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“Diziam pra todo mundo que o Clemente não ia sair dessa vivo”

“Codinome Clemente”, de Isa Albuquerque, é retrato completo de Carlos Eugênio Paz, um guerrilheiro arquetípico.
“Codinome Clemente”, de Isa Albuquerque, é retrato completo de Carlos Eugênio Paz, um guerrilheiro arquetípico. Por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Divulgação)

Carlos Eugênio Paz, o Clemente, estava marcado para morrer. Pela ditadura, que, perseguindo-o consistentemente, havia posto sua cabeça a prêmio; pelo próprio pai, que evitava as bancas de jornal e os rádios com o temor de dar de cara com a notícia da ida do filho; pelos companheiros, que previam que a proeza de ter sobrevivido anos onde deveria ter durado meses logo se esvairia, como antes ocorrera a Marighella e Câmara Ferreira. E pelo próprio Clemente, que decidiu que não se suicidaria, nem se entregaria, nem seria preso: se a morte na clandestinidade se aproximasse, na sombra de milicos e esbirros, o guerrilheiro rajaria sua matraca e a obrigaria a tomá-lo por inteiro.

Mas Clemente sobreviveu, e sua insistência em não morrer virou uma espécie de medalha de derrota para a ditadura, empurrando Carlos Eugênio, que faleceu em junho do ano passado, a passar seus dias de vida defendendo o legado de sua decisão, de sua organização, e de seus companheiros que, mortos, não podiam mais fazê-lo.

Leia também – Clemente, o imorrível

Codinome Clemente, documentário da maranhense Isa Albuquerque, é um retrato completo do guerrilheiro e comandante da Ação Libertadora Nacional (ALN). Exibido no 15º Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro, o filme acaba de ganhar dois prêmios: de melhor longa-metragem de acordo com o júri popular e melhor longa-metragem de acordo com o júri da Associação Brasileira de Críticos de Cinema. “A gente deu [o prêmio] pelo resgate de um personagem ímpar que abraçou a luta armada em um dos momentos mais tenebrosos da história do Brasil; a ditadura militar, claro”, justificou o roteirista Bertrand Lira, membro do júri da Abraccine.

Mais que um resgate, o filme dá vivacidade ao guerrilheiro Clemente e, em pouco mais de uma hora e meia, possibilita a Carlos Eugênio explicar em detalhes sua história, escolhas e motivos. “Eu sempre busco personagens que tenham três elementos: singularidade, originalidade e representatividade. Um personagem que seja algo como o representante máximo de um sentimento sobre certo contexto”, diz a diretora.

Codinome Clemente apresenta, assim, um personagem quase arquetípico dos anos de chumbo: não um militante, não um torturado, não um guerrilheiro, mas uma figura que decidiu pela luta armada antes da maioridade, que aos vinte-e-poucos anos já exercia função de comando na ALN e que, ao contrário das previsões, saiu daquela vivo.  

Há na obra entrevistas com ex-companheiros de Clemente, guerrilheiros de outras organizações e até arrependidos, mas estes não ocupam o palco nem transformam a película em um filme sobre a ditadura militar em abstrato. O foco nunca sai de Clemente, das razões que levaram um pré-adolescente alagoano no Rio de Janeiro a ingressar na organização de Carlos Marighella e se comprometer com a luta armada por anos, se tornando talvez o mais hábil combatente da organização. Em meio a numerosas ações espetaculares, destacam-se duas cenas: uma em que Clemente fala de seu pai, que a despeito de ter posições políticas conservadoras foi perturbado pela ditadura por anos, para que entregasse o filho; e outra na França, em que é pedido ao ex-guerrilheiro que explique seu passado para uma das amigas dos tempos de exílio – Carlos Eugênio irrompe disparando sua história, que passou incógnita aos amigos que fez na França, mas em português. “Os amigos dele [da França] não sabiam de nada daquilo direito, por isso quando houve exibição em Paris [no Festival du Cinéma Brésilien de Paris] ficaram muito emocionados”, relata a diretora.

A montagem e a edição, com vídeos de arquivo e animações, também merecem atenção: não servem só de firula visual, mas ajudam a reconstituir visualmente as ações e os fatos vividos pelo guerrilheiro, que explica e rememora em detalhes no filme. “[Nas animações] nós quisemos remeter às HQs, porque aquela geração tinha sido muito influenciada por elas, e porque havia muitos jovens, garotos, na luta armada – gente que entrou com 14 anos”, diz a diretora. O filme também conta com trilha sonora de David Tygel e Flávia Ventura, inspirada em quatro canções que Carlos Eugênio considerou representativas de seus tempos de luta armada: Panis Et Circenses e Ando Meio Desligado, dos Mutantes, Alegria, alegria, de Caetano Veloso, e Divino Maravilhoso, composição de Gilberto Gil e Caetano Veloso notabilizada na voz de Gal Costa.

A despeito da importância de Codinome Clemente e do árduo processo de filmagem e produção do filme, realizado por sete anos com escassos recursos, não há ainda previsão para lançamento oficial do documentário no país. Como centenas de outras produções, sua distribuição está impedida por falta de acesso a recursos do Fundo Setorial de Audiovisual que, a despeito de terem sido conquistados pelos produtores, estão parados na Ancine, a Agência Nacional de Cinema. 

Na última sexta-feira (18), o Ministério Público Federal entrou com uma ação de improbidade administrativa contra diretores da Ancine, pela paralisação de mais de quase 800 projetos referentes aos editais de 2016, 2017 e 2018. A ação acusa os diretores de ordenarem a interrupção do andamento de projetos audiovisuais, omitirem dados que comprovam a paralisia dos processos e recusarem-se a formalizar um acordo com o MPF para regularizar o passivo da agência. Até o imbróglio processual ser resolvido e os recursos serem liberados, a vida cinematográfica do guerrilheiro arquetípico se resumirá aos festivais.

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