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Por que defendemos a Atenção Básica à Saúde?

Os ataques à Atenção Básica à Saúde, como o subfinanciamento, o teto de gastos e a privatização por meio de planos de saúde populares devem ser respondidos com a defesa de uma saúde pública, estatal e de qualidade.
Os ataques à Atenção Básica à Saúde, como o subfinanciamento, o teto de gastos e a privatização por meio de planos de saúde populares devem ser respondidos com a defesa de uma saúde pública, estatal e de qualidade. Por Jones Manoel | Revista Opera
Ato em defesa do SUS e Fora Temer

É possível que você nunca tenha ouvido falar na denominação Atenção Básica ou Atenção Primária à Saúde, mas com certeza já deve ter usado, ou pelo menos visto, um Posto de Saúde (Unidade Básica de Saúde) instalado em seu bairro. É possível também que tenha recebido a visita de trabalhadores da Atenção Básica, como o Agente Comunitário de Saúde (ACS) e o Agente de Combate a Endemias (ACE) em sua casa. Mas nem sempre foi assim…

Para entendermos o porquê defender essa política pública vamos dividir nosso breve texto em três momentos: 1) as ações de saúde antes da Atenção Básica; 2) conceituação e implantação da Atenção Básica no Brasil; 3) por que o programa político comunista para o governo do Estado defende o fortalecimento dessa estratégia?

Antes do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Atenção Básica

Se o leitor tiver mais de 40 anos, provavelmente vivenciou e lembra de como as ações de saúde pública eram realizadas antes do SUS. Se na época você ou sua família tivesse um pouco mais de dinheiro, acessariam serviços privados de assistência à saúde. Também havia a possibilidade, caso você estivesse em um emprego formal, com carteira assinada, de ter acesso a serviços de saúde por essa via, por meio do extinto Instituto Nacional de Assistência Médica Social (INAMPS). Mas se estivesse desempregado ou na informalidade, estaria “condenado” ao acesso via filantropia ou ações relacionadas a campanhas focais de saúde pública. 

Pois bem, a efetivação do Sistema Único de Saúde contraria essa lógica e amplia o acesso à saúde de maneira universal. Em tese todos passam a poder acessar a rede pública de saúde, independente de condição financeira, vínculo trabalhista, sexo, raça, orientação sexual, etc. Outros princípios também orientam a organização do nosso sistema: a integralidade e equidade, que basicamente ajudam a atender os indivíduos e coletividades em toda sua complexidade e em articulação de rede e, sobretudo, o princípio de dar mais atenção e cuidado a quem mais precisa. Cabe lembrar que esse processo de organização do SUS não “caiu do céu”; foi fruto de lutas coletivas, articuladas principalmente pelo Movimento de Reforma Sanitária Brasileira, que contou com participação de vários atores, com forte participação de militantes ligados ao PCB.

Mesmo com todos os problemas de efetivação real do Sistema Único no Brasil, é um fato que a orientação baseada nesses princípios alterou de forma considerável a organização da atenção à saúde no país. Daí aparece a temática de interesse neste texto: a Atenção Primária à Saúde/Atenção Básica.

O caminho entre o Programa de Saúde da Família e a Estratégia de Saúde da Família

Alguns marcos internacionais foram fundamentais para dar corpo à proposta da Atenção Básica à Saúde (ABS)/Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil. Inicialmente a concepção da APS aparece na Inglaterra, por meio do Relatório Dawson, publicado na década de 1920, que tinha por objetivo uma reorientação das práticas do sistema de saúde, buscando reduzir gastos e ampliar os resultados positivos das práticas médicas realizadas em solo inglês. O relatório previa a criação de centros de saúde primários, secundários, serviços domiciliares, complementares e hospitais de ensino. A prática adotada deveria ser contínua, sistemática e regionalizada, baseada na resolução dos problemas de saúde e sua relação com os territórios.

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Mas é com a conferência de Alma-Ata (I Conferência de Cuidados Primários de Saúde), realizada em 1978, no Cazaquistão, parte da extinta União Soviética, que ficam expostos os princípios e diretrizes para a construção da APS. No relatório de Alma-Ata está expressa a condição do processo de saúde como socialmente determinado, ou seja, fruto de relações sociais, políticas, econômicas, culturais, entre outras.

 A determinação social da saúde no Brasil, apesar de evidente, não recebia atenção suficiente até então, e as ações de saúde estavam focadas em campanhas localizadas e assistência médica ligada ao modelo médico-privatista. A declaração de Alma-Ata aponta para a necessidade de reorganização dessas ações a partir de eixos relacionados à educação em saúde, distribuição de alimentos e nutrição adequada, acesso ao saneamento básico, planejamento familiar, imunização, fornecimento gratuito de medicamentos, participação popular, tratamentos de doenças endêmicas e agravos e lesões de grande ocorrência na população. Essas ações deveriam ser desenvolvidas no contato entre equipes multiprofissionais e a população em um determinado território definido.  

A concepção presente em Alma-Ata é a da saúde como direito universal, apesar de alguns países assumirem a perspectiva de ações de APS de forma restrita e destinada a populações pobres, que atualmente se aproxima da defesa do Banco Mundial da chamada “cobertura universal de saúde”. Afastando-se desse olhar limitado, o movimento de reforma sanitária brasileira assume a concepção da APS/ABS presente na declaração de Alma-Ata e busca a contraposição desse modelo com a então lógica médico-privatista hegemônica. 

A princípio essa “transição” se deu por meio da Ações Integradas de Saúde (AIS) que iniciam o desenho do que futuramente seria melhor organizado com a implantação do SUS por meio da Constituição Federal de 1988 e a regulamentação do sistema pelas leis orgânicas de saúde (lei 8.080/1990 e lei 8.142/1990). Cabe ressaltar que antes desse período alguns programas de caráter focal e de distribuição regional iniciaram ações que se pautavam na organização proposta pela APS, mesmo que ainda de maneira restrita e limitada. São alguns exemplos o Serviço Especializado de Saúde Pública (SESP), na década de 1940, e o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) em 1978. 

Com a implementação do SUS, o olhar da ABS deixa de apenas considerar a racionalidade financeira como principal elemento de expansão das ações e passa a se orientar pela integralidade da atenção e a universalização dos serviços de saúde, afastando-se de uma “prática médica de pobres para uma população pobre”. Logo, as primeiras iniciativas do Ministério da Saúde brasileiro para a organização da atenção baseada na Atenção Básica surgem por meio da implantação dos Programas de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), em 1991, e do Programa de Saúde da Família (PSF), em 1994. Ambos programas surgem com intuito de descentralizar as ações, sobretudo nos municípios menores, que possuíam poucas ações de saúde organizadas. No caso do PACS, inicialmente as ações estavam voltadas prioritariamente para a redução da mortalidade infantil, com principal foco na região nordeste e norte do país. A distribuição das unidades seguiu o critério de maior vulnerabilidade das populações, sendo orientada pela publicação do Mapa da Fome. Note que mesmo não assumindo o caráter focalizador, o PSF tende a restringir suas atividades iniciais para a população mais pobre. Cabe ressaltar que a conjuntura nacional da época, com Fernando Henrique Cardoso na presidência, estava intrinsecamente associada à racionalidade neoliberal, como segue até os dias atuais.

Até o momento anteriormente citado, a ABS assumia uma posição de marginalidade no SUS. O modelo assume maior destaque com organização normativa que altera o repasse de verbas para a atenção básica, com a instituição do Piso da Atenção Básica (PAB). Contando com maior financiamento, esse momento é um “divisor de águas” para a organização da Atenção Básica, tendo como principal elemento a Estratégia de Saúde da Família (fusão entre PACS e PSF). Neste momento a atenção básica torna-se “porta de entrada” dos usuários do SUS no atendimento das demandas espontâneas de saúde, bem como no acompanhamento das populações e na orientação e coordenação do cuidado em níveis de diferentes complexidades (como policlínicas e hospitais). Perceba que a proposta agora assume o caráter da integralidade, articulando diferentes complexidades do sistema de saúde. 

Apenas em 2006 é instituída a primeira edição da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) por meio da Portaria GM/MS 648/2006, com posterior edição em 2011 e 2017. Em termos gerais, essas políticas definem a constituição das equipes de saúde da família, compostas de forma multiprofissional, sua inserção nos territórios com população a “ser atendida” definida na cobertura de determinado território. Na PNAB estão definidos critérios para constituição das equipes e quantitativo de famílias a serem acompanhadas pela estratégia. Em 2008 são criados os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), com a intenção de aprimorar a ação e resolubilidade das ações realizadas pelas equipes de saúde da família. Alguns programas – não os eximindo de críticas –, auxiliam na expansão da estratégia, como o Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade (PMAQ) e do Programa Mais Médicos (PMM).

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Longe de um caminho de flores, a implantação da Atenção Básica no Brasil sofreu desde seu início com os problemas crônicos do SUS, como seu subfinanciamento e o mais recente desfinanciamento (com a EC95 – o teto de gastos). Além disso, mais recentemente a PNAB sofreu “tentativas de ataques” (como a tentativa de tornar facultativa a presença dos Agentes Comunitários de Saúde nas Equipes, a tentativa de aprovação de planos de saúde populares) e verdadeiros ataques à concepção universalista e integral contida em sua proposta inicial, como algumas alterações feitas na PNAB 2017 em relação à cobertura das famílias e a proporção ACS, a autonomia dada aos gestores municipais para a definição de serviços ofertados e a delimitação do espaço territorial de vinculação da população com as equipes de saúde da família. 

Também estão neste pacote as medidas do Governo Federal adotadas por meio do Programa “Previne Brasil”, que extinguiu a habilitação e repasse de recursos para os NASF por meio de Nota Técnica em 2020. Evidentemente, estivemos presentes nas lutas contra os retrocessos na PNAB, em defesa do NASF, bem como de todo o SUS. O que nos faz levantar a última consideração desse texto: por que os comunistas defendem a priorização do modelo de Atenção Básica à Saúde? 

A priorização da Atenção Básica à Saúde no programa comunista

O debate sobre saúde permeia todas as candidaturas e aparece com destaque nos programas dos mais variados partidos políticos. Quem diria abertamente que não defende um país com mais saúde? 

Mas essa defesa abstrata da saúde precisa ganhar forma e conteúdo. É justamente nesse conteúdo que a nossa proposta se diferencia das demais. Assumimos o compromisso público com a saúde pública estatal e de qualidade,  uma necessidade fundamental para a melhoria das condições de saúde do povo trabalhador brasileiro, pois significa combater a concepção da saúde como mercadoria. Neste compromisso está expresso a defesa do modelo de atenção pautado na Atenção Básica, envolta pelos princípios da universalidade, equidade e integralidade. Como isso se materializa na prática? 

Estamos dizendo, a grosso modo, que esta é a melhor estratégia de organização da rede de atenção, não porque resolve todos os problemas de saúde da população (só superados com o fim do capitalismo), mas porque se insere nas comunidades e acompanha as populações em seus territórios, compreendendo a dinâmica individual e coletiva do processo de determinação social da saúde. Assumir essa defesa perpassa por, além de se manter contrário aos atuais retrocessos a ESF, fortalecê-la e ampliá-la a partir de um perspectiva territorial e multiprofissional, de modo a considerar as necessidades dos territórios do campo e da cidade. É preciso manter um firme embate e mobilização popular para real efetivação da Atenção Básica à Saúde, com condições e relações de trabalho adequadas para seus trabalhadores, real participação popular na definição da estratégia de funcionamento deste modelo como orientador do cuidado. 

Se o governo do PSB se pauta em um modelo médico-centrado, hospitalocêntrico e profundamente associado à privatização da saúde, principalmente via Organizações Sociais (o que está explícito no cotidiano dos serviços e no orçamento da saúde) cabe a nós comunistas a construção de uma outra forma de “fazer saúde” que esteja atrelada às reais necessidades do nosso povo trabalhador. Não há como fazer isso sem a Atenção Básica à Saúde orientada a partir dessas necessidades.

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