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Histórias por trás das Canções: Zelão, de Sérgio Ricardo

Sérgio Ricardo era identificado com a ideia de que o artista deveria promover uma atitude revolucionária sem abrir mão da qualidade estética.
Sérgio Ricardo era identificado com a ideia de que o artista deveria promover uma atitude revolucionária sem abrir mão da qualidade estética. Por Bruno Ribeiro | Revista Opera
(Foto: Ana Rezende)

Violentas tempestades despencaram em série sobre o Rio de Janeiro entre 1958 e 1959, causando a morte de dezenas de pessoas e deixando centenas de famílias desabrigadas. Numa dessas ocasiões, Sérgio Ricardo estava em seu apartamento no bairro do Humaitá, debruçado à janela que dava para uma pequena favela de barracos muito precários. O compositor gostava de ficar em silêncio vendo a chuva cair sobre a cidade. Acendia um cigarro enquanto apreciava os ventos e os raios. Era um hábito antigo e familiar. Até aquele dia. 

Ao programa Conexão Roberto D’Ávila, veiculado em maio de 2012, ele conta ter presenciado uma cena que nunca mais saiu de sua mente: o deslizamento de uma encosta que arrastou consigo os barracos e tudo o que havia dentro deles. “Aquela cena me levou para o fundo do poço.”, disse. Foi um choque de realidade tão grande que a revolta de Sérgio Ricardo com a desigualdade social brasileira, que era latente, tornou-se, naquele minuto, a marca principal de sua obra. “Fechei a janela terrivelmente comovido e me sentei ao piano. Quis botar aquele sentimento pra fora. Foi assim que começou a nascer Zelão“, contou o compositor. 

Lançado em 1960, o samba Zelão foi um dos maiores sucessos de sua carreira e representou o ponto de inflexão de sua música em relação à bossa nova — movimento musical que começava a dar seus primeiros passos e do qual ele fazia parte, ainda que de modo incipiente. “Zelão foi o marco inicial da minha dissidência. A minha consciência política me fez incompatível com o otimismo e o frescor da bossa nova”, afirmou em entrevista que me concedeu em 2008, na ocasião do lançamento de seu álbum Ponto de Partida (Biscoito Fino). 

Se a melodia de Zelão saiu de bate-pronto ao piano, a letra viria dois dias depois da tragédia. “Eu estava diante da TV e de repente entra uma matéria sobre os moradores da favela, que perderam tudo. Eles estavam reunidos no Maracanã, esperando a ajuda da prefeitura, e o repórter pergunta a uma senhora que carregava o filho no colo: ‘E agora, como vocês vão fazer?’ Então ela olha para a câmera e responde: ‘Agora um pobre ajuda o outro pobre até melhorar”, relembrou o compositor. “Essa frase me impactou muito. Não foi criação minha”, disse. 

A frase citada é uma das mais emblemáticas de Zelão e, tal qual a imagem dos barracos sendo levados pela chuva, ficou gravada na mente de Sérgio Ricardo até o fim da vida. “Quando ouvi aquela mulher dizendo isso, desabei pela segunda vez. É de uma consciência terrível. Porque na sociedade as coisas são bem diferentes. Um rico não ajuda o outro rico. Um quer destruir o outro”, disse a Roberto D’ávila.

Curiosamente, apesar de não fazer parte da patota bossa-novista, o compositor é convidado de última hora para integrar o famoso Concerto da Bossa Nova no Carnegie Hall, em Nova York — evento seminal do movimento. Era o dia 21 de novembro de 1962 e a música que ele escolheu para “mostrar a nova música brasileira aos americanos” foi Zelão.

O show nos Estados Unidos, apesar de apresentar vários problemas técnicos, abriu as portas do mercado internacional para artistas como Tom Jobim e João Gilberto. Sérgio Ricardo não teve a mesma sorte. Ele ainda passou alguns meses em Nova York tocando na noite ao lado de jazzistas como Herbie Mann, mas retornou ao Brasil tão logo acabou o dinheiro. No entanto, o saldo da turnê foi positivo: depois do Carnegie Hall, Zelão não parou mais de ser regravado. Os Cariocas, Elza Soares, Paulinho Nogueira e Alcione fizeram, talvez, os melhores registros deste samba. 

O gesto intempestivo de Sérgio Ricardo no III Festival da Canção da TV Record, em 1967 — quando, irritado com as vaias durante a apresentação de sua música Beto Bom de Bola, quebrou o violão e o atirou contra a plateia —, marcou injustamente a sua carreira. No inconsciente coletivo do povo brasileiro, graças à insistência da imprensa em ruminar o incidente, o artista ficou relegado a este episódio — e sua obra permanece, até os dias atuais, cercada por uma atmosfera inédita. As exceções são as músicas compostas para os filmes de Glauber Rocha (a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol é de sua autoria e bastante conhecida) e Zelão, que proporcionou sua entrada no clube dos grandes criadores da MPB. 

É a partir de Zelão, aliás, que Sérgio Ricardo começa a emprestar à sua obra um olhar social, bem ao estilo da época, sobre a realidade brasileira. Embrião da canção de protesto dos anos de 1960 no Brasil, este samba divide a bossa nova ao meio ao inaugurar dentro do movimento a ala dos “engajados” (à qual viria somar Carlos Lyra e Nara Leão, por exemplo), em contraponto aos “alienados”, que preferiam cantar amenidades inspiradas em dias de sol e barquinhos que vão e vêm no mar azul de Ipanema. Se harmonicamente Zelão pode ser classificada como uma música egressa da bossa nova, poeticamente está mais próxima das crônicas cantadas pelos sambistas do morro. 

Embora nunca tenha-o dito publicamente, o despertar de Sérgio Ricardo para as mazelas sociais brasileiras, a partir da tragédia ocorrida numa favela vizinha, parece ter significado não apenas a mudança de rumo de sua obra musical, mas também de seu próprio estilo de vida. Foi em 1977 que o compositor decidiu se mudar para um barraco no Vidigal. Os amigos viram nisso um gesto quase franciscano, no sentido cristão do termo. 

Em matéria publicada em O Globo, o jornalista Luiz Fernando Vianna conta que, no mesmo ano em que se mudou para o Vidigal, Sérgio Ricardo, que também era cineasta, produzia o roteiro de um filme que seria rodado inteiramente no morro, tomando como ponto de partida o personagem Zelão e contando com a atuação dos próprios moradores. Porém, um acontecimento adiou seus planos para sempre: o anúncio da prefeitura do Rio de Janeiro de que 320 barracos seriam destruídos e as famílias enviadas para local distante e incerto. “A alegação era risco de desabamento. Mas a verdade era que duas empresas já tinham pagado, no papel e em subornos, para construir casas de luxo de frente para o mar. Do morro se tem uma das vistas mais bonitas do Rio”, diz Vianna.

Sérgio então se incorporou à associação de moradores e se engajou na resistência assumindo a interlocução junto ao poder público. Conseguiu atrair a atenção do advogado Sobral Pinto, sempre envolvido em causas justas, que assumiu o caso e deu a ele a publicidade necessária. O Vidigal se uniu em torno da associação e o movimento foi parar na imprensa. O país ainda vivia sob a batuta da ditadura militar, mas mesmo assim as autoridades tiveram de recuar e ninguém perdeu a sua casa. Desde então o compositor passou a ter voz ativa como liderança daquela comunidade.

Sérgio Ricardo falou a Roberto D’Ávila sobre sua relação com o morro do Vidigal, onde viveu nos últimos 43 anos: “Eu moro no Vidigal, não quero sair de lá. É uma posição verdadeira, da vida toda. Minhas filhas, que nasceram na Urca e foram criadas como pessoas de classe média, não entendem que eu fique na favela. Mas o fato é que me sinto à vontade no morro. Não estou dizendo que a favela é melhor ou pior. A questão é que prefiro levar uma vida mais simples, onde posso usar uma sandália velha sem que isso seja um problema. Moro num lugar onde as pessoas se conhecem e se ajudam mutuamente. Me identifico com essas relações mais sinceras.” 

Enquanto viveu, Sérgio Ricardo emprestou sua voz para cantar as classes populares e denunciar as injustiças. No início com certa ingenuidade, romantizando a solidariedade popular, como em Zelão. Mais tarde, de modo mais direto e participativo, colocando-se como sujeito histórico e não como mero observador, à exemplo de Vou Renovar, um dos momentos altos do show de 1º de Maio, em 1980, que reuniu vários artistas em homenagem ao Dia do Trabalhador, no Rio, e acabou se tornando um libelo contra a ditadura militar — que a essa altura do campeonato estava em seus estertores (mas ainda rugia: no ano seguinte, no mesmo 1º de Maio, em evento musical da mesma natureza, a bomba que seria destinada aos artistas explodiu acidentalmente no colo do capitão Wilson Dias Machado e do sargento Guilherme Pereira do Rosário, que morreu no local. O ato terrorista ficou conhecido como o “Atentado do Riocentro.”)

Mas voltemos a Zelão. Esta canção de protesto apresenta, de forma lírica, o mundo material e cultural dos pobres, mais especificamente dos habitantes das favelas cariocas, conforme os ditames da ideologia nacional-popular (expressão que designava uma cultura política e uma política cultural de esquerda, cuja busca era por expressar simbolicamente a brasilidade por meio da arte). Quanto aos procedimentos estéticos, a música contém elementos das classes populares (no coro das pastoras e na instrumentação típica do samba), ao mesmo tempo em que mantém a concepção da bossa nova nas harmonias dissonantes e no arranjo que flerta com a música de câmera. 

Assim como vários de seus contemporâneos, formados pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), Sérgio Ricardo era identificado com a proposta de que o jovem artista deveria “promover uma atitude revolucionária” sem abrir mão da qualidade estética de sua obra. Este pensamento pode ser facilmente observado em algumas de suas canções, como em Calabouço (homenagem ao estudante Edson Luís, assassinado pela polícia da ditadura no restaurante Calabouço, em 1968), Bichos da Noite (veiculada recentemente no filme Bacurau) e Esse Mundo é Meu (composto para filme homônimo do próprio Sérgio Ricardo, lançado em 1964).

O compositor dizia que a pobreza era um crime, mas que admirava os pobres justamente pelo que o capitalismo considerava um sinal de fracasso. “O indivíduo não é impunemente um pobre. Se ele é pobre é porque não sabe explorar o outro. E isso é uma qualidade, não um defeito.” 

Sérgio Ricardo, que na verdade se chamava João Lufti, morreu de insuficiência cardíaca em consequência de sequelas deixadas pela Covid-19. As homenagens feitas pela imprensa foram tímidas. O presidente da República, como de praxe, ignorou solenemente o seu passamento e não emitiu nenhuma nota de pesar. Por conta da pandemia, seus amigos do Vidigal não puderam se despedir no dia do enterro. Porém, na hora exata do adeus, uma longa salva de palmas fez-se ouvir em todo o morro. 

Zelão
(Sérgio Ricardo)

Todo morro entendeu
Quando o Zelão chorou
Ninguém riu nem brincou
E era carnaval

No fogo de um barracão
Só se cozinha ilusão
Restos que a feira deixou
E ainda é pouco só

Mas assim mesmo Zelão
Dizia sempre a sorrir
Que um pobre ajuda outro pobre
Até melhorar

Choveu, choveu
A chuva jogou seu barraco no chão
Nem foi possível salvar violão
Que acompanhou morro abaixo a canção
Das coisas todas que a chuva levou
Pedaços tristes do seu coração

Todo morro entendeu
Quando o Zelão chorou
Ninguém riu nem brincou
E era carnaval

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