Figurativamente, esse é o caminho para a luta final de todos contra todos”.

[3] – Discurso na Sessão Plenária do Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, São Petersburgo, Kremlin.ru, 5 de junho de 2009, da Johnson’s Russia List, 8 de junho de 2009, #8.

[4] – https://www.rt.com/business/464013-china-russia-cryptocurrency-dollar-dethrone/. Já no final da década de 1950, o Plano Forgash propôs um Banco Mundial para Aceleração Econômica. Projetado por Terence McCarthy e patrocinado pelo senador da Flórida, Morris Forgash, o banco teria sido uma instituição mais voltada para o desenvolvimento, orientando o desenvolvimento estrangeiro para criar economias equilibradas e autossuficientes em alimentos e outros itens essenciais. A proposta teve a oposição dos interesses internos, alegando que os países que buscavam a reforma agrária tendiam a ser antiamericanos. Mais especificamente, teriam evitado a dependência comercial e financeira dos fornecedores e bancos norte-americanos e, portanto, das sanções comerciais e financeiras dos EUA para evitar que seguissem políticas contrárias às suas exigências diplomáticas.

[5] – Don Weinland, “WTO rules against US in tariff dispute with China”, Financial Times, 17 de julho de 2019.

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