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Diretamente ou não, tragédias na Amazônia têm dedo militar

Intervenções militares na Amazônia e Funai e tutela sobre Conselho da Amazônia estão atreladas, direta ou indiretamente, às tragédias que jornalista e indigenista desaparecidos buscaram denunciar.
Intervenções militares na Amazônia e Funai e tutela sobre Conselho da Amazônia estão atreladas, direta ou indiretamente, às tragédias que jornalista e indigenista desaparecidos buscaram denunciar. Por Pedro Marin | Revista Opera
Militares da 16ª Brigada de Infantaria de Selva do Exército Brasileiro participam nas buscas pelo indigenista Bruno Araújo Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips. (Foto: Comando Militar da Amazônia).

Uma fonte entra em contato com a redação, a partir de algum ponto da Amazônia brasileira. Com contatos no mundo da mineração ilegal, avisa que há algo de muito estranho acontecendo: nos próprios garimpos da região se estaria pagando, pelo ouro ilegalmente extraído, a cotação oficial do minério legal, negociado nas grandes metrópoles. “Se a pepita for das grandes”, diz a fonte, “dão um adicional”. O contato, feito há mais de dois anos, não levou a nenhuma conclusão. Uma investigação desse porte demandaria recursos – e, hoje está claro, riscos – que esta revista não pode pagar. É mais uma história que ficaria embrenhada no Inferno Verde ou no Eldorado, como se prefira chamar a imensidão da mata. Um alento: um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) de agosto de 2021 mostrou que, em dois anos, 28% de toda produção de ouro vendida no Brasil tinha evidências de ilegalidade. Talvez um afluxo tão grande, por alguma razão excepcional, tivesse efeitos sobre o preço pago nos garimpos em um determinado momento… Talvez fosse invencionice.

A Amazônia é uma multifacetada obsessão militar há algum tempo. A necessidade da ocupação durante a ditadura – “integrar para não entregar” –, a compreensão da mata como possível foco insurrecional interno, a luta contra a “cobiça internacional” (que os militares muito cobiçam em todos os outros campos, como mostra bem sua ação ontem e hoje, para não falar no recém divulgado “projeto de nação” dos institutos militares), as incursões das FARC nos anos 90 e mais recentemente o tráfico de drogas, armas e a questão dos refugiados são todos temas constantes entre o generalato. Bastante atenção midiática foi dada ao tema com as polêmicas do governo Bolsonaro em torno do desmatamento, das ONGs e das declarações do presidente francês Emmanuel Macron. Mas, apesar das nuvens negras que chegaram às cidades em agosto de 2019 para contar o que acontecia por lá na imensidão verde, um fato – não uma história – permaneceu relativamente oculto durante o período: a militarização da Amazônia.

Durante o governo Bolsonaro, três operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs) sobre a Amazônia foram decretadas: a Operação Verde Brasil, que vigorou de agosto a outubro de 2019; a Operação Verde Brasil 2, entre maio de 2020 e abril de 2021; e a Operação Samaúma, entre junho e agosto de 2021. Os decretos das três operações previam “ações preventivas e repressivas contra delitos ambientais” e “levantamento e combate a focos de incêndio”. No total, dos 41 meses já transcorridos do governo Bolsonaro, a Amazônia Legal esteve quase 17 deles sob a tutela militar. Além disso, em fevereiro de 2020 também foi “recriado” o Conselho da Amazônia, sendo a sua presidência transferida do Ministério do Meio Ambiente para a Vice-Presidência. O conselho, presidido desde então pelo vice Hamilton Mourão, é um colegiado composto de 16 ministérios (dos quais sete eram, à época do decreto que instaurou o Conselho, dirigidos por militares) que tem por fim geral coordenar e integrar a ação dos ministérios sobre a Amazônia, “fortalecer a presença do Estado sobre a Amazônia Legal” e “coordenar ações de prevenção, fiscalização e repressão a ilícitos”. Além disso, são premissas do Conselho instituir subcomissões especiais e “convidar especialistas e representantes de órgãos ou entidades, públicos ou privados, nacionais ou internacionais, para participar das reuniões.” Apesar disso, governadores, representantes do Ibama, da Funai, de povos indígenas, quilombolas ou comunidades tradicionais não tiveram participação decretada, e às comissões temáticas do órgão – cuja composição compete a Mourão – foram indicados 19 militares, além de quatro delegados da Polícia Federal.

Uma matéria da jornalista Marta Salomon na Piauí de outubro do ano passado escancarava o “puxadinho militar com dinheiro da Amazônia” durante a Operação Verde Brasil 2: reformas em quartéis que incluíam pintura de paredes, troca de pisos, portas, revestimentos e telhados entravam nos gastos da operação, além de “gastos sigilosos” em contratos do Centro de Inteligência do Exército com empresas privadas. À medida que os gastos com preservação do Ministério do Meio Ambiente caíam, cresciam os investimentos em missões de GLO: em 2021, 37% dos gastos para frear o desmatamento eram alocados às ações militares.

Outra medida do governo envolvendo os militares (ou dos militares envolvendo o governo) foi a “intervenção” na Funai. Levantamento de Daniel Giovanaz no Brasil de Fato, em fevereiro do ano passado, revelava que de 24 coordenações regionais da Fundação Nacional do Índio, 14 eram lideradas por militares. Um deles era Jussielson Golçalves Silva, militar inativo da Marinha preso em março deste ano por intermediar o arrendamento de terras indígenas para pecuaristas em Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso. Outra matéria de Marta Salomon revela o caso do capitão Raimundo Pereira dos Santos Neto, coordenador regional da Funai no Pará que cedeu a um “colaborador”, Antônio Júlio Martins de Oliveira, um galpão construído às margens do Rio Iriri sob o pretexto de atender os indígenas kayapós da região. O colaborador era um garimpeiro, e o galpão da Funai era usado na atividade ilegal.

 Leia também – A exceção tem suas próprias regras (ou: um golpe é possível?) 

Como reportou a Folha, as três operações de GLO que instituíram a intervenção militar direta sobre a Amazônia por um ano e meio custaram R$ 550 milhões – quase seis vezes o orçamento do Ibama para fiscalização ambiental, licenciamento e gestão da biodiversidade no ano de 2020. O governo federal diz que as operações “atestam intransigência na defesa do nosso território”. O general-vice-presidente Mourão, presidente do Conselho da Amazônia, declarou que os resultados da Operação Samaúma foram “extremamente positivos”, apesar dos dados mostrarem que durante as GLOs o desmatamento continuou a crescer. Em abril deste ano, o vice disse que os dados de desmatamento da Amazônia no mês – quando as operações militares não estavam mais ativas – foram “péssimos, horrorosos”. A questão que se impõe entre as contraditórias declarações: a tutela e a intervenção militar sobre a Amazônia trouxe resultados horrorosamente positivos ou positivamente péssimos?

O desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips no último domingo (5) no Vale do Javari, no Amazonas, certamente nada tem a ver, diretamente, com a tutela e a intervenção militar na Amazônia, apesar da demora do início das buscas pelas Forças Armadas e do escândalo em torno das notas que o Comando Militar da Amazônia (CMA) emitiu. Indiretamente, no entanto, diz tudo o título de uma matéria escrita pelo jornalista desaparecido em 2018: “Tribos em águas profundas: ouro, armas e a última fronteira da Amazônia”.

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