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Operação Gideão: A última tentativa de derrubar Nicolás Maduro

A história e os mistérios da operação conduzida por mercenários norte-americanos e desertores da Venezuela para depor o governo de Maduro pelas armas.
por Néstor Prieto* e Pablo del Amo | Descifrando la Guerra – Tradução de Gabriel Deslandes para a Revista Opera
(Foto: Jeso Carneiro)

A chamada Operação Gideão, que deve seu nome à missão que matou o oficial militar rebelde Óscar Pérez em janeiro de 2018, representa a mais recente tentativa armada de liquidar com o governo de Nicolás Maduro. A operação foi uma espécie de revolta de militares descontentes, com o apoio e assessoramento dos militares dos EUA e certos vínculos – ainda a serem esclarecidos – com a oposição venezuelana.

Embora, em 30 de abril, vários vídeos nas redes sociais já alertassem para a existência de grupos rebeldes, o desfecho abrupto dessa operação aconteceu no dia 3 de maio, com a captura de várias lanchas no município costeiro de Chuao. Nelas viajariam dezenas de homens venezuelanos e dois americanos, que buscavam entrar no país com armas para encontrar os grupos rebeldes e, a partir de lá, acabar com o governo Maduro.

Preso da Operação Gideão, à esquerda, um dos ex-militares norte-americanos Luke Denman.

Antecedentes: convulsões e levantes armados anteriores

Não é a primeira vez que há uma tentativa armada de derrubar o governo da Venezuela. Em junho de 2017, o militar Óscar Pérez abriu fogo contra vários prédios do governo a partir de um helicóptero, depois divulgou um vídeo em que clamava por uma revolta e, desde então, dirigiu um grupo de soldados insurgentes que foram enfim mortos em janeiro de 2018, na paróquia El. Junquito.

A tentativa de magnicídio em agosto de 2018, quando um drone tentou atacar Nicolás Maduro durante um desfile militar, foi apelidada pela oposição de Operação Fênix, terminando em vários presos e sem vítimas mortais.

A autoproclamação de Juan Guaidó em janeiro de 2019 foi seguida pela tentativa fracassada de obtenção de ajuda humanitária em fevereiro e pela Operação Liberdade, em abril do mesmo ano. Esse “levante cívico-militar”, como definiram seus organizadores, foi a tentativa mais sólida e estruturada de acabar com Maduro. Na operação, conseguiu-se a libertação de Leopoldo López, e houve a convocação à deserção massiva de militares. Os confrontos, que duraram o dia todo, resultaram em várias mortes e foram finalmente apaziguados por Maduro.

Guaidó conversa com militares rebeldes durante a Operação Liberdade.

Em dezembro de 2019, a Operação Aurora repetiu o modus operandi, anunciando-se publicamente nas mídias sociais como um grupo de militares que procuravam “acabar com a ditadura”. O grupo insurgente conseguiu roubar armas de várias bases militares do país. Vários de seus membros foram presos dias depois.

A situação já turbulenta no país caribenho foi prejudicada pelas acusações de narcotráfico feitas pelos EUA a vários líderes chavistas. Pretexto que justificou a incursão militar do Southcom (Comando Sul dos Estados Unidos) nas águas do Caribe. Isso levou à Operação Gideão, com a Venezuela enfrentando a pandemia do COVID-19, uma queda dramática nos preços do petróleo (que representa 90% das divisas estrangeiras do país) e uma tensão crescente devido à presença norte-americana no entorno do país.

O que buscava a Operação Gideão?

Jordan Goudreau serviu 15 anos no Exército dos EUA, primeiro na infantaria e depois nas Forças Especiais. Serviu no Iraque e no Afeganistão. Em 2018, de acordo com seu site, ele fundou a empresa Silvercorp e coordenou e liderou equipes de segurança internacionais para o presidente dos Estados Unidos e o secretário de Defesa. Goudreau foi o cérebro dessa missão que levou meses de preparo.

Junto a Jordan Goudreau, destaca-se a figura do general rebelde do exército venezuelano Cliver Alcalá, acusado de tráfico de drogas pelo governo Trump. A operação consistiria, principalmente, no treinamento secreto de dezenas de desertores militares venezuelanos em campos secretos na Colômbia, para depois levarem a cabo incursões rápidas contra o governo venezuelano.

Imagem de arquivo: Goudreau uniformizado.

Depois de participar da segurança do Venezuela Aid Live, um festival ocorrido em 22 de fevereiro de 2019 na Colômbia para denunciar a “ditadura chavista”, Goudreau contatou Cliver Alcalá, ex-general nos anos de Chávez que desertou durante o governo Maduro. Até então, a oposição estava colaborando com Alcalá, organizando os soldados venezuelanos desertores.

Os membros da operação estavam sendo treinados em três campos militares na Colômbia, onde teriam o apoio de Jordan Goudreau e sua empresa Silvercorp (com sede na Flórida), além do de vários opositores venezuelanos. Contudo, a operação carecia do apoio do governo Trump e era conhecida pelo governo venezuelano graças à infiltração de vários agentes do serviço de inteligência – o que teria sido fundamental para impedir a intentona.

Segundo o próprio Goudreau, em entrevista à Associated Press, o objetivo era introduzir um “catalisador” na Venezuela. “De maneira alguma estou dizendo que 60 homens podem entrar e derrubar um regime. Estou dizendo que 60 homens podem entrar e inspirar os militares e a polícia a mudarem de lado e se unirem à libertação de seu país, o que, no fundo, é aquilo que eles querem”, disse ele à AP.

As equipes se infiltrariam na Venezuela para criar células a partir das quais atacariam instalações de petróleo e edifícios estratégicos do governo. Eles também ficariam encarregados de eliminar autoridades governamentais, FANB (Força Armada Nacional Bolivariana), Sebin (Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional), polícia…

A Silvercorp comprou um barco em dezembro, com o qual os militares viajaram para a Jamaica para se encontrar com ex-companheiros das Forças Especiais que gostariam de participar da operação. Dois dias após o encontro, em 28 de março, enquanto os preparativos para a operação continuavam, o bote de Goudreau quebrou, alertando as autoridades navais de Curaçao, que o resgataram e o levaram de volta para os EUA devido às restrições de mobilidade decorrentes do COVID-19, impedindo sua participação na operação.

Vínculos entre Jordan Goudreau e Juan Guaidó?

Uma das principais incógnitas da operação é a existência ou não de vínculos entre Godreau e o líder oposicionista Juan Guaidó. Segundo informações fornecidas por Juan José Rendón – assessor do autoproclamado presidente – ao Washington Post, em setembro de 2019, aconteceu em Miami uma reunião entre o militar norte-americano e os representantes da oposição nomeados pelo “governo encarregado”. Eles buscavam “explorar todas as oportunidades possíveis” na tentativa de derrubar Nicolás Maduro. Rendón conta que Goudreau afirmou ter 800 homens preparados para penetrar na Venezuela e “extraditar” o presidente e seu governo; em troca, pediu 212,9 milhões de dólares para financiar a missão, que Guaidó pagaria com a futura renda do petróleo que obteria uma vez no poder.

Todavia, além da reunião, a operação teria se materializado em um contrato – vazado pela mídia – no qual aparece a assinatura de Guaidó. Isso também foi explicado pelo próprio Goudreau, que afirmou que, apesar de ter chegado a um acordo, ainda não havia recebido o dinheiro – algo que o assessor Juan José Rendón nega, declarando ter pago ao militar norte-americano 50 mil dólares. O documento vazado, datado de 16 de outubro, também inclui a assinatura de Rendón, Guaidó e Sergio Vergara, outro assessor do líder oposicionista.

Imagem do contrato com a assinatura de Guaidó.

Além disso, os vínculos com a Operação Gideão iam além do contrato, e começaram a circular as gravações telefônicas de uma suposta conversa de Guaidó, cumprimentando Goudreau, na qual ouve-se: “Vamos trabalhar”.

O entorno do líder oposicionista negou repetidamente qualquer tipo de contato com Goudreau ou sua empresa Silvercorp, acusando Nicolás Maduro de organizar uma armadilha com a Operação Gideão. Em entrevista à CNN, o próprio Rendón afirma que o contrato de 41 páginas é verdadeiro, mas que, em outubro de 2019, eles decidiram cortar todos os contatos com Goudreau, pois a operação era considerada suicida, e Goudreau não tinha nenhuma prova da existência dos 800 homens.

As informações permanecem contraditórias, pois grande parte da oposição demonstrou seu apoio e sugeriu o conhecimento da operação nas redes sociais, ainda que outra parte dela tenha permanecido em rigoroso silêncio. Ao mesmo tempo, o governo continuou a publicar declarações incriminatórias contra a oposição, enquanto Guaidó e sua equipe mantiveram silêncio absoluto até que o contrato fosse vazado, momento em que saíram negando a sua veracidade.

Cronologia:

30 de abril: Vários vídeos vieram à tona nas redes de grupos armados anunciando a Operação Gideão, com o objetivo de derrubar o governo de Nicolás Maduro. Como chefe desse grupo de oficiais rebeldes, estaria o capitão do Exército venezuelano, Robert “Pantera” Colina, que garante no vídeo ter unidades em diferentes partes do país.

Trecho do vídeo em que um grupo de militares anuncia sua revolta no contexto da Operação Gideão. Fala Robert Pantera, líder dos insurgentes.

Jordan Goudreau também aparece em um vídeo com o capitão Quintero, um ex-militar venezuelano. Nele, afirmam que um grupo de combatentes entrou na Venezuela e confirmam a Operação Gideão.

Jordan Goudreau e o capitão Javier Nieto Quintero explicam a Operação Gideão em um vídeo.

1º de maio: A Associated Press publica um artigo vinculando Goudreau e os vídeos nas redes sociais a uma operação mais ampla, prevista inicialmente para 10 de março, mas adiada por problemas operacionais. O artigo também alertou que o governo venezuelano sabia sobre a operação há semanas.

3 de maio: Incidente em Macuto/La Guaira. Vários vizinhos confirmaram uma troca de tiros durante a manhã. De acordo com o governo, um grupo de mercenários armados tentou invadir o país por meio de lanchas vindas da Colômbia. O saldo foi de oito mortos e dois presos. Entre os mortos, estaria o capitão Robert “Pantera” Colina.

Naquela mesma manhã, começaram a ser publicadas imagens dos materiais encontrados, entre os quais armas abundantes. Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Nacional Constituinte e homem-forte do chavismo, afirma que se tratava de uma operação organizada pela DEA em colaboração com o governo colombiano.

Parte do material apreendido pelo Exército venezuelano.

4 de maio: O governo venezuelano lança uma campanha para encontrar os membros da Operação Gideão. O procurador-geral assegura que foram neutralizados três campos de mercenários localizados em solo colombiano que tentaram atacar a Venezuela. Tais mercenários estariam relacionados aos eventos em La Guaira e teriam armamentos roubados. Onze pessoas estão detidas, sendo duas delas ex-veteranos das Forças Especiais dos EUA.

Segundo o ex-boina verde Goulard, em declaração à Bloomberg: A operação para derrubar Maduro continua. O objetivo principal fracassou, o objetivo secundário (por em marcha a insurgência) está em andamento. Seriam enviados 52 homens.

Em comunicado oficial, Nicolás Maduro publica informações sobre os detidos e mostra a documentação encontrada – entre os quais os passaportes dos cidadãos norte-americanos.

Maduro mostra o material encontrado na Operação Gideão.

5 de maio: Goudreau torna público o contrato de oito páginas e os áudios que vinculam Guaidó. Os EUA declaram que não têm nada a ver com a operação.

Segundo o ministro da Informação e Comunicação, Jorge Rodríguez, em 1º de maio, duas embarcações deixaram a Colômbia. A primeira delas, com 13 membros na tripulação, estava indo para Guaira com o objetivo de atacar posições-chave do governo. No segundo barco, encontrava-se a maior parte da expedição, os dois americanos, o filho de Isaías Baduel (um militar-forte nos anos de Chávez e depois desertor), juntamente com outras 47 pessoas, incluindo capitães do Exército venezuelano. O primeiro barco sofreu danos ao embarcar em La Guaira, e treze pessoas de sua tripulação foram capturadas – uma desse grupo ainda estaria livre. Depois, a milícia boliviana deteve oito pessoas do segundo barco.

Rodríguez garantiu que, desde meados de abril, eles tinham conhecimento da operação, o que explicaria algumas ações das autoridades venezuelanas nas últimas semanas. Por exemplo, na semana anterior, dois barcos da Guarda Costeira foram enviados para o porto de La Guaira.

Presos do segundo navio interceptado. Entre a tripulação, estavam dois norte-americanos e vários oficiais médios do Exército venezuelano.

As informações exibidas pelo governo venezuelano são baseadas nas provas materiais apresentadas, em um suposto áudio de Juan Guaidó mencionado acima e nos depoimentos de vários detidos que foram ao ar publicamente.

7 de maio: O Washington Post vaza o contrato da Operação Gideão, totalizando mais de 40 páginas que vinculariam a oposição ao plano. Ao mesmo tempo, o governo venezuelano anunciou que levará a tentativa de golpe ao Tribunal Penal Internacional e ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. As abundantes informações e testemunhos que continuam aparecendo estão sendo investigados pela Justiça venezuelana, não só para acusar os detidos na operação, mas também porque há a percepção de que o suposto contrato assinado por Guaidó poderia ser a prova definitiva para ordenar sua prisão.

8 de maio: O governo venezuelano reforça o destacamento do exército em pontos estratégicos (o chamado Escudo Bolivariano) e segue em busca de mais colaboradores da Operação Gideão. O total de detidos seria de cerca de 200, além de vários mortos.

Há especulações sobre se os americanos presos serão julgados e condenados na Venezuela ou repatriados para os EUA. Trump anunciou sua disposição de trazê-los para o país. Apesar disso, a imputação de crimes por “terrorismo e conspiração” é conhecida por sua participação na “tentativa de invasão”.

Maduro resiste, Guaidó continua sua decadência

Só o tempo permitirá uma análise aprofundada das implicações políticas da fracassada Operação Gideão, mas, sem conhecer o saldo final dos presos e a possível reação judicial do governo, a única certeza é que a oposição está desgastada por essa tentativa. As versões contraditórias dadas por Guaidó aumentam o crescente descontentamento interno e reforçam o discurso do governo contra a ameaça imperialista.

Na falta de agenda própria, o futuro do “presidente” e da oposição depende mais da vontade norte-americana do que de suas opções políticas, uma vez que, com a renúncia ao diálogo, eles reduziram seu campo de ação a agitar a bandeira do levante militar e da ficção de um governo no exílio incapaz de materializar medidas concretas para a população.

O chavismo, por sua vez, cerra fileiras e aumenta seu tom contra a oposição. Maduro continua a presidir um país com uma grave crise econômica e política, mas, após essa operação, ele pode ter certeza de que, a curto e médio prazo – salvo uma improvável invasão –, continuará no governo.

Entretanto, apesar de ter interrompido uma nova tentativa de derrubada, o governo venezuelano está passando por um de seus piores momentos. Além do crescente cerco dos EUA, há um descontentamento interno com os cortes de energia, a falta de petróleo e uma oposição incansável. Se Caracas se encontra debilitada, sua resiliência não deve ser subestimada, mas tudo indica que a crise do coronavírus e, é claro, do petróleo, representará um duro golpe para a estabilidade do governo.

Será necessário estar atento a novos eventos na região. Washington poderá levar a um novo patamar sua tentativa de acabar com Nicolás Maduro, talvez aplicando um bloqueio econômico. Ainda faltam meses para as eleições presidenciais de novembro, e não seria estranho se Donald Trump tomasse algum movimento eleitoreiro.

* Nestor Prieto é estudante de Ciência Política na Universidade de Salamanca. Tentando oferecer uma visão crítica da geopolítica. Militante. Cobriu e viveu os processos migratórios na Grécia, Itália e Melilha. Agora escreve sobre América Latina.

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