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De feudos e embustes: O chicote na senzala virou caneta de liberal

A partir da dívida do terceiro-mundo, fruto do colonialismo, o liberal defende “privatizações” e “reformas” que nos fazem, de novo, colônia e escravos.
por Pedro Marin | Revista Opera
(Imagem: Estúdio Gauche)

Recentemente me chamou a atenção um texto de Marcos Lisboa, “Feudos“, publicado na Folha de São Paulo, cuja chamada declarava: “Agenda liberal na economia passa por retirar privilégios de senhores feudais fantasiados de capitalistas.” Me interessei, naturalmente: estaria Marcos Lisboa definindo a economia brasileira como feudal? O liberal se insurgia contra o latifúndio? Trataria ele de relações pré-capitalistas no campo?

Não era nada disso, e a partir de seu escrito compreende-se logo que na Economia ocorre o mesmo fenômeno que em muitos outros campos, inclusive no Jornalismo: especialistas por vezes são feitos repetidores de embustes, sofistas do absurdo e feiticeiros de dados.

Lisboa abre seu artigo nos dizendo que, no século 18, “todos os países eram pobres”, que a renda média por habitante era de 1 dólar por dia, mesmo na Inglaterra, e que a expectativa de vida era de cerca de 40 anos. Nos diz também, no entanto, que desde então houve uma “revolução econômica”, que aumentou em cem vezes a renda dos países desenvolvidos e duplicou a expectativa de vida. Além disso, diz ele, nas últimas décadas, “1 bilhão de pessoas saíram da linha da pobreza nos países emergentes.” E amarra: “um típico morador da África subsaariana atual vive melhor do que uma pessoa na França de 1700.”

Chega, por fim, a seu ponto: países ricos e pobres se desenvolvem de forma diferente. Mas o fator determinante para o seu desenvolvimento desigual, diz ele, além de “educação” e “infraestrutura”, é que nos países ricos as “empresas ineficientes” tendem a ser menores ou desaparecer, enquanto que nos países pobres as empresas pouco produtivas “conseguem competir e sobreviver graças a políticas públicas que concedem privilégios, como regimes tributários especiais, regras de conteúdo nacional e acesso ao crédito subsidiado.” É a isso, caro leitor, que o liberal chama “feudalismo” – práticas do capitalismo moderno.

Logo, ao olhar com cuidado, percebemos que da mencionada redução de 1 bilhão de pobres, 853 milhões deles deixaram de sê-lo na China. Seria pela mão invisível do mercado, maestra dos projetos econômicos que Marcos Lisboa sonha para o Brasil? Seria por ausência de “regimes tributários especiais”, “regras de conteúdo nacional” e “acesso ao crédito subsidiado”? Sabemos que não: o caso chinês é precisamente o contrário.

Quando se fala de “renda média” e “pobreza mundial” no século 18, muitas perguntas vêm à mente: Quanto era um quilo de batata na Inglaterra no século 18? E no Brasil? E com quantos “dólares” o inglês compraria batatas no Brasil? Quantos dólares recebiam escravos no Brasil? A “renda” deles também entra no cálculo?

Vemos como é grande o esforço de Lisboa, que para estabelecer alguma comparação viável entre a vida na África subsaariana e na França, é obrigado a usar de um lacuna temporal de 300 anos. Mas teria a França enriquecido pelo gênio de Luízes, Carlos e Henriques de deixar livre a mão invisível que elimina as empresas ineficientes, ou por empreendimentos coloniais, de mãos duras e espadas evidentes, que faziam lucro decepando mãos daqueles escravos que não fossem tão produtivos? 

Escondendo a morte, Lisboa fala-nos da vida: diz que no século 18 a expectativa de vida média na Inglaterra era de 40 anos, e chama de uma “revolução econômica” o fato dessa expectativa ter duplicado nos países ricos. Mas tomemos um momento de respiro, já que o liberal quer nos convencer que, naqueles tempos, “todos eram pobres”: o rendimento per capita dos escravos de Pernambuco, Minas Gerais e Bahia era a maior do mundo, como elucidou Darcy Ribeiro, mas a expectativa média de vida de um escravo em Minas Gerais, por esses tempos, era de 23 anos. Em trabalho, eles duravam cerca de 5 anos, em média. Ou seja: os escravizados, queimados como carvão em canaviais e cafezais brasileiros e enriquecendo a metrópole como nenhum outro empreendimento no mundo, viviam 17 anos a menos do que o inglês médio. E nada é tão ruim que não possa piorar: a diferença da expectativa entre a África subsaariana e a França, hoje, é de 21,8 anos.

Mas não paremos por aqui: criando profundas raízes nas colônias, a erva-daninha da pobreza – pobreza de todos, como descreve Lisboa? – vinga também internamente, de forma que 23 anos de expectativa de vida separam bairros paulistanos como Moema, tão frequentado por economistas, de outros como Cidade Tiradentes. Essa desigualdade gritante, existente na capital mais rica do Brasil, demonstra a canalhice dos cálculos universais do liberal: nos tempos da “revolução econômica”, no extremo leste de São Paulo se vive 1/3 a menos do que a média do país, enquanto na zona sul se vive cinco anos a mais. E são só 40 quilômetros, não 300 anos: realidade que Lisboa parece evitar, assim como evita a realidade do crescimento chinês como uma obra de intervencionistas, estatistas e “heterodoxos”. É o Diabo correndo da cruz!

Chegamos enfim ao central, à “educação” e à “infraestrutura”. O que Lisboa efetivamente quer dizer com essas duas palavras é a capacidade técnica que um povo tem (“educação”) de manejar, criar e sustentar a malha produtiva de um país (“infraestrutura”). O problema é que a infraestrutura do primeiro-mundo foi idealizada e financiada, primeiro, com a pilhagem do terceiro, e com o uso irrestrito de seus filhos, sem salários. Isso possibilitou que a “infraestrutura” fosse gerada, a partir da acumulação feita pelo roubo e pelo sequestro nas bordas do planeta, somada à “educação” dos cérebros centrais que possibilitou criar máquinas a vapor no primeiro-mundo, e avançasse a tal ponto que esses filhos sequestrados não mais fossem necessários.

Para o terceiro-mundo alcançar o primeiro por estes tempos, seria necessário no mínimo conseguir a tal da infraestrutura e, segundo, a capacidade técnica de manejá-la. O que significa que seria necessário, para os povos daqui, recuperar os recursos antes roubados, trabalhar de novo nas mesmas condições pelo mesmo período, ao mesmo tempo que se educavam como os franceses. Isso tudo, é claro, enquanto o primeiro-mundo nos aguardava, parado. Pode parecer fabuloso: mas é o real. Fabuloso é fingir não vê-lo.

Chegamos nos dólares. É que o empreendimento colonial não ia entregar de bandeja, alguns séculos depois, aquilo que foi fruto da entrega dos nossos recursos e filhos. Não; é necessário pagar em dólares para conseguir a tal da infraestrutura, que além de ser propriedade concreta do primeiro-mundo (feita a partir daqueles recursos pilhados do terceiro), é também uma “propriedade intelectual” – os Guarani não registraram patente dos mapas do ouro, e talvez por isso sejam pobres. E aí o tal do “um dólar”, hoje, vale muito mais do que qualquer moedinha terceiro-mundista, bem como com “um dólar”, ontem, conseguia-se muito mais ferro no terceiro-mundo do que o que gastamos hoje para, por exemplo, comprar maquinário. Afinal, pagamos os salários dos engenheiros ingleses – mas os ingleses não precisavam pagar pelo brutalizante trabalho de arrancar ferro da terra.

Como se isso tudo não bastasse, o primeiro-mundo criou ainda fundos e empréstimos, que nos “ajudam” a conquistar a tal infraestrutura – mas não como nós ajudamos eles a construí-la. Como nada é de graça por lá – só o trabalho, por aqui, que deixou de ser de graça para ser quase de graça – nós temos de pagar juros, que giram em dólares, que nós não imprimimos, e que nos endividam em proporção de diferença igual (ou provavelmente superior) daquela que dividia um inglês de um africano. Se o leitor imaginar outro caminho, para longe dos dólares, logo vem de novo a mão dura e a espada sangrenta, em defesa da mão invisível e livre. Elas nunca brigam entre si – só contra nós.

Mas se tudo correr bem, e recebermos a tão esperada ajuda, é a partir da dívida criada que os Lisboas e os Guedes reiniciam o ciclo, em “reformas trabalhistas” que nos fazem comparáveis aos nossos irmãos de 300 anos atrás, e privatizações (sem dúvidas a entrega de empresas que não são produtivas para nós, mas que o são para os gringos) que fazem do nosso país, mais uma vez, um mapa do ouro cuja patente não temos.

O liberalismo de Lisboa, hoje, é a defesa nativa do colonialismo de ontem. Um embuste.

O liberal foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no primeiro governo Lula, e era cotado para a Ministro da Fazenda do governo Haddad. Mais um.

O artigo foi publicado em jornal que solicita a seus leitores assinaturas para que siga sua peleja contra Bolsonaro, mas que faz elogios generosos à agenda de Paulo Guedes. É preciso dizer de novo?

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