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Haiti, entre Biden e a parede

O Haiti atravessa uma profunda crise democrática tolerada por uma comunidade internacional que apenas declara “preocupação”.
O Haiti atravessa uma profunda crise democrática tolerada por uma comunidade internacional que apenas declara “preocupação”. Por Bárbara Ester e Nery Chaves García | CELAG – Tradução de Ciro Moreira para a Revista Opera, com revisão de Rebeca Ávila
O Palácio Nacional do Haiti, em Port au Prince, gravemente deteriorado após do terremoto de 2010. (Foto: arco Dormino / The United Nations United Nations Development Programme)

O Haiti vive uma crise permanente desde 2018, quando os protestos da sociedade civil e de toda a oposição eclodiram frente ao escândalo multimilionário de corrupção que o presidente em exercício e seu antecessor realizaram com os fundos do PetroCaribe [1]. Tendo governado por quatro dos cinco anos estipulados, praticamente todo o país unido pede que Jovenel Moïse encerre seu mandato em 7 de fevereiro de 2021. Ele assegura que não fará isso.

O cerne da questão se baseia na interpretação autêntica da Constituição Nacional, porque, atualmente, o chefe de Estado atribui todos os poderes a si, violando o artigo 150. Outros também defendem o artigo 134-2, que diz que a Constituição prevê uma antecipação do início do mandato presidencial se houver problemas com a recontagem de votos nas eleições. Isso se aplica às eleições de 2015, anuladas por fraude e realizadas novamente em 2016, mas deixa a critério se pode ser aplicado retroativamente para anular um governo que já cumpriu 4 anos de mandato, de crise e ilegitimidade permanente, mantido apenas pelo beneplácito internacional.

A tensão está crescendo, e à efervescência nas ruas juntam-se setores sindicais que convocaram uma greve geral em protesto contra a insegurança, com a exigência da saída de Moïse do Palácio Nacional. Moïse conta com um rechaço manifesto da oposição, da sociedade civil, movimentos campesinos, sindicatos, organizações territoriais, ONGs, câmaras empresariais e até a própria cúria da Igreja Católica. As instituições tampouco estão normalizadas, a saber:

  • Quatro primeiros-ministros nos últimos dois anos, entre eles Joseph Joute, nomeado inconstitucionalmente pelo presidente sem ratificação do Parlamento;
  • As eleições parlamentares previstas para 2018 foram suspensas diversas vezes. Diante da impossibilidade de ter uma representação oficial na Câmara Baixa e nos dois terços dos senadores que seriam renovados, Moïse decidiu fechar o Parlamento, governando por decreto desde janeiro de 2020;
  • O outro aspecto central da paupérrima qualidade democrática do governo haitiano foi o decreto presidencial que, sob a alegação de “fortalecimento da segurança pública”, criou a Agência Nacional de Inteligência (ANI), um corpo parapolicial com atribuições para reprimir protestos sociais legítimos.

Com o desgaste das instituições, ausência de contrapesos de poderes e a violência política, Moïse parece personificar as definições mais tradicionais de ditador, entendido como “pessoa que se apropria ou recebe todos os poderes políticos e, apoiada pela força, exerce-os sem limitação jurídica alguma”. O fato é tão escandaloso que o mesmo Core Group, integrado por embaixadores da Alemanha, Brasil, Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, União Europeia, o Representante Especial da Organização de Estados Americanos (OEA) e o Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas manifestou sua preocupação pela usurpação das competências do Legislativo. O comunicado alerta que as medidas do presidente “não parecem adequar-se a certos princípios fundamentais da democracia, do Estado de direito e dos direitos civis e políticos dos cidadãos” [2].

Haiti, Trump e a gangsterização

A grande pergunta é: como se sustenta no poder um presidente que tem tudo contra si? Para esboçar uma resposta, devemos ter em conta: 1 – As relações de Moïse com Donald Trump e 2 – o uso ilegítimo da violência mediante grupos paraestatais.

Em 2019, o governo atual rompeu relações com a Venezuela, de quem havia recebido petróleo a preços subsidiados por mais de uma década, o que provocou uma crise energética. No mesmo ano, Moïse reconheceu Juan Guaidó como presidente venezuelano e, no final de novembro de 2020, o Haiti foi o primeiro – e único – país americano a abrir uma embaixada no Saara Ocidental, reconhecendo a soberania marroquina sobre o território. Moïse não hesitou em adotar uma posição de subordinação total às aventuras políticas mais loucas de Donald Trump [3], ainda que com o rechaço da comunidade internacional e do Conselho de Segurança das Nações Unidas [4].

No dia 10 de dezembro de 2020, dia internacional dos Direitos Humanos, milhares de haitianos e haitianas participaram da “Manifestação pela Vida”. Nessa oportunidade, o arcebispo de Porto Príncipe, Monsenhor Max Leroy Mésidor [5], que foi o principal intermediador das negociações entre Moïse e a oposição, aproveitou a cerimônia para dirigir-se ao governo: “Enfrentamos um envenenamento da vida social mediante uma proliferação de atos de sequestro, bandidagem e terror (…). Nós já tivemos o suficiente. Basta.” [6]. Estas palavras são respaldadas por dados: a Rede Nacional dos Direitos Humanos cataloga 2020 como o ano da “gangsterização” acelerada no Haiti, caracterizada pela violação sistemática das liberdades fundamentais e individuais dos cidadãos. Estima-se que pelo menos mil pessoas foram sequestradas no Haiti durante 2020 e uma cifra similar morreu devido ao recrudescimento da violência [7].

A relação entre o governo e os grupos paramilitares foi sintetizada pelo jornalista Parker James, que advertiu em relação ao massacre de La Saline: “A aliança do G9 (gangue) teria se beneficiado de laços estreitos com o governo do presidente Jovenel Moïse. Parece que os líderes de gangues não são processados porque contribuem para manter a paz nos bairros que controlam. Em troca, o governo de Moïse encontrou neles soldados leais que reprimem a insegurança, abafam vozes da oposição e reforçam o apoio político na capital” [8].

Biden e a saída democrata

A derrota de Trump e a ascensão dos democratas encabeçados por Biden parecem forçar uma mudança na fachada institucional, o que não apenas estaria em sintonia com os últimos comunicados do Core Group, mas também com algumas sanções do Departamento de Tesouro estadunidense contra dois funcionários e um paramilitar[9][10]. Entretanto, não houve nenhuma sanção formal à Agência Nacional de Inteligência, isto é, contra a aplicação da doutrina de choque feita por forças-tarefa ou a “gangsterização” da sociedade.

Moïse, encurralado, aposta em um novo calendário eleitoral. Longe de ser uma solução ao conflito, concretamente, a proposta só pode oferecer uma mudança de imagem  dentro de uma democracia de baixa intensidade, a fraude eleitoral nos comícios de setembro, ou uma nova temporada – essa sim, com um rosto mais “humano” – das clássicas ocupações internacionais pelas Nações Unidas.

Em meio à incerteza política, Moïse afirmou que seu mandato termina em 2022 e promoveu uma reforma constitucional que seria submetida a um referendo no dia 25 de abril deste ano, antes das eleições gerais programadas para o dia 19 de setembro. Para isso, firmou um acordo de 20 milhões de dólares com o PNUD para capacitar especialistas e financiar alguns gastos eleitorais [11]. Tudo parece indicar que Biden e os democratas estão por trás do calendário eleitoral proposto [12].

Ao contrário de outros países latino-americanos, a reforma constitucional não é uma demanda popular. Vários partidos políticos e plataformas de oposição no Haiti criticaram o apoio da ONU e da OEA ao projeto eleitoral e à mudança constitucional do presidente Moïse. As estruturas reunidas na Diretoria da Oposição Política Democrática enviaram duas cartas aos organismos internacionais para denunciar que o chefe de Estado quer destruir a Constituição de 1987 e substituí-la por uma nova que se adapte às suas necessidades, já que a reforma propõe, entre outras medidas, a eliminação do Senado e do cargo de primeiro-ministro. Ele também tem dado passos que sinalizam buscar ganhar o apoio da diáspora, como a legalização da dupla nacionalidade e uma maior representação dos haitianos no exterior no Legislativo.

A mensagem não deixa margem para dúvidas: “a OEA e as Nações Unidas não devem encorajar um presidente a violar a Constituição de seu país” [13]. A atual Constituição proíbe explicitamente o uso de mecanismos consultivos para sua modificação. Mesmo assim, a OEA, a ONU e os Estados Unidos parecem não ouvir os protestos exigindo a saída de Moïse, nem parecem ver os corpos dos oponentes desmembrados com facões, os sequestros e as torturas. Infelizmente, o Haiti é a primeira amostra do que o revezamento presidencial norte-americano tem a oferecer para a América Latina.

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