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Os generais têm culpa e a farda está manchada

Se os generais não querem ter culpa, que renunciem a seus postos, incluindo a vice-presidência, afastando os receios sobre a sucessão.
Se os generais não querem ter culpa, que renunciem a seus postos, incluindo a vice-presidência, afastando os receios sobre a sucessão. Por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

Em algum momento de sua vida em campanha, Napoleão Bonaparte anotou: “os grandes oradores que dominam as assembleias com o brilho de suas palavras são, em geral, os políticos mais medíocres; não se deve combatê-los com palavras, pois eles sempre terão outras, mais pomposas do que as nossas; é preciso contrapor à sua eloquência um raciocínio estreito, lógico: a força deles está na falta de clareza; é preciso trazê-los à realidade dos fatos, já que o concreto os aniquila”. Impressionante é que, em meio à comoção pela “solução” impeachment, os homens de ação e organização sejam os que adornam com as palavras o vazio, e os homens de palavras sejam os que tentem oferecer o raciocínio estreito, lógico e concreto.

Há uma semana, Tarso Genro publicou um artigo de título imponente: “O culpado da mortandade não é o Exército. É Bolsonaro e seus políticos liberais e fascistas”. Aberto por oníricos parágrafos sobre a posse de Joe Biden nos Estados Unidos, figura que agrada o autor “porque ele me lembra mais os soldados russos e americanos libertando os campos de concentração da fera nazista e menos os EEUU imperial”, o texto busca dar sustentação precisamente ao que o título anuncia: que os militares não têm culpa por nada que foi feito no Brasil nos últimos dois anos.

Genro começa por um exemplo: Bolsonaro quer, com suas milícias, “que o país seja – no futuro – o que é o Rio de Janeiro hoje”. Os militares, pensa o autor, na sua ampla maioria não  o querem. Além disso, “parte das forças militares” pode até ter tido simpatia pelo golpe contra Dilma Rousseff em 2016, mas ele “não foi promovido por nenhuma delas”. E procede justificando que culpar os militares não é correto “nem tática nem estrategicamente”, e que “pode contribuir para dar maior opacidade à política, amortecendo as responsabilidades principais do que ocorre aqui, que não foi provocado pela instituição que, no fundamental, respeitou os protocolos mínimos republicanos da nação.” De acordo com o autor, culpar os militares “é errado, porque ajuda a extrema direita militar a se reorganizar na ativa e é errado porque Bolsonaro não representa nem de longe a moralidade média das FFAA […] e é errado, porque reduz a responsabilidade objetiva e subjetiva dos militares da reserva, dos políticos do entorno de Bolsonaro, das religiões do dinheiro que lhe dão sustentação e do consórcio midiático-empresarial que o elegeu presidente e ainda lhe mantém no poder”.

Quase que quebrando a fantasia, Tarso Genro revela, finalmente: “é errado […] porque é impossível construir República e Democracia no Brasil, sem que a maioria das Forças Armadas seja conquistada para um projeto de nação […]”. Arremata, enfim: “Trump se foi ameaçando voltar. Se no nosso país generoso, do samba, do riso e do futebol […] foi possível [a] Bolsonaro encarnar uma parte do espírito do nosso povo, não é absurdo Trump voltar. Mas sua expulsão da Casa Branca, em nome da vida e da lei, também indica que é possível tirar os néscios do governo, mesmo que eles aparentem ser fortes, para arquivá-los no lixo da nossa História.”

Em tempos como estes, convém seguir os conselhos de Bonaparte e opôr às pomposas palavras um pouco de concreto. Voltemos a 2016. Naquele ano, Michel Temer tomou a presidência por meio de um processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Assumiu como presidente interino no dia 12 de maio de 2016. E recriou o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), desmontado por Dilma, no mesmo dia. À frente do Gabinete pôs Sérgio Etchegoyen, quarta geração de uma família militar de longa tradição golpista. Matéria da Folha de São Paulo à época dizia: “Chefe do GSI nomeado por Temer é de ala que vê MST com preocupação”. E o Estadão informava mais tarde: “Temer pede para GSI monitorar PT”. Sob a batuta do GSI de Etchegoyen, o sistema de informações e arapongagem foi reestruturado no Brasil. Mas, de acordo com o próprio presidente, os “vários encontros” com o alto escalão militar eram anteriores à sua posse.

Dois anos depois, em 2018, o general Walter Souza Braga Netto (hoje ministro-chefe da Casa Civil, responsável pela articulação da presidência com o Congresso) foi nomeado interventor no Estado do Rio de Janeiro pelo mesmo presidente Temer, beneficiário do golpismo. O general Richard Nunes (atualmente Chefe do Centro de Comunicação Social do Exército que não gosta que jornalistas digam que os militares têm sangue derramado na sua marcha histórica) foi nomeado Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro. A intervenção federal não conseguiu impedir o assassinato da vereadora Marielle Franco, em março de 2018, nem elucidar o caso “até o fim de dezembro de 2018”, como havia prometido. Tampouco conseguiu impedir o avanço das milícias na cidade e no Estado. Talvez os militares não queiram, como gostaria Bolsonaro, que o Brasil se tornasse o Rio de Janeiro. Mas, tomando as experiências passadas, parece ser ingenuidade imaginar que seriam eles os responsáveis por impedir a transformação “do Brasil num Rio” – por vontade ou falta dela. A permanência crescente dos militares na vida política nacional, desde o golpe, sugere ainda que foram, sim, parte do consórcio golpista.

Em 2018 ocorreria também outro evento curioso, demonstrativo disso. Às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula, o general Villas Bôas, à época Comandante do Exército, iria ao Twitter fazer seus pronunciamentos, interpretados como ameaças ao Supremo. Seja lá o que tenha ocorrido, o fato é que o presidente Bolsonaro agradeceu especificamente a Villas Bôas depois de tomar posse, lançando a indecifrável frase: “Meu muito obrigado, Comandante Villas Bôas, o que nós já conversamos morrerá entre nós, mas o senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui.” Villas Bôas chorou.

A eleição de Bolsonaro ocorreu com um general como vice-presidente e amplo apoio no Exército. De fato, fez campanha nos quartéis – de onde fora chutado – por longos anos. Nunca, desde a ditadura militar, houve presença tão maciça das Forças Armadas em um governo – com militares da ativa e da reserva, liderando ministérios ou em outros postos. Até o Ministério da Saúde foi ocupado por um general da ativa, um especialista em logística incapaz de transportar oxigênio. E há quem negue responsabilidades. 

Talvez não seja possível construir “República e Democracia no Brasil” sem o apoio das Forças Armadas. Mas tampouco o será fechando os olhos para a realidade e para os movimentos dos generais. Se essa é a prerrogativa para conseguir tal apoio, não é o presidente que as Forças Armadas esperavam tutelar – somos nós, e elas já conseguiram.

“Todo tipo de indulgência para com os culpados denuncia uma conivência”, disse também Bonaparte. Serve para generais, serve para nós, serve até para os poucos militares que se envergonham das chagas impostas à farda pelos seus superiores, e que não se movimentarão isoladamente enquanto a responsabilidade de seus colegas fardados não for devidamente apontada. É certo que “é possível tirar os néscios do governo, mesmo que eles aparentem ser fortes”. O problema é que, apesar de néscio, Bolsonaro não é forte – mas está rodeado por quem é. Serve tão somente como um entreposto de poderes, e talvez por isso seja tão néscio. Para os militares, serviu como salvo-conduto para entrar no governo, em troca destes servirem para cobrir sua retaguarda de um possível processo de impeachment. Tirar Bolsonaro, em especial ignorando e abrindo caminho para a estupidez fardada, não é arquivar nada no lixo da História, mas estampar nela a ingenuidade de nossas prédicas vazias. Aos que de forma insistente olham aos Estados Unidos para entender o Brasil, convém lembrar que por lá as Forças Armadas ocuparam o Capitólio, sim, mas para defendê-lo. Em El Salvador, elas invadiram o Congresso; no Chile, ocuparam as ruas; na Bolívia, participaram do golpe; no Peru e no Equador, posaram em fotos ao lado dos presidentes quando estes estavam pressionados pelas ruas. Por aqui, que farão?

Se os militares não querem ter culpa, que renunciem a seus postos no governo, incluindo a vice-presidência, afastando portanto qualquer receio quanto à possível natureza sessentista deste 2021. É o mínimo a ser exigido por quem quer derrubar um presidente. Até lá, a farda seguirá manchada, pelo sangue e a vergonha do presente e as sombras do passado.

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