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Histórias por trás das Canções: O Crime da Penha 

Moda de viola “O Crime da Penha” conta história de Joaquim Firmino de Araújo, delegado abolicionista morto por se negar a caçar pessoas.
Moda de viola “O Crime da Penha” conta história de Joaquim Firmino de Araújo, delegado abolicionista morto por se negar a caçar pessoas. Por Bruno Ribeiro | Revista Opera

A Revista Opera inaugura uma série de textos que contam as histórias por trás das canções. Como nasceram as ideias? Como foi o processo das composições? O que músicos e letristas têm a dizer sobre suas obras? A primeira coluna da série conta a história de O Crime da Penha, moda de viola de Iara Ferreira e Diogo Sili que trata de um crime bárbaro acontecido numa cidadezinha do interior pouco antes da abolição da escravatura no Brasil.

Na madrugada do dia 11 de fevereiro de 1888, o delegado de polícia Joaquim Firmino de Araújo teve a casa invadida por cerca de 200 populares e foi linchado na frente da mulher e dos filhos. Seu “pecado” era fazer parte de uma agremiação abolicionista e se recusar a prender “escravos fugidos”. Notícias de jornais dizem que Firmino, inclusive, chegou a acobertar fugas, a esconder “fugitivos” em sua residência e a ajudá-los a chegar ao quilombo do Jabaquara, em Santos — o que desagradava os “barões do café” no pequeno município paulista de Penha do Rio do Peixe.

Os mandantes do crime foram dois estrangeiros racistas: o inglês James Hankins Warne e o americano John Jackson Klink, que haviam se mudado para o Brasil atraídos pelos subsídios e incentivos fiscais oferecidos por D. Pedro II como forma de introduzir novas culturas e tecnologias à agricultura no interior de São Paulo. Ambos haviam lutado na Guerra de Secessão dos Estados Unidos do lado dos Confederados, que eram contrários à abolição da escravatura no país.

Durante meio século o assassinato de Joaquim Firmino foi assunto proibido pela elite local, que não mediu esforços para apagar o episódio da história — a começar pela mudança de nome da cidade, que passou a se chamar Itapira em 1890. O autor do projeto de lei que promoveu a alteração foi o presidente da Câmara Municipal — por “coincidência” John Jackson Klink, um dos acusados.

No dia 13 de maio deste ano, a BBC publicou uma matéria sobre a vida e a morte de Firmino, o abolicionista esquecido — o que reavivou na cantora e compositora Iara Ferreira, natural de Itapira, a ideia de fazer uma letra de música que contasse essa história. “Joaquim Firmino era o nome da rua em que cresci e isso era tudo o que eu sabia dele. Só descobri esse caso quando já era adulta”, conta ela. 

Caricatura das vítimas e de alguns dos assassinos publicada em um jornal da época. (Reprodução)

Nas palavras da compositora, Itapira é ainda hoje “uma cidade extremamente racista, como tantas no interior paulista, e a história de sua fundação, com base em tanto sofrimento do povo preto, pouco contada nas escolas.” 

Com mais de dez anos de carreira, dois discos lançados e canções gravadas por intérpretes como Leila Pinheiro e Marina Íris, faltava a Iara Ferreira uma moda de viola no currículo. “Sou mais do samba e da canção, mas ouvi muita música caipira morando no interior. Ela está presente na minha formação”, diz. 

A reportagem da BBC serviu como o “empurrão” que faltava e ela procurou o músico Diogo Sili, cuja especialidade é a moda de viola. “Eu pedi a ele que fizesse uma moda. Para contar essa história não haveria linguagem musical melhor”, comenta a letrista.

Em sua página no Facebook, o músico afirma que ficou “emocionado ao receber a letra” e que não conhecia a história de Joaquim Firmino. “Quando ela (Iara) me contou, arrepiei. É bonito ver a luta contra o racismo e contra a escravidão, ainda que embrionária, tomando força naquela época. É pra se inspirar”, anotou. A canção recebeu o título de O Crime da Penha e ainda está inédita. 

Joaquim Firmino foi considerado “mártir da abolição” graças à imprensa abolicionista que registrou na época o ocorrido. A professora Ângela Alonso, do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), acredita que o homícidio do delegado teria antecipado a assinatura da Lei Áurea, três meses depois. O crime, segundo ela, apontava para a formação de milícias privadas a serviço de fazendeiros e para o início de uma guerra civil no País. 

Joaquim Firmino foi enterrado em Mogi Mirim — até hoje não se sabe a localização exata. Valeriana, sua viúva, viveu por mais três décadas. O imóvel crivado de balas onde tudo se deu esteve de pé até 1970, quando foi comprado e demolido. Todos os 20 acusados do crime foram absolvidos e o processo se encontra até hoje no Museu do Palácio da Justiça, em São Paulo, como documento histórico.

“Vem de longe, ainda que tão insuficiente, a luta antirracista. Quem sabe possamos nos inspirar em Joaquim Firmino, que deu sua vida pela causa, porque lutar junto é o mínimo. E porque a história não se apaga numa canetada, numa mudança de nome. Ela precisa ser conhecida para que possamos melhorar como humanidade”, afirma Iara Ferreira.

O Crime da Penha (Diogo Sili / Iara Ferreira)

Lá na baixa Mogiana essa história ouvi contar
Toda vez que me recordo dá vontade de chorar
Existiu um delegado com um nobre coração
Que queria o bem do povo e sua libertação
Teve o destino marcado por honrar a profissão

Recusou-se a buscar um escravo que fugiu
De uma fazenda na Penha perto da beira do rio
Não julgava a cor da pele atestado de prisão
Ajudava o povo negro a fazer a abolição

Porém os americanos tinham terra por lavrar
Muitas sacas pra colheita e dinheiro pra ganhar
Tinham vidas de pessoas como seus bens de valor
E por Deus justificavam esse direito ao horror
Quem ficasse em seu caminho condenavam traidor

Recrutaram na cidade muitos cidadãos de bem
De famílias abastadas, escravocratas também
Numa tocaia covarde que mostrasse a lição
Para um branco que ousava ajudar na abolição

Café torrado, café em flor,
Enquanto isso já bem longe do feitor
No Jabaquara, mais um irmão
Chega ao Quilombo pra fazer revolução

Café torrado, café em flor,
O Rio do Peixe corre aos gritos de pavor
Joaquim Firmino tombado ao chão,
Assassinado em frente à população.

Itapira, pedra dura ainda…

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