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Ucrânia, 40 graus

Tratar da “guerra iminente” na Ucrânia sem considerar a guerra que já se desenrola há 8 anos é torcer pelo combate sem considerar a realidade.
Tratar da “guerra iminente” na Ucrânia sem considerar a guerra que já se desenrola há 8 anos é torcer pelo combate sem considerar a realidade. Por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Metal Chris)

Mais uma vez soam os tambores da guerra. Somos informados, pelos relatos midiáticos, de um impasse diplomático na Ucrânia, envolvendo a Rússia – que agrupa milhares de soldados na fronteira – e os Estados Unidos. Nas revistas especializadas, matérias se perguntam “quando a Rússia invadirá a Ucrânia?”, e mapas apontam os prováveis movimentos que as tropas russas fariam nos primeiros dias de sua iminente invasão.

Toda a discussão gira em torno dessa trindade de atores: Rússia, Estados Unidos e Ucrânia. Nos melhores casos, uma linha ou outra cita os interesses da União Europeia na região, ou a disposição guerrista do Canadá, em apoio a seu sempre aliado estadunidense. Mas um elemento chave, não por acaso, é deixado de lado: o Donbass.

A bacia do Donets, no extremo leste da Ucrânia, é a segunda região mais populosa do país. Se os russos decidissem avançar sobre a fronteira, lá seria o primeiro e provavelmente o último território em que pisariam. É conveniente “esquecer” da região e das 6,2 milhões pessoas que lá vivem, porque esse esquecimento permite pensar a atual tensão em termos de uma “soberania ucraniana” ameaçada pelas tropas russas na fronteira, em um conflito de caráter puramente geopolítico envolvendo duas grandes potências. Se não tomarmos em conta o Donbass e suas duas repúblicas, de Donetsk e Lugansk, é possível bradar em desespero sobre a guerra iminente – enquanto se ignora a guerra civil que se desenrola já há oito anos.

A questão nacional

A concepção de nação é fundamental para compreender a situação atual da Ucrânia. Ao contrário das Américas, onde a concepção de nação moderna foi fruto de um processo colonial que opunha claramente uma população nativa não-unificada e dominada a uma força colonial moderna dominante, o processo de construção nacional de outras regiões, como Europa e Ásia, é consideravelmente mais complexo, tendo idas e vindas constantes no choque de civilizações pré-modernas distintas e, na Idade Contemporânea, uma disputa não só entre os poderes coloniais, mas também entre civilizações regionais. China, Coreia, Japão e Índia são exemplos de nações que emergiram do combate entre civilizações e poderes regionais ao longo de milhares de anos.

A ocupação humana na Ucrânia remonta a aproximadamente 45 mil anos a.C, no período Paleolítico. No Neolítico, a cultura tripiliana se estendeu para o oeste e centro-oeste do atual país. Durante os séculos seguintes a região será disputada por cimérios, citas, sármatas (durante a Idade do Ferro até e por boa parte da Antiguidade) enquanto a região sudeste (região do Mar de Azov e do Mar Negro, importantes pontos comerciais para a integração do Leste Europeu com o Mediterrâneo) será disputada por colônias de gregos, romanos, bizantinos, godos e hunos.

Ao contrário dos vários povos que anteriormente disputaram a região, os eslavos – cuja primeira grande aparição foi no século 6, quando avançaram nas fronteiras do Império Bizantino –, mantiveram-se no Leste Europeu por séculos. Até o começo do século 7, eles manterão uma posição de domínio regional independente que será contestada pelos ávaros, depois derrotados pelos protobúlgaros e cazares. Em 620 d.C, os cazares assinarão um tratado com o Império Bizantino, que há pouco havia reestabelecido seu poder nas imediações do Mar Negro, especialmente na Crimeia. Essa aliança buscava assegurar, contra os avanços de persas e árabes, a rota do atual centro-oeste ucraniano até o Mar Negro, que tinha como fim Constantinopla; uma das mais importantes rotas comerciais do planeta à época.

No final do século 8 até a segunda metade do século 11, essa rota comercial, e o próprio Império Bizantino, enfrentará um novo inimigo: os vikings. Vindos da Suécia, Noruega e Dinamarca, eles controlarão largas porções de terra na região e, em 860, atacarão a capital bizantina. Eles serão chamados, como os eslavos, de Rus’.

À medida que os vikings Rus’ avançavam seu domínio na Ucrânia, desenvolvia-se a Rússia Quievana, confederação de povos eslavos do leste fundada em 822 por Oleg, que terá como capital Kiev. Ele será sucedido por Ígor I de Quieve, que firmou tratados com Constantinopla, Olga de Quieve e, finalmente, por Esvetoslau I de Quieve, que apesar de um curto reinado, avançará campanhas militares contra os cazares em direção ao leste, e nos Balcãs contra os protobúlgaros. Como nota o historiador ucraniano-americano Serhii Plokhy, os líderes quievanos, “apesar de todo o poder que conquistaram em Kiev e sobre vastas florestas ao norte da cidade, não conseguiram estabelecer controle absoluto das estepes, nem sequer uma passagem segura por elas. Isso tornou impossível aos líderes quievanos assegurar as costas do Mar Negro e aproveitar completamente as oportunidades, tanto econômicas quanto culturais, oferecidas pelo mundo mediterrâneo. Derrotar os cazares não foi suficiente para abrir o caminho aos mares”.

As duas próximas gerações de líderes quievanos operarão uma mudança considerável em relação ao Império Bizantino: ao invés da tensão entre comércio e guerra, com vistas a se aproximar ao máximo de Constantinopla, Vladimir I de Quieve, após retomar territórios dos cazares e combater os pechenegues ao sul, avançou sobre a Crimeia – controlada pelos bizantinos – e exigiu a mão da irmã do imperador Basílio II. O casamento seria arranjado contanto que Vladimir aceitasse o cristianismo. Assim começou o processo de cristianização da Ucrânia, assegurando uma aliança mais permanente com o Império Bizantino e abrindo a região para a influência cultural e política do Mediterrâneo.

Essa aliança e influência se desenvolverá especialmente sob o reinado de Jaroslau I, “O Sábio”, filho de Vladimir, que iniciará a alfabetização na Rússia Quievana sob a língua eslava eclesiástica e a escrita de um código legal, e sob o posterior triunvirato de seus filhos Iziaslau I, Esvetoslau II e Usevolodo I, que governariam até o final do século 11. No século 12, a Rússia Quievana viverá um longo período de instabilidade política. Entre 1132 e 1169, uma sucessão de golpes fará com que o trono seja ocupado por oito líderes diferentes. Até que André I de Vladimir, príncipe de Vladimir-Susdália, toma Kiev.

O processo de cristianização e de abertura às influências bizantinas, e os processos subsequentes de alfabetização, abertura de igrejas, definição de um código legal, etc., possibilitaram uma homogeneização maior dos povos da região, mas aumentaram a fragmentação política numa disputa pelo poder lançada pelos príncipes regionais. O “confronto” poderia ser resumido em três principados: o de Vladimir-Susdália, associado histórica e geograficamente à Rússia; o de Polatsk, associado a Belarus, e o de Galícia-Volínia, associado à formação da identidade e do projeto nacional ucraniano. A essa disputas internas entre os principados da Rússia Quievana se somou, em 1240, uma onda de invasões, a partir do leste, da Horda de Ouro mongol, que no dia 7 de dezembro daquele ano chegaria a Kiev. “De várias formas, a invasão mongol de Rus’ marcou o retorno das estepes como a força dominante na política, economia, e, em parte, cultura regionais. Ela pôs um fim à independência das sociedades e governos baseados nas florestas e unificados por algum tempo pelos limites territoriais da Rússia Quievana e a sua capacidade de manter laços com litoral do Mar Negro (principalmente a Crimeia) e o mundo mediterrâneo”, escreve Plokhy.

Sob o domínio mongol, seriam reconhecidos os principados de Vladimir-Susdália e Galícia-Volínia. No primeiro, hoje Rússia, o domínio mongol seria mais inflexível, e duraria até o século 15. Na Galícia-Volínia, no entanto, o domínio mongol era menos opressivo, e teria menor duração. A relação dos principados com os mongóis também se diferenciaria de acordo com seus líderes. Na Crônica Primária, compilação de textos da Idade Média que servem como fonte historiográfica do desenvolvimento da região, Miguel I de Czernicóvia, da região centro-oeste da atual Ucrânia, renega completamente a dominação mongol e é morto; Jaroslau II de Vladimir-Susdália aceita plenamente o domínio mongol, e Daniel da Galícia, aceitando a suserania da Horda de Ouro, trabalha nos bastidores para combatê-la. De fato, o legado histórico de Daniel, na região da Galícia-Volínia (oeste e noroeste ucraniano, incluindo partes da atual Polônia e Belarus), será associado não só à recuperação de seus territórios e resistência frente aos mongóis, mas também à aproximação com o Vaticano, uma política externa visando alianças para combater os mongóis e uma abertura cultural à Europa Central. Tendo estabelecido sua capital em Kholm (atualmente Polônia), abriu a região a colonos poloneses e germânicos, além de Rus’ de outras tribos, formando novas cidades (como Lviv) e fortificando outras. “Os mongóis eram uma poderosa mas ausente força nas terras  ucranianas durante a metade do século 13, e os líderes de Galícia-Volínia estavam ansiosos para se aproveitar dessa circunstância”, escreve Plokhy. “A invasão mongol e sua prolongada presença nas estepes pônticas confrontaram as elites Rus’ pela primeira vez com o dilema de escolher entre o leste, representado tanto pelos nômades das estepes quanto pela tradição cristã bizantina, e o oeste, incorporado pelos líderes da Europa Central que reconheciam a autoridade eclesiástica do papa. Se encontrando pela primeira vez na maior linha vermelha política e cultural da Europa, as elites pós-Quievanas dos territórios da moderna Ucrânia buscaram um equilíbrio que prolongou a sua independência de facto frente tanto ao leste quanto ao oeste pelo próximo século”.

Apesar de Daniel ter avançado sua política de alianças com os poderes europeus, casando uma de suas filhas com o rei da Hungria e outra com o rei da Áustria, o apoio necessário para combater os mongóis – representado numa bula papal que conclamava todos os poderes europeus a uma cruzada contra a Horda de Ouro – nunca se materializou. Daniel chegou a reconquistar partes da Podólia e da Volínia, mas quando os mongóis revidaram, seus apelos por apoio europeu foram ignorados, e o líder da Galícia-Volínia ao fim foi obrigado a participar de campanhas, ao lado dos mongóis, contra os lituanos e os polacos.

Em 1323, os dois filhos do príncipe Daniel foram mortos. O principado da Galícia-Volínia ficou sem sucessores, sendo tomada pelo príncipe polaco Boleslau da Mazóvia que, convertido à Ortodoxia, se tornará Yuri I da Galícia. Seu reinado, no entanto, será curto: em 1340 será envenenado por aristocratas Rus’ que ressentinham o líder por ignorar seus interesses e buscar aconselhamento junto a representantes trazidos da Polônia. A região ficará sob controle dos boiardos – os aristocratas regionais – por algum tempo, mas em breve a Galícia-Volínia seria separada: a Galícia e parte de Podólia ficariam com a Polônia e a Volínia com o Grão-Ducado da Lituânia.

Nas regiões controladas pela Polônia, a aristocracia regional perderia seu poder; um processo de aculturamento agressivo seria levado adiante; a Ortodoxia passaria a competir com o catolicismo e os pequenos artesãos Rus’ seriam expulsos. Na região controlada pelo Grão-Ducado da Lituânia, que incluía Kiev, a influência política, as tradições culturais e o status social das elites locais seriam mais ou menos preservados.

Entre os séculos 14 até o 16, uma série de acordos serão firmados entre os lituanos e os polacos, dando luz à União de Lublin, em 1569, pela qual foi criada a República das Duas Nações (ou Comunidade Polaco-Lituana). Pelo acordo, o território dos dois Estados – que incluía boa parte da atual Ucrânia, Belarus, Letônia, Estônia e parte da Rússia ocidental – ficava unificado sob um só monarca, eleito por uma assembleia de nobres (Dieta).

A pressão por uma unificação tinha razões geopolíticas. O principado de Vladimir-Susdália, submetido ao domínio mongol no século 13, vinha se desenvolvendo sob o governo de ruríquidas herdeiros da Rússia Quievana, em parceria com a Horda de Ouro. Sob o reinado de Ivã I, que transferiria a capital de seu principado de Vladimir a Moscou, os ruríquidas avançaram sua projeção regional. No século 15, os príncipes da Moscóvia passaram a unificar seus domínios sob a liderança do grão-príncipe Ivan III, o primeiro dos czares, que conquistaria Novogárdia Magna, Turóvia, Resânia, Rostov, Iaroslavi, derrotaria os mongóis e os tártaros e avançaria rumo a oeste, com o objetivo de retomar as antigas terras Quievanas, pressionando os lituanos. Ao fim de seu governo, o Grão-Principado de Moscou havia triplicado seu tamanho. No século seguinte, Ivã IV “O Terrível” da Rússia avançaria sobre a Livônia, dando início a uma guerra que duraria 25 anos e envolveria a Suécia, Dinamarca, Lituânia e Polônia.

Uma outra mudança geopolítica importante se desenvolveria no século 15, implicando grandes transformações no Leste Europeu. A ascensão do Império Otomano e a derrota dos bizantinos com a conquista de Constantinopla, em 1453, transferiu o domínio das costas do Mar Negro e Azov para os turcos. A Crimeia, território independente da Horda de Ouro a partir de 1449, se tornaria vassala do Império Otomano em 1478. Com isso, a demanda otomana por escravos seria atendida por crescentes expedições de tártaros e nogais nas estepes ucranianas e na parte sudeste do Grão-Principado de Moscou. Entre 1,5 e 3 milhões de ucranianos e russos foram capturados e enviados para os portos turcomanos na Crimeia entre os séculos 16 e 17. Em função dessa demanda comercial, o século 16 testemunhará a ascensão dos cossacos, camponeses vindos dos latifúndios do oeste fugindo da “segunda servidão”, que atacarão constantemente as linhas logísticas e comerciais que levavam à Crimeia, saqueando tudo o que podiam e libertando os escravos. Não se tem informações seguras sobre a origem étnica dos cossacos; tudo leva a crer que eles se diferenciaram historicamente de outros povos em função de sua origem de classe e do desenvolvimento de um modo de vida e de demandas políticas específicas (guerreiros e saqueadores com um sistema de “democracia militar” no qual as decisões eram tomadas em conjunto e os líderes militares eleitos – se ao final de uma guerra os cossacos considerassem que seu líder agiu contra os seus interesses, eles poderiam votar por sua morte).

Ironicamente, é somente nesse contexto, com o gérmen do Império Russo (com origem em Kiev) crescendo a leste, o domínio otomano se estendendo ao sul e a região da Galícia-Volínia submetida à Comunidade Polaco-Lituana, que o conceito de uma nação ucraniana começará a nascer. Como Plokhy anota em seu The Gates of Europe – lançado em função da atual Guerra Civil na Ucrânia e muito elogiado por diplomatas norte-americanos –, “a União de Lublin criou um novo espaço político de domínio e exploração principalmente pela elite principesca ortodoxa, que, ao invés de perder seu prestígio e poder em função da União, na realidade os aumentou. À medida que os intelectuais associados aos príncipes começaram a preencher esse espaço [político] com conteúdo relacionado às ambições políticas de seus mestres, eles olharam à história buscando comparações e precedentes, como as atividades de Vladimir ‘O Grande’, Jaroslau ‘O Sábio’ e Daniel da Galícia. Por meio de sua atenção ao passado, eles estavam de fato criando algo novo. Sua invenção eventualmente se tornaria ‘Ucrânia’, um termo que apareceu na região pela primeira vez durante o reavivamento do poder principesco do século 16.”

Se os séculos 14, 15 e 16 significarão, para o atual território ucraniano, a ascensão de novos poderes, os séculos 17 e 18 serão de conflito por hegemonia e controle territorial entre esses poderes. Os cossacos, que haviam aparecido no cenário político no século 16, se conformarão como uma força em disputa no século 17, com o apoio do Império Otomano. Em 1648 ocorre a Grande Rebelião Cossaca contra o domínio polaco-lituano, liderada por Bohdan Khmelnytsky, que além das demandas sociais e políticas dos cossacos (especialmente pelo seu reconhecimento como um poder autônomo com território próprio), tinha como pano de fundo questões religiosas, já que desde a União de Brest (1595-1596) o domínio polaco havia submetido seus territórios à catolização, em oposição à ortodoxia (criando com isso o fenômeno da Igreja Uniata, ou Igreja Greco-Católica Ucraniana, de liturgia bizantina). Grandes latifundiários, nobres poloneses, padres católicos e judeus seriam perseguidos e mortos durante a rebelião de Khmelnytsky.

Apesar das rebeliões cossacas serem efetivas, terminando com ganhos territoriais e a consolidação do  governo do Atamanato Cossaco, os antigos saqueadores das estepes não conseguiam garantir a permanência de seu poder sem o apoio de outras forças. Tendo sido apoiados pelo Império Otomano e os Tártaros da Crimeia em sua primeira revolta contra os poloneses, e buscando apoio no principado da Moldávia a partir de 1650, no dia 8 de janeiro de 1654 os cossacos jurarão obediência à Moscóvia, reconhecendo o czar como soberano da Ucrânia. O princípio de que o futuro de toda aliança é a dissolução da aliança se mostrava claramente nesse caso: cada vez que os cossacos avançavam contra um dos atores, abriam caminho para outro; o que os levava sempre a uma desesperada tentativa de reconciliação com o poder que haviam atacado ou com um terceiro ator, e assim sucessivamente. Em 1655, o padrão se repetiu: com o apoio de Moscou, os cossacos avançaram sobre o território polaco-lituano, chegando até Vilnius, capital do Ducado da Lituânia. Poucos meses depois, os suecos avançaram contra a Varsóvia e a Cracóvia. Desesperada, a Comunidade Polaco-Lituana assinou um acordo com Moscou em 1656, sem a participação dos cossacos, para dar fim à guerra. Em 1667, os dois reinados assinarão o Tratado de Andrusovo, dividindo o Atamanato Cossaco entre a Margem esquerda da Ucrânia (ao leste do rio Dniepre, e submetidos a Moscou) e a Margem direita da Ucrânia (a oeste do rio Dniepre, e submetidos à Comunidade Polaco-Lituana).

A necessidade dos cossacos se apoiarem em algum dos “grandes poderes” para manter seu governo, além dos vaivéns nas alianças, fracionou seu movimento. Ao longo dos séculos, a “preferência” cossaca por um ou outro poder envolverá uma luta ideológica, cultural e historiográfica interna; cada um dos grupos cossacos argumentando em favor da submissão a um dos poderes. A última tentativa de reunificar as Margens Esquerda e Direita será feita por Ivan Mazepa, que durante a Grande Guerra do Norte apoiará os suecos contra os russos, mas se exilará na Moldávia em 1709, antes da vitória dos russos em 1721 – com apoio majoritário dos cossacos. Após a vitória, Pedro “O Grande” fundará o Império Russo, centralizando mais o poder ao passo que abria o país à modernização ocidental. A autonomia do Atamanato diminuirá à medida que ele é integrado ao Império Russo. Ao fim do século 18, sob o governo da imperatriz Catarina II, o Império Russo terá consolidado em absoluto seus avanços do começo do século: o Atamanato será abolido, com seu território plenamente integrado ao Império; os otomanos serão expulsos da região do Mar Negro e Mar de Azov e o Império dominará todo o sudeste ucraniano; e a Comunidade Polaco-Lituana será destruída com a partição da Polônia, levada a cabo pelo Império Russo, o Reino da Prússia e a Monarquia de Habsburgo.

Se o século 18 foi o dos impérios, o 19 será o do nacionalismo. O nacionalismo russo, baseado na autocracia, na Ortodoxia e na nacionalidade, incluíra ucranianos, bielorussos e até poloneses como parte de uma só Rússia. Não se tratava somente de uma justificação para o domínio, mas a atualização de um conceito que já emergira nos dois séculos anteriores, e que se fundamentava na origem compartilhada dos quatro povos (a Rússia Quievana, no caso de ucranianos, bielorussos e russos, e a origem eslava comum entre estes e os poloneses). Também entre os nacionalistas ucranianos, que reivindicavam o Atamanato como a pedra fundante de seu país, havia divisões entre aqueles que consideravam a Ucrânia uma Nação em si, separada das demais, e os que consideravam uma Nação com origens e destino compartilhados com os russos. A clandestina Irmandade dos Santos Cirilo e Metódio, por exemplo – a primeira organização nacionalista ucraniana – advogava a transformação do Império Russo em uma confederação de repúblicas com direitos iguais. A Irmandade será mesmo assim considerada “ucranófila” e destruída pelo Império em 1848, que também liquidará a Igreja Uniata.

Na Galícia, surgirá, com o apoio da Monarquia de Habsburgo, outra organização nacionalista ucraniana: o Conselho Supremo Rutênio. Ao contrário da Irmandade, o Conselho, pelo apoio da monarquia austríaca, era um movimento legal com ampla membresia, e que chegará a formar o primeiro jornal ucraniano. Para os austríacos, estimular o movimento nacionalista ucraniano era uma forma de contrabalancear o nacionalismo polaco. O próprio governador austríaco da Galícia, o conde Franz Stadion, anotou que o Conselho era “uma forma de paralisar a influência polonesa e conseguir apoio para o domínio austríaco na Galícia”.

Essas divisões ficarão claras nos anos 1850, quando atingiram a “Tríade Rutena”, grupo literário nacionalista formado por Yakiv Holovatsky, Markiyan Shashkevych e Ivan Vahylevych: o primeiro adotou a orientação “russófila” (isto é, a percepção de que os ucranianos da Galícia eram parte da nação russa); o segundo a “ucranófila” (a ideia da Ucrânia como uma nação única, separada das outras); e o terceiro a orientação pró-polonesa. Essa disputa se desenvolveria também na escolha do alfabeto usado nos escritos: o uso do cirílico tradicional, associado à antiga língua eslava eclesiástica; o cirílico cívico, similar ao usado no Império Russo, ou o alfabeto latino, associado aos poloneses.

Preocupado com o avanço dos “ucranófilos”, o Império Russo banirá textos escritos na língua ucraniana em 1863 – proibição que se estenderá até o começo do século 20. De fato, a medida só aumentou a importância da Galícia para o movimento nacionalista: impossibilitados de distribuir sua produção em ucraniano no Império Russo, os escritores escreverão sob a sombra da monarquia austríaca. Uma nova onda de nacionalistas “russófilos” avançará na Galícia após a reforma constitucional de 1867 da Monarquia de Habsburgo, que estabeleceu uma monarquia dual entre Hungria e Áustria. Como escreve Plohtky, “o reino da Hungria conquistou seu próprio parlamento e ampla autonomia, ligados ao resto do império pela pessoa do imperador e uma política externa e militar comum. Mas os húngaros não foram a única nacionalidade beneficiada: poloneses e croatas também obtiveram autonomia. […] Os líderes do movimento ucraniano se sentiram traídos: os Habsburgos puniram sua lealdade enquanto premiavam as nacionalidades rebeldes. O compromisso de 1867 soou como uma sentença de morte para o domínio da hierarquia da igreja e os velhos rutenos. Ele fortaleceu o movimento russófilo, cujos líderes […] argumentavam que os rutenos não conseguiram nada por sua lealdade e tinham que mudar sua atitude em relação ao governo se quisessem resistir à polonização.”

O século 19 também significou mudanças violentas na Rússia. Os avanços do Império sobre o sudeste da Ucrânia e a região do Mar Negro, vistos com desconfiança pelos países centrais europeus, levará à Guerra da Crimeia (1853-1856), na qual o Império Russo combateu contra ingleses, franceses, italianos, austríacos e otomanos. A derrota russa obrigou o futuro czar Alexandre II a buscar uma profunda modernização econômica, cultural e militar da sociedade russa. Esse processo se conformaria no final do século 19 e começo do 20, e mudaria completamente o panorama ucraniano.

A construção de ferrovias criou uma malha segura para o envio da produção do norte da Ucrânia aos portos do Mar Negro, e possibilitou um veloz processo de urbanização e industrialização. Kiev passou de 25 mil habitantes em 1830 para 250 mil em 1900; no sul, a região de Odessa cresceu de 25 mil habitantes em 1814 para 450 mil em 1900. Uma parte considerável desses novos habitantes, que se tornariam trabalhadores industriais ou camponeses integrados à malha comercial do Mediterrâneo, residia originalmente no oeste ucraniano, mas migravam à medida que a Galícia se tornava a província mais pobre do império. Outra parte era composta de russos, que haviam deixado suas cidades na fronteira ocidental do atual país. A modernização do sudeste ucraniano trouxe em si a luta de classes moderna para a Ucrânia.

Três dias após o “Domingo Sangrento”, quando as tropas czaristas de São Petesburgo atiraram contra trabalhadores grevistas liderados pelo padre Gapon, em 1905, milhares de trabalhadores em Kiev, Denipropetrovsk e na região do Donbass entraram em greve. No norte, nas estepes e no antigo território do Atamanato, os camponeses também se rebelaram, derrubando árvores nas florestas dos nobres e atacando suas mansões. 

Nação e revolução

A revolução russa de 1905 não mudou a essência do Império Russo, nem destituiu o czar, mas forçou a adoção de uma nova Constituição e a convocação de uma assembleia (a Primeira Duma, que seria dissolvida em poucas semanas). Apesar dos reveses, 1905 foi um ponto de virada na história da organização política na Rússia e no Leste Europeu.

De acordo com a Constituição de 1906, o Estado russo era “um e indivisível”; a língua russa era a linguagem comum do Estado, com uso obrigatório em todas as instituições públicas, e o uso de “línguas locais (regionais) e dialetos em estados e instituições públicas são determinadas por legislações especiais”. O Grande Ducado da Finlândia, “apesar de compreender uma parte inseparável do Estado russo, é regido em seus assuntos internos por decretos especiais baseados em legislação especial”.

A questão ucraniana – bem como a bielorussa, a georgiana, a estoniana, etc. – não eram tratadas pela nova Constituição, e após a Revolução Bolchevique de 1917, as demandas nacionais ainda eram uma questão em aberto.

Em um artigo de 1913, “Os cadetes e a questão da Ucrânia”, Lênin denunciou as “provocações chauvinistas dos ucranianos por ‘separatismo’” em um artigo publicado no Rech, jornal do Partido Constitucional Democrático. De acordo com ele, o autor do artigo “perdeu todo o senso de decência política elementar quando lançou sua invectiva grosseira extraída do léxico das Centenas Negras”. O alvo da polêmica em questão era Mykola Mikhnovsky. Descendente de cossacos, Mikhnovsky foi o fundador do primeiro partido político ucraniano, o Partido Revolucionário Ucraniano (RUP), organização que tendeu à esquerda (depois se transformando no Partido Trabalhista Social-Democrata Ucraniano) mas enraizada fundamentalmente em um nacionalismo ucraniano radical. Na visão do Mikhnovsky, a sua geração deveria “criar sua própria ideologia nacional ucraniana para lutar pela libertação da Nação e a criação de seu próprio Estado […] Em contraste com o internacionalismo e o socialismo revolucionário de Moscou, nosso caminho é o do individualismo e do nacionalismo revolucionário”. Em 1902, Mikhnovsky deixará seu partido para organizar o Partido do Povo Ucraniano, cujo programa proclamava os judeus, poloneses e russos como “inimigos que nos dominaram e exploraram”.

Mas Mikhnovsky não era o único representante ucraniano de uma esquerda com tendências nacionalistas radicais. O Partido Trabalhista Social-Democrata Ucraniano (PTSDU), ligado ao Partido Social-Democrata da Alemanha, foi um partido marxista de orientação nacionalista que promulgava a necessidade da autonomia nacional e cultural ucraniana. Nos meses após a Revolução de 1905, o partido tenta se unir ao Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR),  e no 4º Congresso levanta a tese de que o POSDR deveria reconhecer a autonomia ucraniana, adotar um dos membros do partido como um representante no comitê central do POSDR e aceitar o PTSDU como único representante do proletariado ucraniano. As reivindicações são negadas.

A postura dos bolcheviques sobre a questão ucraniana, expressa nos artigos de Lênin, era de denúncia à opressão tsarista sobre o país, de reconhecimento de que o destino de uma república proletária deveria ser decidida por seu povo e de confrontação com as posições nacionalistas (ucranianas ou grão-russas). Isto é: somente os ucranianos, num processo revolucionário, poderiam decidir que tipo de relação seu Estado manteria com a Rússia soviética – se seria um Estado completamente independente, se faria parte de uma federação, e, no caso de optar por uma federação, que tipo de relações ligariam estes dois Estados. No entanto, a defesa do direito dos ucranianos decidirem seu destino não implicava abrir mão da discussão sobre esse destino. “Os trabalhadores com consciência de classe não advogam pela secessão. Eles sabem das vantagens dos grandes estados e da amálgama de amplas massas de trabalhadores. Mas grandes estados só podem ser democráticos se houver completa igualdade entre as nações; isso implica o direito à secessão. A luta contra a opressão nacional e os privilégios nacionais é inseparável da defesa desse direito”, escreveu Lênin em 1914. 

Em uma polêmica com o bispo Nikon, deputado na Duma Estatal, Lênin denuncia novamente o nacionalismo ucraniano. O bispo havia assinado uma lei para assegurar o ensino da língua e história ucraniana nas escolas, e a livre existência de organizações políticas e associações ucranianas. Diz Lênin: “O bispo Nikon está certo em assumir que a questão levantada por ele ‘tem grande importância, e concerne a perversão de 37 milhões de ucranianos’ […] O protesto contra a opressão dos ucranianos pelos grão-russos é perfeitamente justa. Mas olhemos aos argumentos do bispo Nikon em defesa das demandas ucranianas: ‘O povo ucraniano não busca nenhum tipo desta notória autonomia […] os ucranianos não são separatistas […] os ucranianos não são um povo de origem estrangeira, eles são nosso povo, nossos irmãos de sangue, e como tais não deveriam sofrer nenhuma limitação no que diz respeito à sua língua e ao desenvolvimento de sua cultura nacional; de outra forma estaremos equalizando eles, nossos irmãos, aos judeus, poloneses, georgianos e outros, que de fato são povos de origem estrangeira’. Então se resume a isso – o bispo ucraniano Nikon e outros da sua escola de pensamento estão implorando aos proprietários de terra grão-russos para que assegurem privilégios aos ucranianos sob o argumento de que eles são seus irmãos, enquanto os judeus são um povo de origem estrangeira! Para colocar de forma simples e direta – porque os judeus e outros povos são de origem estrangeira nós concordaremos em oprimi-los, contanto que vocês [grão-russos] façam concessões a nós. A imagem é a familiar defesa da ‘cultura nacional’ de todos os nacionalistas burgueses, das Centenas Negras aos liberais, e até dos nacionalistas democrático-burgueses! O que o bispo Nikon se recusa a entender é que os ucranianos não podem ser protegidos da opressão a não ser que todos os povos, sem exceção, sejam protegidos de toda a opressão, a não ser que o conceito de ‘povos de origem estrangeira’ seja completamente expurgado da vida estatal, a não ser que a completa igualdade de direitos de todas as nacionalidades seja mantida”.

As “concessões” de Lênin sobre o direito à autodeterminação ucraniana não eram compartilhadas por Rosa Luxemburgo. No seu livro sobre a Revolução Russa, escrito em 1918, ela diz que “os bolcheviques são, em parte, responsáveis pelo fato de que a derrota militar foi transformada no colapso e partição da Rússia. Mais ainda, os bolcheviques, em grande parte, aumentaram as dificuldades objetivas dessa situação por meio de uma palavra de ordem que colocaram no primeiro plano de suas políticas: o chamado direito à autodeterminação dos povos, ou – algo que realmente era implícito neste slogan – a desintegração da Rússia.” Para Rosa, o nacionalismo dos “canalhas da Ucrânia” era “um tanto diferente dos nacionalismos tcheco, polaco ou finlandês, no sentido de que foi um mero capricho, uma loucura de algumas dezenas de intelectuais pequeno-burgueses sem o menor enraizamento nas relações econômicas, políticas ou psicológicas do país; não tinha nenhuma tradição histórica, já que a Ucrânia nunca formou uma nação ou um governo, não tinha nenhuma cultura nacional, exceto pelos poemas reacionários-românticos de Shevschenk

O fato é que, em grande parte, o território da Ucrânia já estava dividido nas linhas de sua própria história. Se no leste e sudeste a industrialização, sob a égide do Império Russo, havia criado uma importante classe proletária, que, como Rosa lembra, “fora o centro, a fortaleza do movimento revolucionário da Rússia”, no oeste essa não era a realidade. A região não só era mais pobre, sua classe camponesa mais importante, e seu movimento nacionalista mais duro (herança de alguns séculos), como o território também estava submetido à influência alemã e polonesa, cujo domínio remetia a séculos anteriores. Não sabemos até que ponto Lênin entendera a questão nestes termos, mas o fato é que, abrindo ou não mão do seu “hobby” (como Rosa chamou) sobre a autodeterminação da Ucrânia, a aliança entre a população ucraniana (especialmente a do oeste) com os alemães, contra os soviéticos, era previsível; e só poderia ser resolvida pela força, com ou sem apelos à autodeterminação. Pode ser que falar em autodeterminação fosse participar da “farsa burlesca de um par de professores universitários e estudantes”, como Rosa colocou; mas não participar nela não implicaria que esse “par de professores universitários” deixassem de acreditar e propagar sua farsa, nem faria com que a Alemanha e a Polônia não a aproveitassem.

Assim, como escreve Moniz Bandeira, “Lenin sustentou a decisão de conceder a autodeterminação às nacionalidades. Em 10 de março de 1919, o 3° Congresso dos Sovietes da Ucrânia mudou o nome da República Soviética do Povo Ucraniano (1917–1918), com a capital em Kharkov (Khirkiv), para República Socialista Soviética da Ucrânia, que se tornou tecnicamente um Estado independente, com seu próprio governo, enquanto a República Popular da Ucrânia Ocidental, que existiu na Galitzia, entre fins de 1918 e começo de 1919, se fundia com a República Nacional da Ucrânia sob o nome de República Popular da Ucrânia (Zapadnoukrajinska Narodna Republika), com apenas 4 milhões de habitantes, sob o comando do nacionalista Symon Petlyura (1879–1926), que continuou a guerra contra o Exército Vermelho, apoiado por forças da Polônia, sob a ditadura do marechal Józef Klemens Piłsudski (1867–1935). […] Entre 13 de junho de 1920 e março de 1921, o Exército Vermelho, com cerca de 3,5 milhões de efetivos, muito bem organizados e disciplinados, sob o comando do general Mikhail N. Tukhachevsky (1893–1937), cercou e capturou Kiev, então dominada pelas forças de Józef Pilsudisky (1867–1935), ditador da Polônia, que reconheceu a soberania da Rússia sobre toda a Ucrânia até Donbass e a Bielorrússia, ao celebrar o Tratado de Riga (1921), terminando a guerra. E, em 30 de dezembro de 1922, a Ucrânia, ainda a padecer da devastação causada pela guerra civil e assolada pela fome, somou-se como Estado, denominado República Soviética Socialista, às Repúblicas Soviéticas da Rússia, Bielorrússia e Transcaucásia, na formação da União Soviética. O governo então lhe transferiu a região da Novorossiisk [Novorrússia], que se estendia sobre Kharkov, Donetsk, Luhansk, Zaporizhia, Kherson, Dnepropetrovsk, Mykolaiv e Odessa, região onde enorme parte dos habitantes era russa ou de origem russa. O objetivo do governo bolchevique, ao transferir-lhe a Novorossiya, uma zona mais industrializada, foi, ao que consta, equilibrar o poder na nova república soviética, com maior número de operários, dado que o oeste, à margem direita do Dnieper, era predominantemente rural e os camponeses e setores nacionalistas pequeno-burgueses lá prevaleciam.”

Assim como na Primeira Guerra, na Segunda Guerra Mundial o ultranacionalismo ucraniano também seria aproveitado pela Alemanha. Antes da Operação Barbarossa, o chefe da NKVD na Ucrânia, Pavel Y. Meshik, “manifestou a Moscou o receio de que os nacionalistas ucranianos viessem a formar a quinta-coluna, em caso de invasão pelas forças do III Reich, possibilidade sobre a qual rumores já estavam a ocorrer. […] Adiantou ainda a ocorrência de rumores sobre a ida de 200 ativistas nacionalistas ucranianos para Berlim, a fim de fazerem cursos especiais de como administrar uma ‘Ucrânia independente’, e que mais de 1.000 grupos formados por elementos criminosos e fortemente armados, sob a liderança de Stepan Andriyovych Bandera (1909–1959), já estavam preparados para engajar-se em atividades contra a União Soviética […] Em tais circunstâncias, parte da população não só saudou como libertadoras as tropas da Wehrmacht, como lutou ao seu lado contra a União Soviética. Mais de 100.000 ucranianos colaboraram com os nazistas, integraram a polícia local (Schutzmannschgaften), ideologicamente motivados, e formaram várias unidades dentro das Waffen-SS e Wehrmacht, entre as quais a Divisão SS-Galichina, a 14ª Divisão de Voluntários SS (Galizien Division) e os batalhões Nachtigal e Roland. Tais unidades militares eram integradas pelos protonazistas da Organização dos Nacionalistas Ucranianos-B (ONU-B/Banderivtsi), sob o comando de Stepan A. Bandera, agente direto da Abwher, o serviço de inteligência da Wehrmacht, e chefe do Exército Ucraniano Insurgente (Ukrayins’ka Povstans’ka Armiya — UPA), cujas milícias foram treinadas pelas Waffen-SS. A ONU-B/Banderivtsi constituía uma dissidência radical da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (ONU/Melnykivtsi), fundada em 1929 sob a liderança do general Andrij Melnyk”, de acordo com Moniz Bandeira.

2014 e a Guerra Civil

Por que essa longa digressão histórica? Porque sem ela é impossível compreender a crise atual na Ucrânia. Por pior que a Ucrânia soviética possa parecer aos nacionalistas ucranianos, o fato é que a Ucrânia do século 21, com sua configuração territorial, não existiria sem ela. A parte leste do país, como vimos, se diferenciou do oeste e centro-oeste durante todo o desenvolvimento histórico da Ucrânia, assim como o sudeste. Se a Novarrúsia foi transferida para a Ucrânia soviética em 1924, o ponto estratégico da Crimeia só seria transferido em 1954. Mas mesmo que estes dois fatos não tivessem ocorrido, quem seria o legítimo detentor do sudeste? Os gregos, os romanos ou os bizantinos, que ocuparam a região nos primeiros séculos, ou os turcos, que sob o Império Otomano dominaram a região a partir do século 15? O oeste deveria pertencer à Polônia, à Hungria ou à Lituânia? Mesmo que tomássemos como fio condutor da nacionalidade a etnia eslava, esse fio não conduziria também à formação da Rússia? E se concedêssemos a reivindicações que tomassem o Atamanato Cossaco como pedra fundante da Ucrânia, não teríamos que desenhar o país como uma parcela de terra ao norte, nas margens oeste e leste do rio Dniepre?

De fato, trata-se de uma “farsa burlesca”, mas tanto a falsidade quanto a comédia são obras da história, cujos feitiços nos permitem hipotetizar e rir, mas nunca reverter. “Tudo poderia e pode ser de outra forma” – é verdade. Mas tudo foi desta forma, e quem quer mudar o futuro haverá de se confrontar com o peso inexorável do passado – que foi como foi, não como gostaríamos que fosse

Após sua independência na trilha da dissolução soviética, em 1990-1991, dois grandes polos políticos emergiram na Ucrânia: os laranjas e os azuis. Os laranjas eram representantes da concepção de uma Ucrânia única, unilinguística e uniconfessional, mais identificada com a Europa. Os azuis entendiam a Ucrânia como um país multiétnico, multiconfessional e multilinguístico – eram algo como modernos representantes burgueses da concepção nacional soviética.

O presidente Viktor Yanukovitch, derrubado em 2014 durante o Euromaidan, era um representante desta segunda tendência. Ex-governador do oblast (província) de Donetsk e membro do Partido das Regiões, Yanukovitch foi derrubado após uma série de manifestações no oeste e centro-oeste, por ter aberto mão de um acordo de associação à União Europeia para assinar um acordo com a Rússia. A queda de Yanukovitch não ocorreu sem que o leste e sudeste se manifestassem em apoio ao presidente. Mas essa era uma discussão – assim como a integração ou não à UE. Outra eram os direitos das etnias.

À medida que as manifestações no oeste começaram a conviver pacificamente com retratos de Stepan Bandera, que grupos fascistas e ultranacionalistas tomaram a dianteira nas ocupações de prédios públicos, que os líderes “liberais” do Maidan passaram a regurgitar a retórica chauvinista sobre os “moscovitas do leste” que “assistem muita televisão russa e vivem de pensões”, ficou claro que a cisão era mais ampla. Mais ainda se considerarmos que o acordo que encerrou a crise política de 2014, além de ter a assinatura do futuro primeiro-ministro Arseniy Yatsenyuk, foi firmado também por Oleh Tyahnybok (líder do partido fascista Svoboda) e do ex-pugulista Vitali Klitschko (líder do nacionalista UDAR), e que uma das primeiras medidas da Rada Suprema após a destituição de Yanukovitch tenha sido a abolição da lei sobre as línguas minoritárias. No leste, onde uma parte considerável da população não se considera etnicamente ucraniana e uma parte ainda maior não tem o ucraniano como língua principal, era um sinal vermelho.

No mapa à esquerda, a porcentagem de ucranianos étnicos em cada província do país. Na direita, a porcentagem dos que têm o ucraniano como sua primeira língua nas províncias. (Dados: Censo de 2001)

Aos protestos em Donetsk, Carcóvia, Odessa, Lugansk, Mikolayiv, Dnipropetrovsk, Mariupol, Melitopol e Kherson entre o final de março e começo de abril de 2014 se seguiu a proclamação das repúblicas populares de Donetsk, Lugansk e Kharkov (esta última não sobreviveria). As repúblicas foram confrontadas por operações militares do exército ucraniano, que além do confronto armado incluíram forte repressão a manifestações civis, e a colaboração com grupos fascistas. Um dos mais simbólicos atos dessa divisão foi o Massacre de Odessa, em 2 de maio de 2014, ocasião em que a Casa dos Sindicatos de Odessa foi incendiada por manifestantes pró-Maidan – majoritariamente membros de torcidas organizadas e de grupos fascistas como o Pravyi Sektor (Setor Direito) – durante a realização de um comício contra o Euromaidan. 42 manifestantes que participavam do comício foram mortos pelas chamas; 32 deles por intoxicação por monóxido de carbono, dentro do prédio, e outros dez ao pularem das janelas. Episódios do tipo não reaviveriam só uma noção de “pertencimento à Rússia” no leste, mas mobilizariam também toda a memória sobre a Segunda Guerra (Grande Guerra Patriótica) e a resistência soviética ao nazismo. Especialmente à medida que sedes comunistas eram atacadas e destruídas, enquanto o governo de Kiev aprovava medidas de “descomunização”. Esses seriam os passos para a conformação da Guerra Civil que se desenrola, a oito anos, entre as repúblicas populares de Donetsk e Lugansk e o governo central ucraniano.

Por fim, haverá mais guerra?

Em setembro de 2014 foi firmado um acordo em Minsk, capital de Belarus, entre o governo da Ucrânia, as repúblicas populares e a Rússia, com supervisão da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Com doze pontos – que incluíam um cessar fogo e sua supervisão; a descentralização do poder para a construção de governos locais em Donetsk e Lugansk; a libertação de reféns e prisioneiros do conflito; a anistia para os participantes do conflito, entre outros – o acordo foi majoritariamente ineficiente. Os conflitos seguiram, assim como as acusações mútuas de violação do cessar fogo. Em fevereiro de 2015 um acordo similar seria assinado e, mais uma vez, continuaria sem implementação. A guerra civil mudaria de forma – as ofensivas e combates terrestres perderam importância, os mísseis e bombardeiros ganharam, em um conflito “congelado” com bombardeios constantes – mas fundamentalmente a situação permaneceria intocada.

Evidentemente, há um jogo maior sendo jogado na Ucrânia desde 2014. Há, de fato, uma dimensão geopolítica fundamental no conflito – mas que só pode se realizar numa realidade concreta de “conflito interno” que diz respeito aos direitos e a representação das nacionalidades e minorias étnicas, organizadas e divididas regionalmente e hoje organizadas em repúblicas. Fundamentalmente, o leste quer a garantia de paz, dentro da Rússia ou não. As tendências mais avançadas e irredentistas – aquelas que não toleravam o governo central e desejavam avançar até Kiev – perderam espaço nas repúblicas, quer seja pelo andamento da guerra, quer seja por terem sido assassinadas em estranhíssimos atentados. Apesar de sua agressividade – aliás, precisamente por ela – Kiev sabe que seria impossível governar sobre o leste, a não ser por meio da expulsão e a repressão de uma boa parte da população civil.

Os Estados Unidos, por sua vez, têm avançado a presença da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) sobre as “linhas vermelhas” das fronteiras russas desde o fim da Guerra Fria – fato que viola os compromissos assumidos por George H. W. Bush com Gorbachev quando da reunificação da Alemanha. Como lembra Moniz Bandeira, a decisão da Casa Branca em 1995 no sentido de expandir a OTAN na Europa Oriental encontrou resistência mesmo entre o establishment diplomático norte-americano: Theodor Sorensen, ex-assessor de Kennedy, declarou que era “difícil de imaginar uma decisão mais provocativa tomada com menos consulta e consideração pelas consequências” do que a política de Clinton; uma carta de 40 personalidades de ambos os partidos (Democratas e Republicanos) declarava que “a Rússia não significa uma ameaça para seus vizinhos ocidentais e as nações da Europa Central e Oriental não estão em perigo. Por essa razão, e outras citadas acima, nós acreditamos que a expansão da OTAN não é desejável nem necessária”; e George Kennan declarou crer “que isso é o começo de uma nova guerra fria. Creio que os russos gradualmente reagirão adversamente e isso afetará suas políticas. Acho que é um erro trágico. Não há razão para isso.” A lógica norte-americana não é só contrapor a Rússia como uma força hegemônica no Leste Europeu mas, por meio disso, assegurar e aumentar seus laços com a Europa Ocidental firmes.

A Europa Ocidental, no entanto, é bastante dependente do gás russo, em especial no inverno. Esse gás passa, em grande parte, pela Ucrânia. Daí que os europeus tenham tido uma posição mais mediadora no conflito até o momento, incluindo a participação nos Acordos de Minsk. Ocorre que, dada as posições do governo Trump para a Europa e a crise interna do bloco europeu (cujo grande símbolo foi o Brexit), a disposição dos europeus em “aumentar a pressão” com a Rússia, e se agarrar ao governo Biden, parece ter aumentado.

Trocando em miúdos, nos parece que a situação atual se desenrola nestas linhas: o governo em Kiev, ciente das enormes dificuldades que enfrentaria para governar o leste, está disposto a abrir mão desse território, contanto que isso seja feito de forma a tensionar mais a situação e garantir uma ampliação do apoio norte-americano (militar, incluindo a possibilidade de entrada na OTAN, mas também econômico). Para Kiev, interessa manter a posição de bastião pró-OTAN, ainda que isso se traduza em abrir mão do leste (que, de qualquer forma, com a situação “congelada” nos termos do Minsk, não estava à sua disposição. O melhor presente que Kiev pode receber é uma “invasão” russa nos territórios do leste.

Aos Estados Unidos, em especial sob um presidente que busca reverter os passos tomados por Trump de “voltar-se para si” (a política do America First, unilateralismo, as ameaças de deixar a OTAN e a cobrança de que os países europeus financiem mais a aliança, etc.), é fundamental confrontar a Rússia para manter a posição de subordinação do bloco europeu – isto é, é preciso bramar mais alto que o urso e ao mesmo tempo instigá-lo para reforçar os laços de dependência dos europeus com os norte-americanos. Nesse sentido, também a Biden interessa um avanço das tropas russas sobre os territórios do leste.

Quanto aos europeus, como disse, sua dependência no gás russo os levou a uma posição mais moderada, ainda sob o governo Obama. Os gasodutos Nordstream (o 1, concluído em 2012, e o 2, concluído no final do ano passado) possibilitam a vazão de boa parte do gás sem que ele passe pelo território ucraniano (os gasodutos saem de Vyborg e Ust-Luga, na Rússia, e chegam à Alemanha pelo Oceano Báltico). Isso cria uma situação paradoxal, já que a situação na Ucrânia em si não afeta o fornecimento de gás pelos gasodutos Nordstream, mas de qualquer forma a Rússia poderia cortar o fornecimento de gás à Europa se a UE se associasse a uma aventura na Ucrânia. De qualquer forma, na primavera a demanda por gás na Europa será reduzida, e o bloco europeu já tem, desde o ano passado, aumentado suas importações de gás liquefeito, especialmente da China. Além disso, os estoques de gás europeu estão altos, podendo cobrir, segundo algumas estimativas, dois meses inteiros de completo fechamento dos gasodutos russos. Para todos os efeitos, e especialmente a partir de março, a dependência no gás russo estará menor. Como resume a matéria da The Economist, “a Europa sofrerá se a Rússia cortar seu gás; mas esse preço será pago com carteiras, não com sofrimento físico”. O preço no entanto seria altíssimo, ainda mais depois de um ano em que os custos do fornecimento de gás na Europa praticamente dobraram. A UE poderia, como escrito acima, tomar uma posição mais guerrista em função de reestruturar o projeto europeu se agarrando na liderança de Biden; mas somente se este oferecer uma solução de fato para o mais imediato problema do gás.

As linhas dos gasodutos Nordstream.

A Rússia está ciente desse jogo, mas, por razões óbvias, colocou a integridade e a soberania territorial acima das relações com a UE. Nos Acordos de Minsk, Putin manobrou muito bem essa questão, trazendo os europeus para mais perto – mas se a disposição de Biden for de fato avançar indiscriminadamente até as fronteiras russas, o espaço de manobra russo estará reduzido. É improvável que a Rússia “invada” a Ucrânia no atual momento – e certamente, se o fizesse, a “invasão” se limitaria ao leste, talvez até Mariupol, cenário bem distante dos mapas que pipocaram nos veículos internacionais, de uma invasão russa a partir de múltiplos pontos e multidirecional. Por outro lado, havendo algum tipo de provocação no Donbass, a Rússia quase certamente agiria; além da possibilidade de o território cair nas mãos dos ucranianos (portanto colocando-os na fronteira com a Rússia), seria um desastre para a retórica patriótica russa que Putin tem mantido – cada vez com contornos mais regressivos – assistir de longe à população civil do leste, boa parte da qual se considera russa, ser bombardeada.

A “batalha” sobre a Ucrânia, nesse momento, é sobre quem dará o primeiro passo; se as tropas ucranianas repetirão os bombardeios indiscriminados sobre o Donbass com as tropas russas na imediação ou se os russos marcharão sobre o leste. A nenhum interessa dar o primeiro passo: para os ucranianos e norte-americanos, significaria abrir mão do papel de agredidos; para os russos, vestir de bom grado a fantasia de agressor.

Vemos um curioso caso em que, no campo da lógica do que Clausewitz chamou de “guerra ideal”, a situação provavelmente se manterá como está: absolutamente paralisada, sem se realizar. A lógica política não permite, no momento, que nenhum dos atores avance a guerra. O problema, é claro, é que em toda a história, e também na guerra, existem fricções. O mais absurdo da Primeira Guerra Mundial não é que ela tenha sido iniciada pela assassinato de Franz Ferdinand, durante sua visita a Saravejo, nas mãos de Gavrilo Princip, um jovem nacionalista de 19 anos. É que o arquiduque da Áustria havia escapado, há algumas horas, de um atentado à granada com a participação de Princip. Não foram os cálculos frios que colocaram o carro do arquiduque para manobrar em frente do restaurante onde Princip esperava para comprar um sanduíche, mas sim a fortuna e sua mania de desenhar farsas burlescas. Princip disparou sua pistola e deu início à “guerra que acabaria com todas as guerras”, como H.G. Wells a nomeou. Basta um ato sem lógica para que todos os outros sucedam.

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