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José Genoíno: “Brasil tem que passar por uma purgação”

Em entrevista, José Genoíno trata de temas como os militares, o 8 de janeiro, as disputas no governo Lula e a guerra na Ucrânia.
Em entrevista, José Genoíno trata de temas como os militares, o 8 de janeiro, as disputas no governo Lula e a guerra na Ucrânia. Por Pedro Marin | Revista Opera
José Genoíno em sua casa em São Paulo. 28.03.2023. (Foto: Pedro Marin / Revista Opera)

José Genoíno nasceu em 3 de maio de 1943, em Quixeramobim, no Ceará, num povoado de nome Encantado. Filho de agricultores pobres e em uma família de onze irmãos (contando com ele), mudou-se para uma casa paroquial no município de Senador Pompeu, aos 14 anos de idade, para seguir os estudos. Lá, vivendo sob abrigo do padre João Salmito, manteve contato com a Juventude Agrária Católica (JAC), e em 1964, ano em que os militares tomaram o poder, foi para Fortaleza, para cursar Direito e Filosofia.

Três anos depois, em 1967, ingressa nas fileiras do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), e no ano seguinte, já como presidente do Centro Acadêmico de Filosofia e do Diretório Central Estudantil da Universidade Federal do Ceará (UFCE), é preso no Congresso de Ibiúna. Embora libertado, é impedido de prosseguir com estudos. Muda-se para São Paulo, onde passa a viver clandestinamente e a integrar a direção da União Nacional dos Estudantes (UNE). Pouco tempo depois, em 1970, se desloca para o sul do Pará, para preparar as bases da Guerrilha do Araguaia. Lá ficará até abril de 1972, quando é capturado durante as primeiras operações do Exército contra as forças guerrilheiras. É torturado e fica preso durante cinco anos.

Após a saída da prisão, em 1977, rompe com o PCdoB, passa a integrar o Partido Revolucionário Comunista (PRC) – de influência eurocomunista – e em 1981 entra no Partido dos Trabalhadores (PT). Em novembro de 1982, é eleito deputado federal por São Paulo pela legenda, iniciando uma longa trajetória parlamentar que se estenderá por seis mandatos – entre eles, um como deputado Constituinte. É na Assembleia Nacional Constituinte que tentará acertar as contas com o Poder Militar – “fracassando em tudo”, como relata nesta entrevista.

Embora sem uma base social fixa e bem definida, é o deputado petista mais votado nas eleições de 1994, com mais de 190 mil votos. Quatro anos depois, em 1998, quase dobra a votação e, com 307 mil votos, é o deputado federal mais votado do Brasil. Em 1999, é eleito líder do PT na Câmara, e em 2002, na corrida pelo governo do Estado de São Paulo, chega ao segundo turno contra Geraldo Alckmin (PSDB), mas é derrotado. Em dezembro de 2002, com a vitória de Lula, assume a presidência do PT.

Em julho de 2005, é implicado nas denúncias do “mensalão”, denúncia explosiva de Roberto Jefferson (PTB) – hoje preso e respondendo por tentativa de homicídio contra quatro policiais federais em 2022 –, sobre um suposto esquema de compra de votos no Congresso. Por ter assinado, como presidente do PT, um empréstimo junto ao Banco de Minas Gerais (BMG), é acusado de integrar um “núcleo político” do esquema, e de simular o empréstimo. Em meio à pressão midiática, renuncia à presidência do partido. Em 2011, no governo Dilma, é nomeado assessor especial do Ministério da Defesa, sendo um dos articuladores da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Condenado por corrupção ativa (9 votos a 1) e formação de quadrilha (6 votos a 4) pelo STF no julgamento do mensalão, tem sua prisão decretada em 2013, num processo que, arrastando-se por anos sob discutíveis concepções jurídicas, estreava as criatividades depois postas em prática na Operação Lava-Jato – não sem impacto para ele e sua família. Em fevereiro de 2014, é absolvido pelo mesmo STF, por 6 votos a 5, do crime de formação de quadrilha; em dezembro, tem sua pena extinta por meio de indulto natalino. Em agosto de 2020, é absolvido dos crimes de falsidade ideológica pela 3ª turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região  (TRF-1).

José Genoíno concedeu a seguinte entrevista à Revista Opera em sua casa; um sobrado simples, de classe média, na Zona Oeste de São Paulo, no qual mora desde os anos 80. Nela, repassa mais de cinco décadas dedicadas à atividade política – revolucionária e institucional – e trata de temas como os militares, a intentona golpista do 8 de janeiro, a Guerrilha do Araguaia, as disputas no governo Lula e a guerra na Ucrânia. Aos 76 anos, o ex-guerrilheiro, que já foi considerado “o mais moderado dos petistas”, reconhece que “a ideia de pacificação, de esquecimento, é um equívoco histórico” e argumenta que “pela primeira vez, temos uma janela de oportunidade de fazer uma reforma profunda nas Forças Armadas”, embora insista em “deixar o futuro acontecer”.

Revista Opera: Queria começar por um tema que acho que vai permear toda a nossa entrevista, que é o tema da guerra. Você já disse que a guerra é uma atividade fascinante, instigante e surpreendente. O Lin Biao tem aquela famosa frase de que “a guerra é uma grande escola” – você passou por essa escola nos anos 70. Sei que tem certas reservas em se dizer guerrilheiro, mas o fato é que você foi instalar um foco guerrilheiro no Araguaia, quando vai para o sul do Pará. Queria que o sr. falasse sobre isso: o que faz da guerra uma atividade tão instigante, fascinante, surpreendente e importante?

José Genoíno: Olha, em primeiro lugar, eu participei da preparação do Araguaia durante dois anos. Fui preso no início [dos combates], quando o Exército localizou a guerrilha, seis dias depois. A guerrilha começou no dia 12 [de abril de 1972] e eu fui preso no dia 18. E estava lá fazendo treinamento, estudo, pesquisa, e me preparando nas condições do terreno.

Por que a guerra é uma coisa fascinante? Porque ela é uma fusão de racionalidade, sensibilidade, disposição física, agilidade, potência. A guerra potencializa o ser humano, porque na medida em que ele tem uma arma, que se protege ou ataca, ela dá uma sensação de poder ao combatente. E a guerra acaba construindo um ethos militar, no sentido de ser uma atividade que envolve todos os sentidos humanos.

Se você vai fazer uma emboscada, um ataque surpresa, um ataque regular; tudo entra em jogo. Tudo. Na guerra você não tem delegação; você tem afinidade, tem dedicação, tem pertencimento àquela atividade. E a guerra está na História da humanidade, e, por que não dizer, na História da luta de classes. A guerra, como diz Clausewitz, é a continuação da política por outros meios. E como é a continuação da política, ela tem que ser dirigida pela política. Quando a guerra não é dirigida pela política, vira bando, milícia, anarquia, porque o ser humano, quando tem a arma e a técnica, se não tem uma ação dirigida… Acaba caindo no banditismo individual.

Por outro lado, a guerra é uma atividade essencialmente coletiva. A guerrilha, que é a guerra pequena, é a partir de dois. Você não vai para um combate só um. Vai com dois, três, quatro, cinco… Ela é essencialmente uma atividade coletiva. Uma atividade coletiva que gera uma situação em que um é uma extensão do outro e o outro é uma extensão do um. Por que? Porque tua vida depende do outro e vice-versa. Então a relação de confiança, de camaradagem, é uma relação de essência [da guerra]. Porque não é porque você recebe uma ordem – para ir para uma greve, fazer um comício, o que seja –, mas porque sua vida está em jogo.

Por outro lado, a guerra é uma atividade brutal, ela é bruta, horrível. Porque ela significa a morte. Quem vai para a guerra tem que levar em conta a morte, porque a morte é uma possibilidade.

Ela é fascinante nesse sentido: porque ela abarca tudo, e abre várias possibilidades. Ela é isso: potencializa a ação coletiva dos humanos, em qualquer nível.

Quando eu comecei a estudar os assuntos militares, li o Mao Tsé-Tung, li o Lin Biao, li o Che, Canudos, Retirada da Laguna, etc., aquilo ali me atraía, impressionava. Porque na guerra você tem planejamento, preparo, emprego. Mas também tem o acaso. A guerra não é uma atividade 100% programada: você tem o acaso, tem a falha, tem o risco.

Nesse sentido, é uma atividade que desafia o ser humano. Por isso que a discussão sobre a guerra, a discussão sobre as armas, tem de ser uma discussão politizada. Não podemos criar uma ideologização da guerra ou da arma: a ideologia é o objetivo político, é a visão de mundo que dirige a guerra. O próprio Mao Tsé-Tung dizia que é a política quem comanda a ponta do fuzil. Exatamente porque quando a política não comanda, e o fuzil vai comandar a política, seja pela esquerda ou pela direita, temos consequências muito, digamos, desastrosas.

Por isso considero que essa atividade é absorvente, te ocupa completamente. Seja fisicamente, seja mentalmente, seja na sensibilidade. Você tem que estar sempre preparado: a qualquer hora você pode morrer ou pode matar. E se convive com esse dilema, da vida e da morte, permanentemente.

Então na minha preparação lá no Araguaia, fiz treinamentos, fiz preparação, e aprendemos isso. Mas, na guerra, não se pode transportar uma experiência de forma mecânica. A guerra depende do teatro, depende das condições geográficas, depende do clima, da umidade, do solo, de vários fatores. Então o pessoal diz: “fulano fez treinamento em tal país”; tudo bem, você aprende noções básicas; mas o aprendizado da guerra propriamente dito é feito in loco: o tipo de solo, o tipo de andar… Por exemplo, na selva, nós aprendíamos a andar. Se andássemos na selva como andamos na cidade, a gente caía. Você tem que aprender a andar com o “passo de ganso”, com o pé levantado; se andar como andamos na cidade, fica caindo.

Então a guerra é uma atividade também muito materialista, no sentido das condições objetivas que você tem que dominar. E o primeiro passo da preparação é você controlar as condições objetivas: as que envolvem solo, terreno, mata, clima, rio, sertão, deserto, enfim. Você tem que levar isso em conta para os princípios gerais serem colocados.

No caso da guerra de guerrilhas, que é uma guerra do pequeno contra o grande, há de se trabalhar, primeiro, com uma intensa mobilidade; segundo, com uma capacidade de surpresa muito grande; terceiro, uma capacidade de iniciativa muito grande. Jamais a guerrilha pode perder a iniciativa; na hora que perder iniciativa, acaba. Porque a força dela é a iniciativa, a surpresa, o contra-ataque, o pronto emprego. Então acho que isso estimula muito.

A guerra ainda produz uma liturgia. A liturgia da guerra acaba potencializando o ser humano, no sentido dos símbolos, dos valores, dos objetivos pelos quais você faz a guerra: seja uma guerra de libertação nacional, uma guerra civil, uma guerra irregular, uma guerra entre Estados. Em todas você tem esse processo.

Quando a gente luta para que a sociedade humana resolva seus conflitos de classe por meio da política, é para diminuir a intensidade da guerra, para diminuir o uso recorrente da guerra. Porque o uso recorrente da guerra causa danos, prejuízos e perdas muito grandes. Então se tem que trabalhar com a possibilidade de diminuir a incidência da guerra, para que os conflitos possam ser fruto da disputa política, do dissenso e do consenso, da mobilização, etc.

E hoje temos um problema, que é sério, que é a que a revolução tecnológico-científica interfere demasiadamente na guerra. Primeiro a guerra estimulou o desenvolvimento tecnológico e científico, no caso da internet. Mas o uso da tecnologia potencializa a guerra num nível inimaginável. Este é outro dado: informação, contrainformação, são elementos importantes na atividade bélica, digamos. Então são esses os fatores que me levaram a me interessar, particularmente na minha experiência de dois anos no Araguaia. E, quando fiquei preso – fiquei preso cinco anos – estudava, lia [sobre guerra].

Revista Opera: Após a sua libertação, o sr. passa, como muitos, por uma avaliação crítica em relação à experiência do Araguaia, que vai ser um dos motivos de sua ruptura com o PCdoB. Essa postura que você tinha ali nos anos 80 sobre a Guerrilha do Araguaia, cinco décadas depois mudou em alguma medida?

José Genoíno: O que é permanente? Antes de tudo, que foi uma luta heróica, generosa e legítima – porque enfrentávamos uma ditadura terrorista, e a nossa geração só tinha três opções: ou exílio, ou ficar em casa e ser preso, ou ir para a luta clandestina. Não havia uma quarta. Portanto, naquelas condições históricas e políticas, era uma resistência legítima. Agora, analisando do ponto de vista das possibilidades da vitória, aí discuto. Sim, as avaliações que comecei a fazer nos anos 80, eu mantenho.

Em primeiro lugar porque, no caso do Brasil, uma guerra de guerrilhas sobreviver na selva isoladamente, sem estar vinculada ao movimento de massas, sem estar vinculada a uma conjuntura de confrontação política, e sem uma organização popular de massa… Ela será isolada – como acabou acontecendo –, e eliminada.

Segundo, porque naquela conjuntura política, em que a ditadura estava muito forte – estou me referindo a todo o período dos anos 70 –, a própria divulgação da guerrilha, que é uma arma fundamental para ela sobreviver, não pôde acontecer. A divulgação só aconteceu depois que a guerrilha foi extinta!

E, em terceiro lugar, porque nós entramos em uma contradição insolúvel lá: veja bem, nós vivíamos da selva, nos preparando para desencadear um movimento que certamente iria acontecer fora da região do sul do Pará – o sul do Pará era uma espécie de reserva estratégica, que seria localizável – e a população não sabia quem nós éramos. Porque não fazíamos trabalho político: nos vinculávamos com a população através da vida social da região, mas não fazíamos trabalho, até porque não tinha nada – não tinha trabalho sindical, trabalho popular, trabalho de políticas públicas, nada. E, claro – acompanhe a contradição –, quando começamos a guerrilha, fomos fazer a propaganda da guerrilha, para dialogar com a população: explicar os motivos; explicar os 27 pontos, que é o principal documento da guerrilha; propagar a União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (ULDP); fazer os comunicados. Mas, quando a guerrilha fazia isso, ela ficava exposta. Para ela se comunicar com a população, ficava vulnerável. E aí algumas mortes foram acontecendo.

Em quarto lugar, no caso do Brasil, tínhamos um Estado ditatorial, terrorista, mas moderno no sentido das comunicações, estradas, aviação, localização. [O sul do Pará] não era uma região como foi, por exemplo, o Vietnã, a China, ou mesmo a Sierra Maestra. Totalmente diferente. E eu acho que, neste sentido, a guerrilha como uma alternativa para criar área libertada e construir base do poder popular armado; a tese de cerco da cidade pelo campo, das cidades menores às maiores; esse caminho, que está no documento “Guerra Popular: O Caminho da Luta Armada no Brasil“, do PCdoB, tem que ser analisado autocriticamente, porque ele era inviável como estratégia, como caminho. Agora, isso não tira a legitimidade, aquilo que falei no início.

Por outro lado, a guerrilha é obrigada a se deflagrar quando já havia um descenso muito grande. A ditadura já estava numa puta ofensiva, em 1972-73; as organizações de esquerda nas cidades estavam sendo extintas; já havia acontecido muitas mortes, muitos presos; e o planejamento do PCdoB de articular o apoio nas cidades à guerrilha… Eles cortaram, impediram esse apoio. Até porque não tinha apoio político, não tinha movimento de massa, não tinha greve, não tinha movimento estudantil. Mas olhe bem: chegou um momento em que a guerrilha, militarmente, entrou num impasse. Quando começaram a ter as baixas, havia uma discussão: ir para o lado do Xingu, ou não? Sair do Araguaia, ou não? Se fôssemos para o lado do Xingu, a guerrilha sobreviveria, muito tempo, na selva. Agora, em que condições ela sobreviveria? Era contraditório com a linha política do PCdoB, expressa no “Guerra Popular: O Caminho da Luta Armada no Brasil”: concepção de área libertada, trabalho popular, etc. Quer dizer, veja bem: a guerrilha do sul do Pará antecipa uma situação que vai surgir dez anos depois! 

O que vai surgir? Como o sul do Pará era uma região de fronteira agrícola – e nesse sentido foi uma região bem escolhida, porque era a região mais distante dos grandes centros, tinha cobertura aérea, fronteira com três Estados, e na frente você tinha a cidade e, nas costas, a selva. Pois bem: nessas particularidades, a sobrevivência da guerrilha – e ela sobreviveu durante dois anos, foi a experiência guerrilheira mais longa depois da Coluna Prestes, e com uma precariedade de armamento incrível – foi fruto do conhecimento que nós tínhamos da região, fruto de termos vivido na região, trabalhado lá com lavradores, garimpeiros, mineradores, mateiros, etc. Isso deu essas condições de sobrevivermos

E o que acontece é que a partir da década de 80 é que começa a surgir o movimento camponês na região, a partir das Comunidades Eclesiais de Base, do movimento sindical, das pastorais da terra. É exatamente na década de 80! Só que uma década antes a guerrilha havia sido extinta. Quer dizer, de uma certa maneira, a preparação na região foi bem feita; a região foi bem escolhida. E isso tem a ver com a extensão da fronteira agrícola, principalmente com um marco, que foi a Transamazônica, a partir da ideia do Golbery de “ocupar para não entregar”.  Antes de descobrirem a guerrilha, já havia uma estratégia do Estado de ocupar aquelas áreas vazias. Tanto que a política de incentivos fiscais, mineradoras, madeireiras e estradas já foi determinada em 1970, independente da guerrilha. Inclusive quando eles fizeram uma operação lá, em 1970, eles estiveram em casas nossas e não descobriram nada. De uma certa maneira, a gente podia ter continuado. Mas até usávamos a expressão: “isso aqui é como uma grávida; chega uma hora que não dá mais para esconder a barriga”. Não dava mais. Começou a ter conflito pela terra; pistoleiro, morte. Meio anarquicamente, e depois passou a ser mais organizado. Essas contradições não foram solucionadas politicamente pela linha central do Partido Comunista do Brasil.

Então, em que pese a generosidade, a combatividade, a legitimidade e o heroísmo – tem 50 companheiros e companheiras que até hoje seus corpos não foram entregues –, era muito difícil uma vitória naquelas condições. Mesmo considerando as condições de outros países da América do Sul, usando a selva, usando serra, é muito difícil. Porque o avanço tecnológico, o aparelhamento do Estado, vai dando condições ao Estado de ter um grau de controle de estradas, entradas, cobertura aérea, etc., muito grande. A gente sobreviveu um certo tempo por causa da selva, mas quando começaram a jogar napalm, quando começaram a derrubar a selva… Aí localizavam. Podíamos ficar como um grupo guerrilheiro andante em toda a região amazônica, e não seríamos pegos – mas qual era o objetivo de ficar como um grupo guerrilheiro andante? A linha política era outra; era considerar o sul do Pará como uma área estratégica para a construção das bases de uma área libertada de poder popular.

Nesse sentido, eu acho que o PCdoB deveria ter apresentado uma avaliação, uma espécie de prestação de contas, destacando os aspectos positivos, mas fazendo uma autoavaliação da experiência e prestando contas à sociedade. Eu acho que faltou isso, na minha avaliação, e portanto eu fiz um trabalho para discutir essas questões. E fiz isso muito individualmente, porque saí da cadeia depois do Massacre da Lapa, então fiquei sem contato. E aí comecei a fazer esses contatos individualmente, procurando famílias cujos integrantes do movimento estudantil eu conhecia; procurando pessoas que eu conhecia da minha militância da UNE, etc. E ía informando onde eu estava, como eles estavam, passei a fazer isso. E aí a minha militância central era resgatar a memória da guerrilha. E nesse sentido eu trabalhei com o livro “A guerrilha do Araguaia”, com o Palmério Dória, depois com o “Guerra de Guerrilhas no Brasil”, com o Fernando Portela, e depois com outros livros que foram publicados sobre a guerrilha, no sentido de resgatar a memória.

Porque pra mim a memória é revolucionária, como iluminação do presente e do futuro. E acho que a maior homenagem que a gente faz aos companheiros é exatamente resgatar as lições e ensinamentos daquele ato heróico que foi dar a vida pela causa da luta contra a ditadura e pelo socialismo.

Revista Opera: Você é libertado em 1977, certo?

José Genoíno: Em abril de 1977. Fui preso no dia 18 de abril de 1972, fui condenado com base na Lei de Segurança Nacional, Artigo 14. Não foi pela guerrilha… Porque até a minha condenação, ninguém era condenado pela guerrilha. Eu não fui condenado pela guerrilha, mas pela filiação ao Partido Comunista do Brasil, Artigo 14 da Lei de Segurança Nacional. Porque a política da ditadura era invisibilizar a guerrilha.

Revista Opera: E já tinha sido preso também no Congresso de Ibiúna, em 1968.

José Genoíno: Já tinha sido preso no Congresso de Ibiúna, e antes do Congresso de Ibiúna estive preso aqui em São Paulo, em julho de 1968, por ocasião daquelas manifestações Maria Antônia-Mackenzie.

Revista Opera: Quando você é libertado, em 1977, o movimento pela anistia já tinha começado, já tinha uma certa força. E especialmente a partir de 1978 vai se fortificar; mas já havia sido lançado o Movimento Feminino pela Anistia, etc. É de se notar que a palavra de ordem então era por uma anistia “ampla, geral e irrestrita”, o que acabou prevalecendo. Mas 40 anos depois, curiosamente o que ecoa é justamente o “sem anistia”, em relação aos militares e ao governo Bolsonaro. Como você via o movimento pela anistia ali naquele contexto? E como você vê hoje? Em alguma medida a anistia “ampla, geral e irrestrita” gerou os problemas que agora nós tentamos responder por meio do “sem anistia”?

José Genoíno: Eu acho que a coisa é mais complicada, é muito mais complicada. Primeiro porque entre os sobreviventes da luta armada, tanto da guerrilha urbana quanto da rural, até 1974-75 havia uma discussão entre nós de que a ditadura só cairia pela luta armada. Acontece que houve um período em que, com a derrota das ações militares, a perspectiva dos presos de sair da cadeia – basicamente via sequestros – estava diminuindo, se esvaindo. Então começamos a nos preparar para ficar um tempo mais longo na cadeia, cumprir pena. E havia um debate entre nós, presos políticos, sobre essa questão.

Até a eleição de 1974, com o MDB, havia uma discussão que dividia os presos: vamos sair daqui como? Ali começou a haver uma discussão sobre o fim da ditadura militar. A distensão lenta, gradual e segura. Naquele momento, o aparato do DOI-CODI que era responsável pela nossa prisão, começava a chamar os “aberturistas” de inimigos. Eles falavam: “os seus companheiros, o Golbery, Heitor Aquino, etc”; falavam isso para nós! Os caras que cuidavam… Os carcereiros. E a nossa cabeça ficou muito movimentada, digamos; porque era uma situação totalmente diferente. Aí houve a eleição de 1974. Inclusive, durante a eleição, estava cumprindo pena numa penitenciária do Estado, e fizemos uma greve de fome.

Então quando saí, em 1977, realmente já havia o movimento de anistia, o Movimento Feminino pela Anistia, da companheira Therezinha Zerbini, e depois o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). Aí o que acontece? Havia um debate. A primeira proposta era a anistia não envolver crimes de sangue. Portanto, aqueles que participaram de ações armadas não seriam anistiados – essa foi a primeira proposta. Aí nós levantamos a bandeira da anistia “ampla, geral e irrestrita”. E eles falaram “ampla, geral e irrestrita” para os crimes conexos – quer dizer, aí se incluiu uma deformação, um absurdo, que era incluir na Lei de Anistia crimes que não haviam sido investigados, nem julgados, nem tipificados. O que é crime conexo? Ali foi a primeira grande divergência na transição, que depois se materializa na campanha das Diretas e no Colégio Eleitoral. Aí surgiu o movimento de anistia “ampla, geral e irrestrita” mas sem os crimes conexos, de tirar os crimes conexos. Foi para votação, e a esquerda perdeu. A esquerda, representada pelo Comitê Brasileiro de Anistia (CBA), o Movimento Feminino de Anistia, ex-presos políticos e alguns sindicalistas, era minoria. Ganhou a política de conciliação nacional, que foi a anistia “ampla, geral e irrestrita”. Essa política estava calcada num acordo, que vai se explicitar… Eu não sei se você viu, uma matéria muito bem feita, que é uma descrição de um depoimento do general Leônidas [Pires Gonçalves], feita pela Maria Cristina Fernandes, no Valor Econômico, em que o general diz que “ganhou todas” na Constituinte. E ele não era da extrema-direita; extrema-direita era o Newton Cruz, etc. Ele [Leônidas] era da “transição lenta, gradual, e segura”. Então aquilo ali, a transição, caminhava por cima e por dentro da oposição liberal. E a esquerda era minoria; o que vai se revelar depois da campanha das Diretas, em que fomos minoria, no próprio Colégio Eleitoral. Foi feito um acordo por cima.

Então eu diria para você que o problema da anistia… Quando nós incorporamos na Constituinte, no ato das Instituições transitórias, o artigo 8º ou 9º, que ampliou a anistia para militares, não se colocou a discussão de crimes conexos. Mas quando nós formulamos, no artigo 5º, o crime de tortura como imprescritível, eles tiraram a palavra “imprescritível” e nós perdemos no voto. Porque a palavra “imprescritível” fazia com que os crimes de mais de 30 anos não prescrevessem; eles tiraram. Então houve uma disputa na Constituinte muito radicalizada, essa votação foi por algumas dezenas de votos no Plenário. E nós tínhamos, na esquerda, uma aliança com a centro-esquerda e com os liberais, que era liderada pelo Mário Covas; e perdemos essa votação.

E aí o que acontece? Quando se incorporou, no governo Fernando Henrique Cardoso, a Comissão de Mortos e Desaparecidos, e depois a comissão que anistiou, com base na Lei de Anistia, havia um problema; o fato da anistia ter sido produto de um grande acordo, que foi selado da seguinte maneira: “os torturadores não serão promovidos, mas também não serão julgados”. Isso foi a síntese do acordo com a oposição liberal.

Essa ideia dos “crimes conexos”, de pacificação nacional, de esquecimento, é uma tradição da dominação burguesa no Brasil que causou grandes prejuízos políticos. Como diz o Francisco Teixeira, “quando o passado não passa, ele fica recalcado e volta com tudo”. Foi o que aconteceu com o golpe de 2016, com esse período do bolsonarismo, e com isso que está acontecendo até hoje. Quer dizer, não se fez uma democratização efetiva. A democratização tinha três questões essenciais: a anistia – e nós perdemos; a campanha das Diretas – perdemos; e a Constituinte – e na Constituinte foi selado o pacto da tutela militar, e por isso acho importante esse material do depoimento do general Leônidas. Que era o principal articulador. Articulador ao centro, porque existia uma extrema-direita! E aí veja bem a situação: a extrema-direita, que jogava bomba em banca de jornal, na OAB, atentado ao Riocentro, etc., eles praticavam atos terroristas… Parece que nós estamos repetindo a história novamente.

Então essa ideia de pacificação, do esquecimento, da invisibilidade, é um caminho que a experiência histórica mostra como um equívoco. Porque a própria memória fica sacrificada. A memória é mais revolucionária do que o julgamento: a memória é revolucionária, não é propriamente julgar o cara, é a memória! Basta a gente assistir o “Argentina, 1985“, para ver como isso é importante.

Então acho que é isso que estamos vivendo nesse período. Temos um problema, que é a transição inconclusa, que não se realizou nem na Constituinte, nem na Nova República, e nem quando a gente governou; ela se recoloca depois com o governo do “inominável” [Bolsonaro]. E se recoloca porque as Forças Armadas assumem o comando político do Estado e do governo – e geraram isso aí.

Eu acho que hoje eles estão muito desgastados, enfrentam uma crise interna poderosa, perderam completamente o sentido do que é uma política de Defesa do País – quer dizer, cuidar de urna eletrônica, de ministérios, não tem nada a ver com a Defesa –, e além disso as Forças Armadas estão completamente desatualizadas e desorganizadas. Existem alguns avanços, pequenos: por exemplo, o fato do Lula ter demitido o comandante do Exército. Não resolveu o problema, mas foi um dado positivo. O fato dele ter demitido o comandante militar do Planalto, que foi a fonte da crise no dia 8 de janeiro, à noite. O fato de ter demitido o comandante do Batalhão da Guarda Presidencial (BGP). O fato de ter revogado a promoção do tenente-coronel Cid. E acho que esse fato que aconteceu ontem (27), do Moraes decidir que o dia 8 de janeiro não trata de crimes militares, há nesse fato um certo ineditismo. Abre-se um debate sobre a Justiça Militar, por que o que é a Justiça Militar? São normas que existem durante a atividade militar. Aquilo ali [8 de janeiro] não era atividade militar. Na medida em que você discute essa questão, enfraquece a Justiça Militar. Coisa que nós, na Constituinte, também perdemos. Na Constituinte o PT defendeu o fim da Justiça Militar, apresentei emendas com o Hélio Bicudo, e perdemos todas as vezes.

Revista Opera: A Justiça Militar é um elemento… O Oliveiros Ferreira é alguém que trata disso; como a ideia de Justiça Militar cria o elemento de diferenciação entre o militar e o civil, no sentido de que é quase como se a Constituição do militar não fosse a nossa Constituição.

José Genoíno: Claro, exatamente. E aí há um problema, porque na ditadura militar a Justiça Militar julgava civis. Com a transição, tiraram os civis, mas mantiveram os militares. O próprio “inominável” foi absolvido nesse tempo porque era Justiça Militar. E ali [planejamento de atentados] não foi crime militar.

A minha tese é que uma transição incompleta, traumática, inconclusa, e o fato da extrema-direita ter voltado com tudo, num contexto em que os liberais deram o golpe [de 2016] mas quem levou foi a extrema-direita, radicalizou tudo. Tudo está radicalizado! Você veja: teto de gastos, Banco Central, Justiça Militar, tutela militar, Amazônia; tudo está radicalizado! O Brasil tem que passar por uma purgação. Coisa que não aconteceu na transição, de 1979 a 1985. Não aconteceu. Ali naquele período predominava a ideia de conciliação nacional.

A Constituinte manteve a tutela, manteve a militarização, com o Estado de Defesa, com as Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e a militarização da segurança pública. Então se tem um processo que não se resolve.

Revista Opera: E com as polícias militares submetidas em última instância ao comando do Exército.

José Genoíno: É o artigo que diz que são forças auxiliares e de reserva do Exército. Quer dizer, há um problema com a vinculação disso com a GLO, e com toda a estrutura militarizada que vem da ditadura militar com as PMs.

Revista Opera: Você foi um dos 559 deputados constituintes, e foi membro da Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e da Segurança. 

José Genoíno: Perdi todas! Não passou uma!

Revista Opera: Como é que se dava essa tutela, esse tipo de pressão? Porque você mencionou a ala “frotista”, terrorista, radical, e esses generais “moderados” (entre muitas aspas). Como se dava a pressão ali na Câmara?

José Genoíno: Primeiro: na Constituinte, a orientação que predominou foi a orientação oficial do general Leônidas, cujo assessor principal era o coronel [Werlon Coaracy de] Roure e o capitão-de-mar-e-guerra [Luis Paulo Aguiar] Reguffe, duas figuras muito competentes.

Tinha havido a discussão da Comissão Afonso Arinos. Havia um debate sobre o papel das Forças Armadas. E eles colocaram o papel das Forças Armadas dentro do pacote da transição. A transição que envolvia [as questões do] mandato do presidente Sarney, o sistema de governo, a questão da anistia, da tortura, da Justiça Militar, etc. Toda aquela plataforma e, nesse sentido, entrou a tutela, que era o Artigo 142. E eu participei ativamente da comissão. O PT tinha 16 deputados. Cada deputado ia para uma comissão; eram 16, havia 8 comissões. E eu fui para a Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e Segurança; foi nessa subcomissão que eu convivi com os principais líderes, que eram Jarbas Passarinho, Ricardo Fiúza e esses dois assessores – Reguffe e Roure. Mas esses assessores já foram uma nova tática do general Leônidas. Eles dialogavam com todo mundo, mas não faziam pressão direta ali – a pressão se dava por cima. A pressão se dava pelo Leônidas com o Sarney, pelo Leônidas com o Ulysses [Guimarães], pelo Leônidas com o Fernando Henrique Cardoso, por lá. Ali, na Subcomissão, nós tínhamos um debate muito franco, e era explícito o debate.

Foi quando comecei a debater certas questões com eles: em relação ao Estado de Defesa, que é o Artigo 136, eu propus revogar; eu propus criar o Ministério da Defesa; propus a questão da revogação do Artigo 144, parágrafo 6º; a revogação do Artigo 142, que era a questão da lei e da ordem. Mas isso foi totalmente derrotado. Nós atuávamos muito intensamente na Constituinte, e descobrimos que, antes do relatório ser impresso no PRODASEN, que era a gráfica da Constituinte, o [relator da Constituinte] Bernardo Cabral (PMDB-AM) fazia os ajustes. E nós fomos lá, na salinha dele; chegamos lá, eu, Haroldo Lima (PCdoB-BA) e Vivaldo Barbosa (PDT-RJ) e dissemos: “Bernardo, esse Artigo 142, nós queremos mudar; tirar o ‘da lei e da ordem'”. Aí ele descobriu que esse “lei e ordem” não estava na Comissão Afonso Arinos. Só que isso gerou um pronunciamento contundente do general Leônidas, que ameaçou a Constituinte – aí o Ulysses [Guimarães] foi entrevistado sobre isso e falou que “não tinha medo de junta militar” e chamou a junta de “três patetas”. Foi o único fato público da crise da Constituinte com os militares. E aí passou o Artigo 142 como está hoje.

A questão da tutela militar é o 142, e também o 136, que é o Estado de Defesa. Nessa crise, do 8 de janeiro, foi levantado o 142 – ainda bem que o Lula não entrou nessa – e o 136, que estava no pacote do Anderson Torres.

Revista Opera: Você está se referindo ao plano mirabolante encontrado na casa de Anderson Torres de promulgar um Estado de Defesa.

José Genoíno: É. Que era Estado de Defesa específico, localizado.

Revista Opera: Isso. E o 142, você está se referindo a uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que o Lula adotasse para responder ao 8 de janeiro.

José Genoíno: É, o 142 trata da missão das Forças Armadas. Então acho que o debate foi esse. Depois eu participei do debate sobre a lei complementar que regulamentou o preparo e o emprego [das Forças Armadas], que amenizou, mas não resolveu. E acho que essa questão não foi resolvida no governo da Nova República e nem no governo Lula e Dilma. Por quê? Porque houve uma concepção revanchista dos militares, da ditadura militar. Eles foram revanchistas em relação à Nova República e em relação a nós! A maneira deles, de levar adiante o revanchismo, foi o golpe de 2016, foi a eleição do “inominável”. O que leva ao comandante do Exército agora proclamar essa frase, “a eleição do Lula era indesejável“. E leva ao processo de tutela, de militarização, do Estado e do governo; foi todo esse período que jogou as Forças Armadas num abismo inominável.

Revista Opera: Ali em 2003, com a vitória do Lula, se falou no seu nome para assumir o Ministério da Defesa – ou ao menos é o que se diz. E aí teria havido uma resistência dos militares. Foi isso? O que aconteceu ali?

José Genoíno: Não. Primeiro que os militares não foram consultados. Eu digo isso porque eu era interlocutor. Era interlocutor por causa da minha experiência na Constituinte. Eu cheguei a dar aula na ECEME (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército), na ESG (Escola Superior de Guerra) e tal. Não recebi nenhum tipo de veto.

O problema é que nós tínhamos uma questão pela frente. Qual era a questão? A Comissão Nacional da Verdade. Tinha que ser resolvido.

E tanto eu, como Lula e o comando do governo, chegamos à conclusão de que o melhor caminho não era uma pessoa que era parte [do combate à ditadura] ser comandante, através do Ministério da Defesa. Aí coincidiu que o PT não tinha quem presidisse o partido, e eu fui escolhido para presidir o partido.

Não houve um veto, as condições políticas me levaram a ser presidente do PT. Até depois, quando fui trabalhar como assessor especial no Ministério da Defesa [em 2011], eu conversava muito com eles. Eu aprendi uma coisa com militar: você tem que conhecer do assunto para dialogar com militar. Não adianta você dialogar com ele na porrada, você tem que conhecer o que são as Forças Armadas, para que servem, quais são os conceitos de guerra, como se preparar, etc. Então eu dizia para eles: “olha, a estrutura de vocês está totalmente superada, a discussão dos quartéis é alvo visível, o preparo não tem sentido.” Tá entendendo? E eu discutia isso militarmente. Então eu tinha acesso a conversas… Eu não era chefe nem “cururu”, como se diz, então eu dialogava muito. E eu tentei, principalmente quando o Jobim estava lá, algumas iniciativas: comemorar o centenário da obra do [Nelson] Werneck Sodré na Escola Superior de Guerra e reeditar o livro “História Militar do Brasil”, aí eles vetaram. Aí sim, eles vetaram.

Revista Opera: Eles vetaram uma homenagem ao Sodré, especificamente?

José Genoíno: É, o modelo; a gente queria fazer uma mesa redonda, uma mesa plural, na ESG, sobre o centenário do Sodré. Mas os militares, eles usam uma coisa: eles empurram com a barriga. Uma alternativa é virar a mesa, outra é empurrar com a barriga, a terceira é aceitar. Eles fazem esse jogo, foi isso que aconteceu. Houve isso.

Nós também tentamos criar um instituto Pandiá Calógeras, que foi o primeiro ministro civil da Guerra. Era o Instituto Pandiá Calógeras, para sistematizar a união dos civis com os militares para discutir política de Defesa. Houve o golpe [de 2016], suprimiram o Pandiá Calógeras. A própria Estratégia Nacional de Defesa, que foi uma primeira tentativa de sistematizar alguma coisa, não aprofundou nada; foi assimilada mas não foi aceita. Porque militar tem isso: assimila mas não aceita.

Revista Opera: Você mencionou que esse problema se mantinha nos governos Lula e Dilma. Nós ainda temos um discurso que é muito corrente, de que os militares no governo Lula tiveram uma postura legalista e desinteressada da política. Temos esse discurso até hoje, mas tivemos muito, naquele momento, uma certa desatenção com a questão militar. Tivemos a queda dos ministros da Defesa José Viegas Filho, em 2004, depois de uma nota do Exército elogiando o regime militar num contexto de divulgação de uma fotografia do Vladimir Herzog; depois o Waldir Pires, em 2006, durante a crise dos controladores de voo – e o Waldir era muito ligado ao Jango, tinha sido ministro – e tivemos, além disso, a MINUSTAH e aquela crise aberta pelo general Heleno em 2008…

José Genoíno: Por causa dos yanomamis.

Revista Opera: Por causa dos yanomamis, exatamente, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

José Genoíno: Eu estava lá, naquela crise, ele foi punido. O Jobim transferiu ele do Comando Militar da Amazônia para uma secretaria burocrática em Brasília.

Revista Opera: E o que isso gerou de resposta por parte deles?

José Genoíno: Ele disse que ia para a reserva no dia 31 de março, que iria fazer um pronunciamento. O Jobim disse que se ele fizesse um pronunciamento, seria punido – inclusive com ameaça de prisão. Aí ele [até hoje] não se dá bem com o Jobim de jeito nenhum.

Mas eu vou te explicar isso: olha bem, a transição não enfrentou a questão da tutela militar, da autonomia militar, da militarização da política. E as mudanças que foram feitas foram mudanças… Eu não vou desprezar, mudanças como no governo do Fernando Henrique Cardoso; a criação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, Comissão de Anistia, e no governo Lula a Comissão Nacional da Verdade. Mas acontece que houve essa crise do Viegas; eu acho que Lula cedeu ao demitir o Viegas, fortalecendo o general [Francisco Roberto de] Albuquerque, comandante do Exército entre 2003-2007, que era exatamente a expressão da tutela. Ao nomear o José Alencar para ministro da Defesa, [Lula] fez uma concessão – porque os militares querem um ministro da Defesa que não se intrometa nas questões militares; um ministro para cantar o Hino Nacional, hastear a bandeira e prestar continência.

Revista Opera: Durante a direção do José Alencar no Ministério da Defesa de fato acabaram as crises.

José Genoíno: É. Aí como o José Alencar ia se descompatibilizar para ser candidato, veio o Waldir Pires. O Waldir teve um problema, que eu estava lá e vi, que foi o problema dos controladores de voo. Ele recebeu, como ministro da Defesa, os controladores de voo, sem a presença do comandante da Aeronáutica, o tenente-brigadeiro do ar [Juniti] Saito, que tinha uma posição muito boa, favorável. Aí acirrou. E aí que veio à tona o papel do Waldir Pires no governo Jango, etc. E, no auge da crise dos controladores de voo, foi indicado o Nelson Jobim para o ministério da Defesa. E eu digo para você que, até hoje, foi o melhor ministro da Defesa que o Brasil teve; eu respeito muito o Celso Amorim, mas o Amorim era mais um diplomata do que ministro da Defesa.

Eu convivi com o Jobim. Primeiro: durante o período dele não houve comemoração do 31 de março. Segundo: o general do Comando Militar da Amazônia, [Heleno], foi punido e foi exercer um cargo burocrático em Brasília – porque as punições são mais ou menos como aconteceu com o Mourão; sai da tropa e vai comandar a burocracia. E foi isso que aconteceu com o Heleno. E algumas iniciativas que nós tentamos: a Estratégia Nacional de Defesa, o Instituto Pandiá Calógeras, e começamos a mexer na doutrina militar, com algumas iniciativas como essa do centenário do Nelson Werneck Sodré, iniciativas de fazer debates sobre a própria MINUSTAH, etc. Eu visitei a MINUSTAH duas vezes, no período Nelson Jobim e no período Celso Amorim. Quando eu vi aquela operação, falei: “isso aqui não tem nada de guerra. Isso aqui é inútil. Isso é um problema social que tem que ser enfrentado, não por Forças Armadas”. Eu acho que foi um grande equívoco.

Revista Opera: Você acha que fortaleceu eles neste retorno à cena política?

José Genoíno: Nem tanto. Em parte, sim, porque particularmente no Exército quem comanda as unidades militares da Amazônia e quem participou da MINUSTAH tem um grau a mais nas conceituações promocionais. Mesmo que não seja promoção de graduação, mas dá prestígio. E deu prestígio, sim. Os militares que foram para a MINUSTAH foram prestigiados.

Revista Opera: Nessa época lembro de ver o Heleno na televisão, quando criança; “Comandante da MINUSTAH”, e ter uma sensação geral, como uma criança assistindo, de que “o Brasil tem um general que vai lá ajudar o povo haitiano”.

José Genoíno: É, tinha esse lado, principalmente depois do terremoto. Acontece que ali era uma tragédia social que tinha que ser resolvida sem a via militar. E os Estados Unidos tinham uma [questão] geopolítica ali. Do ponto de vista estratégico, era controlar o Caribe. Mas os EUA não podiam [comandar], o Canadá era amigo dos EUA, a França tinha sido derrotada pelos haitianos, a Espanha foi derrotada pelos haitianos. Quem sobrava? China, não! Rússia, não. Então Brasil. Foi assim. E como o Lula estava muito impactado pela ideia de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, pela diplomacia ativa e altiva… Acho que foi um erro, a MINUSTAH.

Mas não foi propriamente ela que incentivou essa politização, essa partidarização, esse desejo de controlar o Estado. Eu acho que o germe dessa intromissão, dessa militarização, foi na AMAN, depois na transição… A politização já estava dada, porque esse contingente, particularmente do Exército, veio de uma transição da ditadura para a democracia. E nessa transição alguns generais tiveram uma posição boa, alguns oficiais que começavam a fazer alguma revisão. E é bom você localizar que esse momento, fim da década de 80 e início da década de 90, foi o auge da ofensiva neoliberal no mundo. Estado mínimo, globalização, e a ideia de um governo mundial, em que os EUA definiam que as Forças Armadas dos países periféricos cuidassem da segurança pública, drogas e terrorismo, e eles [EUA] cuidariam das questões estratégicas mundiais. Isso implicou em sucatear [as Forças Armadas]. Eu até costumo dizer que elas, na Nova República, foram colocadas no acostamento.

E o Lula tirou elas do acostamento quando começou a viabilizar alguns projetos, que são importantes, como o projeto do submarino nuclear (PROSUB), a questão do ciclo do combustível nuclear, a questão da Base de Alcântara – que lamentavelmente teve aquele acidente –, e a própria questão da guerra cibernética. Então esses projetos, que dizem respeito a uma tecnologia sensível, eram importantes. Mas acontece que essas questões continuaram sendo tratadas como questão militar, e política de Defesa é uma política pública do Estado, da sociedade, não é uma política pública de militares. E acho que a gente errou em tratar, tanto na Estratégia como na Política de Defesa Nacional – são dois documentos – e depois no próprio Livro Branco da Defesa Nacional, como um assunto de militares, e não como um assunto da academia, do Congresso Nacional, dos partidos, etc.

Acho que esse é um problema maior, um problema que vai desaguar no que? Na crise de 2008, numa redefinição da geopolítica mundial em que os EUA deixam de ser unipolar e passam a ter competição com a China, e mudam sua estratégia em relação às Forças Armadas dos países periféricos. E aí muda mesmo, a partir de 2008, em pleno governo Obama: há interferência, influência, treinamento, visitas. Vários pedidos de treinamento no Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS). Então aí houve toda uma redefinição da geopolítica, na qual levantaram a guerra contra as drogas, depois a guerra contra o terrorismo, e a guerra contra a corrupção. Essas três guerras desembocaram na politização [das Forças Armadas], politização essa que teve como eixos a “guerra cultural”, o “marxismo cultural”, o ser contra o “politicamente correto”, a reatualização do conceito de inimigo interno e o veto à esquerda – porque houve um veto público, em função da influência da Lava Jato e da criminalização do PT. E isso produziu, vamos dizer assim… Eles montaram no cavalo. Bolsonaro não existiria sem Forças Armadas nem as Forças Armadas fariam o que fizeram sem Bolsonaro. Houve um casamento de interesses ali que juntou a sede com a vontade de beber.

Revista Opera: A Comissão Nacional da Verdade (CNV) começa a ser discutida já no final do governo Lula, e ali me parece já haver uma pressão militar muito grande, a questão acaba passando por meio do Nelson Jobim e, no governo Dilma, é onde explode realmente essa tensão com a CNV. Você mencionou como as Forças Armadas estavam no acostamento no governo Fernando Henrique: você acha então que houve uma certa ingenuidade por parte do PT, de achar que o problema militar estava superado? Ou você acha que houve uma postura de “não vamos mexer no vespeiro” para ver se as vespas ficavam tranquilas?

José Genoíno: Eu acho que houve mais uma ingenuidade. Primeiro que a Comissão Nacional da Verdade, que foi correta – trabalhei pela instalação dela –, tinha que ter sido instalada em 2003, e não em 2011, porque então o Lula tinha muita força. Segundo, acho que a CNV tinha que ter se orientado para produzir um relatório que caracterizasse o terrorismo de Estado e colocasse um pedido de desculpas, como foi feito agora pelo Gustavo Petro, da Colômbia. Nós nos centramos muito em fatos que davam manchete, particularmente com a politização de setores do Ministério Público, da imprensa, precipitações da OAB com aquela questão da ADPF 153 sobre a Lei de Anistia, que acabou levando a uma decisão a favor da Lei de Anistia. Se a gente tivesse trabalhado, a partir de 2003, com a ideia de recapitular a memória, caracterizar o terrorismo de Estado e colocar um pedido formal de desculpas em nome do Estado brasileiro, eu acho que teria sido um passo. Como os militares voltaram pros quartéis, e não houve pronunciamento militar nenhum, nós ficamos achando que estava resolvido. E não estava, não estava resolvido. Isso veio à tona quando? É interessante, porque não foi só por causa da Comissão Nacional da Verdade. A CNV se instala em um momento em que há uma redefinição da geopolitica mundial, com a crise de 2008; a recaptura das matérias primas, do pré-sal, fundos públicos, relação capital-trabalho. Houve uma espécie de reestruturação do capitalismo mundial. E isso envolvia uma nova geopolítica norte-americana, e “América para os americanos” voltou a ser uma questão central.

Não é por acaso que vem a Lava Jato, que é um desdobramento do “mensalão”, nem é por acaso que vem a criminalização da esquerda, e com uma influência muito grande nas Forças Armadas. E nesse momento eles adequam essa visão, de criminalização da esquerda, com o conceito de inimigo interno, contra o politicamente correto, o marxismo cultural, e com a questão da guerra interna. É nesse processo que ocorreu o golpe de 2016. Essa tragédia produziu o “inominável”. Só que ela produziu o “inominável” e as Forças Armadas não foram desbolsonarizadas. Existem fatos positivos? Há. Por exemplo, a demissão do comandante do Exército é um fato positivo. Eles hoje disseram que aceitavam o julgamento dos militares envolvidos no 8 de janeiro pelo Supremo. Nunca tinham dito isso, ao longo desse processo todo! E dizem isso hoje, pelo menos está na manchete.

Revista Opera: Não aceitavam sequer que os golpistas fossem retirados da frente dos quartéis.

José Genoíno: Claro. Eu acho que o desgaste foi fundo, a desorganização ficou ameaçada, e chegou em um nível em que tinha que ser posta ordem na casa. Acho que, pela primeira vez, temos uma janela de oportunidade de fazer uma reforma profunda nas Forças Armadas. Que seria mexer no Artigo 142; mexer na questão da segurança pública; mexer na questão da PEC da Quarentena – quer dizer, militar, juiz, PM, etc., ao mudar de profissão, tem que ficar em um período de quarentena; especificar a Justiça Militar para casos específicos de atividade militar propriamente dita; e tocar numa questão que é, digamos, cláusula pétrea para eles: mexer no que é uma política de Defesa Nacional. Hoje eles têm uma crise de identidade: o que é Defesa Nacional em um país como o Brasil? É manter essa estrutura que está aí, essa qualidade de homens, essa quantidade de investimento em pessoal? E o acesso à tecnologia, ao ciclo do combustível nuclear, aos oceanos, e a guerra cibernética? Isso é que é importante. O mundo está discutindo as consequências da guerra na Ucrânia – não é da Ucrânia, é na Ucrânia – e o Brasil está discutindo urna eletrônica, acampamento de militar e Justiça Militar. É piada. O mundo discutindo as novas tecnologias da guerra: míssil, drone, como usar tanque ou não. E aqui o Brasil discutindo urna eletrônica, Justiça Militar, golpe de Estado [risos]. E aumento de salário para general! Isso é o fundo do poço.

Eu acho que há alguns eixos muito importantes de discutir. As Forças Armadas se constituem numa defesa da qualidade de vida no País e no mundo. Por exemplo: o que as Forças Armadas fizeram agora no litoral norte é correto. Um puta navio, contingente para resolver – não é para reprimir, não é GLO, nada – é dar sustentação à qualidade de vida do povo. Segundo: é necessário ter acesso a tecnologia sensível, coisa que as Forças Armadas não têm. Isso envolve a Base de Alcântara, envolve satélite, etc. Terceiro: o País não tem conflito militar. Um país que não tem conflito militar tem que ter uma política de compartilhamento da Defesa Nacional com os vizinhos, tanto em relação à Amazônia quanto em relação à América do Sul. Porque nós não temos conflito, não temos guerra à vista. A geopolítica mundial hoje se desenvolve regionalmente, as potências giram em torno de articulações regionais, e a América do Sul é uma grande região: água doce, minério, agricultura, proteína, Cordilheira dos Andes, Amazônia e Bacia do Prata. Isso é um subcontinente estratégico! Deveríamos projetar uma Defesa. A Defesa hoje é dissuasória, uma Defesa em que você sinaliza mas não vai para a guerra; “se vier, a gente impede”. Compartilhar isso com os demais países é importante. É outro parâmetro, que não tem nada a ver com tanque, com gás de pimenta, cassetete, toda essa parafernália que está aí. Isso é questão da PM, guarda municipal. Então eu acho que teríamos de abrir um grande debate sobre política de Defesa Nacional.

Eu inclusive acho, tenho defendido isso junto com Manoel Domingos; a academia, o Congresso, os militares, não sei se vão topar, mas deveríamos fazer um sistema de seminários nacionais, uma espécie de conferência, para discutir que política de Defesa um país como o Brasil tem que ter. Na nossa geopolítica, no nosso entorno estratégico, com o nosso papel no mundo, qual é a política de Defesa? E subordinar essa política de Defesa às instituições do Estado democrático, e não subordinar aos militares. Isso vai mudar o ensino, os parâmetros, a formação, etc. Essa estrutura que temos das escolas militares, por exemplo, é um absurdo; tínhamos que ter militares estudando Geografia, Ciências sociais, História, Filosofia, na academia; na USP, na UNICAMP, etc. E nas academias militares a ciência militar propriamente dita, entende? É uma outra maneira de pensar a questão das Forças Armadas.

Mas aí devemos nos livrar, no meu modo de entender, de dois atalhos: primeiro, o atalho da ilusão de que tem um militar que será garantidor da legalidade. Militar não é para garantir coisa nenhuma, militar é para se subordinar ao poder civil. Esse atalho vem do Juscelino: quem garantiu a posse de Juscelino? Teixeira Lott. E isso levou a gente a ter a ilusão de um general nacionalista. Outra coisa é que, pela experiência particular da Coluna Prestes, imaginamos que surgiria dentro das Forças Armadas um setor revolucionário. No caso brasileiro isso é inviável, não estou discutindo a questão venezuelana.

Revista Opera: Você mencionou a questão venezuelana. Naturalmente acho um primeiro passo mexer no Artigo 142, na questão constitucional, no papel das Forças Armadas, em todas essas coisas. Mas o sr. não acha que existe um problema de equilíbrio de forças por trás disso? Porque pegando a longa trajetória brasileira, a forma de submissão das Forças Armadas, justamente para que elas não saíssem de seu lugar, foi primeiro as Ordenanças, depois a Guarda Nacional… E quando as Forças Armadas instauram a República, iniciam uma ação contínua de acabar com poderes concorrenciais delas. Subordinam a Guarda Nacional, põem fim à Guarda Nacional; depois fazem o mesmo com as Forças Públicas, os “pequenos exércitos”; depois submetem as PMs, em 1988, ao comando delas, etc. Temos o caso da Venezuela, que é um caso, mas no caso do México, com López Obrador, tivemos por exemplo a criação de uma Guarda Nacional. E há acadêmicos que até sugerem a criação de uma guarda de fronteiras, que é uma questão importante para o Brasil, que motivaria um alistamento de uma quantidade considerável de tropas. Isso criaria um desequilíbrio de forças… Porque senão entramos em uma lógica circular, em que a Constituição serve de guarida para eles levarem adiante uma ação de exceção, mas ao mesmo tempo a ação de exceção é por excelência… [anticonstitucional].

José Genoíno: O problema todo é o seguinte: as Ordenanças, a Guarda Nacional, e a formação do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, se deu em um contexto de resgate de uma índole conservadora, colonialista, autoritária, que marcou as Forças Armadas. Não é por acaso que a data de comemoração da formação do Exército é a Guerra dos Guararapes, em 1648, e da Marinha 1565… Uma aliança com o colonizador. Tanto que as Forças Armadas consideram que fundaram o Estado, que fundaram a Nação. E, dentro dessa visão, eles nasceram com uma postura conservadora, que respaldou o escravismo, a grande propriedade da terra, o mercantilismo, e a própria dependência aos centros econômicos mundiais. Porque o início de preparo das Forças Armadas se deu na Primeira República, com a Missão Francesa.

Então eu acho que você tem razão. As duas guerras que têm a ver com a formação do Exército, que é a Guerra do Paraguai – foi a limitação das fronteiras – e a Guerra de Canudos… 35 mil mortos em Canudos! Um massacre! Veja bem: Revolta da Chibata, Questão Religiosa, Canudos. E a instauração da República se dá num contexto de tutela militar, através de um golpe, e a tutela militar que está no Artigo 142 passou em todas as Constituições, com exceção da de 1824, que é Império, e a de 1937, que era a Polaca. Eu acho que isso expressa uma visão oligárquica, uma visão extremamente conservadora, que respaldou o papel político das Forças Armadas. Não é por acaso que o patrono do Exército, o Duque de Caxias, tem esse nome por causa da Balaiada, por causa de Caxias, no Maranhão. Quer dizer: as Forças Armadas têm uma vinculação, uma índole, com esse elitismo conservador-oligárquico muito forte. E a história da República foi isso: tanto que quando surgiu o movimento tenentista, o movimento se dividiu em dois, pela direita e pela esquerda. Porque era um movimento de autoritarismo progressista.

E essa questão, ao longo da Segunda República, nunca foi resolvida. Nós tivemos vários pronunciamentos, várias tentativas, vários levantes, e sempre se empurrou com a barriga. Então eu acho que a questão das Forças Armadas está no centro da luta pela democracia no Brasil. Essa questão tem de ser resolvida de uma maneira democrática, de uma maneira em que as Forças Armadas se subordinem à questão democrática e à questão popular. Porque, devido a essa formação, toda vez que houve alguma tentativa de mexer com a questão social, com a questão da soberania e da democracia, veio intervenção militar. Getúlio, Juscelino, Jango… e golpe de 2016. Envolvem a questão da igualdade, da inclusão, da democracia e da soberania. Então essas três questões nunca foram radicalmente enfrentadas. É isso que compõe a base de um projeto estratégico para o Brasil. E acho que isso está presente nesse debate que temos agora, depois da tragédia que representou esse governo do “inominável”.

Revista Opera: Entrando na conjuntura. Como você ficou sabendo daquele espetáculo golpista do 8 de janeiro?

José Genoíno: Eu estava em casa, tinha tomado banho, trocado de roupa, e estava me preparando para assistir um show no SESC Pinheiros. Estava fazendo hora para ir pro show. Aí liguei a televisão e comecei a ver, disse “opa, o que que é isso?”. A primeira coisa que fiz foi adiar a ida pro show.

Eu faço uma relação com o dia 1 e o dia 8. O dia 1 de janeiro é o Brasil que nós queremos; o dos povos originários, feminista, dos trabalhadores, dos discriminados e humilhados, da esperança, do vermelho, da alegria; o Brasil que subiu a rampa. Aquilo foi muito forte, acho que a imagem fala por si só. E o Brasil do passado, o Brasil recalcado, do ódio, do medo, do ressentimento; esse foi o 8 de janeiro. E eu acho que o 8 de janeiro foi uma intentona golpista fracassada. Acho que sofreram uma derrota com esse fracasso, essa derrota não significa que eles foram eliminados, porque as bases e origens da extrema-direita são muito profundas; tem a ver com a crise do capitalismo, com o movimento internacional, com o resgate a valores da extrema-direita de maneira violenta. E eu acho que tivemos uma situação totalmente nova: nem na ditadura houve aquilo.

Nós ganhamos essa eleição num aperto. Mas a vitória foi maior do que a quantidade de votos. Quando se analisa uma vitória, assim como uma derrota, é pelo significado. Não é pelo número matemático, é pelo significado. E [a vitória] teve um grande significado. Eu acho que a gente deveria ter continuado a vigilância de rua para enfrentar a extrema-direita. Nós menosprezamos o negócio dos quartéis, menosprezamos a capacidade de articulação deles, menosprezamos o fato de que as Forças Armadas estavam contaminadas; menosprezamos quando indicamos o ministro da Defesa e quando foi feito o acordo com os comandantes militares, de seguir o critério da antiguidade. Ainda bem que, nesses momentos de estalo, o Lula percebeu que GLO significaria o golpe.

Revista Opera: Você acha que a ideia ali era, efetivamente, conseguir uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) a partir dos atos golpistas?

José Genoíno: A consagração daquele movimento era decretar uma GLO. Ao decretar a GLO, a autoridade que administra a GLO é o Exército local. O Exército local era comandado por um general de divisão golpista, que era o general Gustavo Henrique Dutra de Menezes – isso está provado –, o comandante do Exército era o general Arruda… E aí eles iam administrar. Qual seria o resultado? Ter um presidente da República manco. Não era um golpe clássico. Porque os golpes hoje, é isso que temos que entender, não são os golpes da década de 50 e 60. Os golpes hoje são híbridos, eles controlam o poder através de fazer mudança por dentro da ordem, por fora da ordem, e vão fazendo isso, como fizeram, acho, no golpe de 2016 – o golpe de 2016 foi um golpe furtivo, no sentido de ir por dentro da ordem. A própria Constituição de 1988 está retalhada, deslegitimada e violentada.

Revista Opera: Que de certa forma é o que fizeram com o Deodoro, em 1891; o que fizeram com o próprio Vargas, em 1945. Quer dizer…

José Genoíno: É. E vão fazendo… E acho que aí nós temos um impasse: nós vamos reestabelecer a ordem constitucional de 1988 com as interpretações autoritárias ou vamos revogá-la e construir uma nova ordem constitucional? Acho que só por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte para esse fim, que é a minha tese.

Revista Opera: Publicamos um artigo no dia 5 de janeiro que tinha o título “O homem da Nova República: força e hegemonia no governo Lula“, e naquele artigo levantávamos justamente a tese de que a chegada de Lula ao governo representou a chegada do espírito da Nova República ao governo; não tinha chegado antes, essa combinação de ideias de liberdade política e de organização partidária, de liberdade sindical, de certos direitos sociais e econômicos com uma concepção “republicana” moderna. A perspectiva de reaver direitos sociais interrompidos pela ditadura retorna no governo Lula – o próprio salário mínimo é recomposto ali. Me parece, no entanto, que essa frente ampla que se formou no governo tenta pegar os cacos dessa ideia que se consagrou em 2003 e juntá-los. Você não acha que tivemos uma crise de hegemonia, desde o golpe contra a Dilma até os anos Bolsonaro, profunda o suficiente pra tornar impossível reaver essa hegemonia novo-republicana? Não há de se efetivar uma nova hegemonia?

José Genoíno: Teve uma crise de hegemonia. Porque as forças que hegemonizaram o período histórico da transição até o golpe de 2016 foram derrotadas. Porque praticaram o golpe, e quem ganhou com o golpe foi o Bolsonaro, a extrema-direita. E a extrema-direita foi derrotada porque foi para cima da esquerda e a esquerda não foi aniquilada como eles queriam, e Lula foi eleito. Acontece que está aberta uma crise de hegemonia. Porque a esquerda sozinha dificilmente ganharia a eleição, teve que fazer uma aliança ampla, e o grande dilema é como fazer uma aliança ampla sem se diluir; fazer uma aliança ampla e disputar os rumos do governo.

Eu acho que a questão central é enfrentar a extrema-direita e o neoliberalismo, porque a extrema-direita é produto do neoliberalismo. Se você combate a extrema-direita e não combate o neoliberalismo – que são as questões do Banco Central independente, teto de gastos, Preço de Paridade Internacional na Petrobras e privatizações –, você não combate com consequência. Além disso, para combater, é preciso atender a população carente: os desempregados, os famintos, os deserdados, humilhados, vítimas do feminicídio, do racismo, as populações originárias, a população LGBTQIA+. Portanto, a pauta social se choca com o modelo neoliberal. Por outro lado, se abandonarmos, não formos consequentes, na pauta social, aí a extrema-direita ganha. Porque a extrema-direita ganha com a crise social e com a impunidade. Temos que combater a extrema-direita com Justiça e com política e, ao mesmo tempo, defender a pauta social. E para defender a pauta social, precisamos tensionar o modelo neoliberal. Portanto, essa é uma encruzilhada.

Eu acho realmente que o Brasil abre um novo período de disputa de hegemonia. Hoje está em aberto: temos a extrema-direita, a esquerda, e uma direita liberal,; a velha direita que está aí sem uma conformação orgânica própria. E temos, ao mesmo tempo, uma crise sistêmica. É interessante porque normalmente usamos o conceito de crise revolucionária; “quando os de baixo não querem e os de cima não podem”. Essa nossa não é uma crise revolucionária, é uma crise sistêmica. Porque tudo está em ebulição: o meio-ambiente, a cultura, guerra, Covid-19, refugiados. Quer dizer, o destino da humanidade está em risco, o futuro da humanidade está sob debate. O capitalismo chegou em um tal ponto em que cravou: a grande contradição do mundo hoje é a luta pela igualdade social. Ou a gente resolve essa questão, ou não dá para enfrentar o fascismo nem a extrema-direita. Porque isso está no centro [da questão]. Como você vai enfrentar a questão na Europa? Estão aí as manifestações no Reino Unido, França, Alemanha, Portugal, Bruxelas, o diabo a quatro. A questão é previdência, saúde, educação, emprego! A esquerda vive uma situação muito promissora, de um lado: tem na questão da igualdade social a grande bandeira para se recolocar no cenário. Agora, tem que enfrentar uma disputa de valores. Veja bem a tragédia do litoral norte: o Brasil passou uma semana discutindo o aquecimento global. O aquecimento global tem culpa de tudo – tá certo, tem culpa –, mas por trás do aquecimento global, e o capitalismo? Não existe? E a falta de investimento, e quem destruiu, quem construiu, quem não investiu? Não existe.

Revista Opera: Teto de gastos…

José Genoíno: Teto de gastos. Não, “é o aquecimento global”. Então eu acho que a esquerda está em uma situação muito delicada, porque é promissora, mas ao mesmo tempo tem que ter um programa que sinalize, no imediato, o futuro. Você tem que dar comida, tem que dar emprego, tem que dar salário, mas ao mesmo tempo não pode ficar só nisso.

Temos uma coisa inédita. Há pelo menos três problemas que, ou se resolvem pra todos, ou a burguesia vai junto: meio-ambiente – não adianta eles construírem palacetes; Covid-19 – não adianta vacinar só a Europa; e guerra. Ou resolve pra todos, ou não tem jeito. A maioria da população que morreu no litoral norte, é claro, é pobre; mas o problema atingiu também os casarões.

Revista Opera: Ontem (27 de fevereiro) o Alexandre de Moraes decidiu que o STF tem a competência para julgar os militares envolvidos no 8 de janeiro. O que você espera, de prático, dessa decisão? Você acha que as punições chegarão aos escalões superiores? E, colocando mais uma questão: nós tivemos os militares que efetivamente participaram dos atos, tivemos os que tiraram o corpo fora, mas tivemos também, efetivamente, um Alto-Comando, as Três Forças, praticamente colocando como “cláusula pétrea” manter aqueles acampamentos. Quer dizer, houve aquela nota dos três comandantes…

José Genoíno: Aqueles acampamentos eram uma tática dupla. De um lado poderiam ser usados para dar um golpe, por outro usavam como constrangimento para o novo governo, a tutela. Eu acho que essa decisão do Alexandre de Moraes, por si só, é muito positiva, porque ela antes de tudo enfraquece a Justiça Militar. Além disso, coloca na agenda a discussão da Justiça Militar, o papel dela. Eu estava temendo que não se tocasse no assunto.

Toda crise produz sua consequência positiva. A crise é tão violenta que escancara tudo. Você ia imaginar que íamos discutir a Justiça Militar a partir da intentona golpista de 8 de janeiro? Isso não estava na pauta. Quando discuti, com Hélio Bicudo, a questão da Justiça Militar, era uma discussão acadêmica sobre o Poder Judiciário. Agora não, é prática. Então acho que a crise tem esse poder: você pega o desastre ambiental; escancara. Um navio de refugiados da África naufraga no litoral italiano e mata dezenas de pessoas: escancara. É isso: a crise é muito grave, é muito bárbara, ela apavora todo mundo.

Então eu acho que temos uma oportunidade de politizar, de elaborar, de discutir. Porque as coisas se abrem. Não estamos com força suficiente para solucionar, sermos alternativa, em tudo. Mas acho que temos chance de avançar muito. Defendo um caminho que é o que chamo de uma “governabilidade tensionada”. Você ter uma governabilidade transformadora, não uma governabilidade do status-quo. Porque com esse status-quo aí: olha a Itália. O Partido Comunista foi administrar o ajuste fiscal, se fodeu. A social-democracia europeia foi administrar o ajuste fiscal, foi junto com ele. Não adianta: ou você vai para o combate, para a disputa política – claro, mediando o que é tático e o que é estratégico –, ou então você vai junto com eles. Quem está retomando a discussão na França? Quais são as duas correntes que estão se fortalecendo? A extrema-direita e a esquerda.

Então acho que esse problema vamos ter que avaliar corretamente. E a questão da tutela, acho que enfrentamos várias delas: a tutela militar, a tutela do teto de gastos, a tutela do Banco Central, a do sistema de justiça, a do imperialismo. E a tutela fiscal. Temos que enfrentar essas tutelas – não estou dizendo que vamos enfrentar de uma vez, não estou trabalhando com a possibilidade de uma revolução, mas de um processo de transformação, de tensionamento, de rebeliões e de movimento de massa. Acho que temos a oportunidade de avançar. O que não podemos cometer é o erro de sermos identificados com o status quo e perder nossa identidade transformadora. A direita aproveitar, e voltar a ganhar eleição da gente. Depois, ficarmos isolados, sem conseguir realizar nem o enfrentamento nem a domesticação. 

Revista Opera: Você mencionou a troca de comando. O ex-comandante, general Arruda, teria insistido na manutenção da promoção do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, e, segundo o que saiu no Metrópoles, teria peitado o ministro da Justiça, Flávio Dino, na noite do 8 de janeiro. 

José Genoíno: É. 

Revista Opera: Como você viu a troca de comando e a colocação do general Tomás Paiva lá?

José Genoíno: Eu acho que foi positivo. Primeiro, temos que ver que uma instituição com essa história, valores, tradição… Você tem que ir tensionando. Estou usando a tática do tensionamento: foi positivo. Mas não resolve, não é solução completa. Segundo: foi positiva a decisão do Moraes. Terceiro: foi positiva a decisão de remanejamento dos comandos, que aconteceu agora. Foi positivo. Essas coisas positivas, não podemos desconsiderar. Agora, achar que resolveu, não. E o 142? E a quarentena? E a Justiça Militar? E a politização via conservadorismo, de considerar as populações originárias inimigas, a esquerda inimiga, o povo inimigo, etc?

E aí entra uma questão fundamental: o conceito de Pátria é usado como um conceito ideológico. Tem que ser o conceito de Nação, como conceito de comunhão de destinos, comunhão de diferentes. Pátria passa a ideia de um conceito mais ideológico, que sempre foi usado. Então acho que estamos vivendo um movimento progressista. Quem viveu o que a gente viveu, e está vivendo o que estamos vivendo agora…

Revista Opera: Em relação ao 8 de janeiro, houve uma discussão sobre a abertura de uma CPI no Congresso. Qual é sua posição sobre isso? Porque existe naturalmente o receio de que isso sirva para que aquele Congresso, cheio de “bolsonaristas”, pressione o governo, crie um espetáculo midiático, etc. Por outro lado, há a máxima de que governo que não faz CPI, toma CPI.

José Genoíno: Considerando a marcha dos acontecimentos, o que o Supremo está fazendo através do Alexandre de Moraes; considerando as iniciativas do governo; considerando inclusive esse reflexo na área militar; considerando que muita coisa ainda vai vir à tona – porque o período do bolsonarismo ainda não veio todo à tona –, eu acho que não é essa CPI que vai resolver o problema. Eu vivi muita CPI no Congresso, nunca fui muito paladino de CPI. Nunca apresentei proposta de CPI, inclusive. Apoiava, participava, mas acho que a política não investiga, a política é para disputa, para projeto. Eu nunca fui de investigar.

Então, sinceramente, eu acho que, diante do que está acontecendo, as coisas já estão bem na frente do que uma CPI que venha por aí. Mas não estou lá, não tenho todos os elementos para avaliar.

Revista Opera: Primeiro, queria saber o que achou da indicação do Múcio, antes do 8 de janeiro; e segundo: não acha que, depois do 8 de janeiro, se abriu a perspectiva de trocar o ministro da Defesa? Tendo em vista que ele, justamente, deu guarida às manifestações nos quartéis?

José Genoíno: Olha, eu fui crítico da maneira como o governo indicou o Múcio, e principalmente do critério adotado com os comandantes militares, pela antiguidade. Eu acho que o próprio governo rapidamente se reposicionou, e mudou esse critério, quando demitiu o Arruda. Acho que o Lula está preferindo comandar as Forças Armadas com o Múcio sendo ministro. Eu preferia outro desenho: era ter um ministro da Defesa politicamente forte, ele se impôr perante o aparato militar, e ser a autoridade do poder civil. Porque você tem o presidente, como Comandante Supremo; o ministro da Defesa, como comandante político; e o Estado-Maior, o conjunto das Forças Armadas, que está acima dos comandantes; e os comandantes. Que acho, inclusive, que o ideal era que não houvesse comandante do Exército, Marinha e Aeronáutica. Poderia ter o Estado-Maior somente, que é o modelo inclusive norte-americano. Preferiria esse desenho. Mas ele escolheu… Critiquei a escolha.

Eu defendo que, no presidencialismo brasileiro, em que o presidente é chefe de Estado e chefe do governo, tem que haver um modelo de assessoramento de alto nível. Acho que a presidência da República tinha que ter uma assessoria de alto nível para as questões de Defesa – que não é ministro; são assessores. Segundo, que houvesse uma assessoria para Relações Exteriores, e terceiro, uma assessoria para as questões da Justiça. Que são as três áreas de Estado, digamos assim. Eu acho que o governo, por exemplo, deveria criar um ministério de Segurança Pública. Para criar, através dele, uma Guarda Nacional – essa proposta do Flávio Dino, só para efeitos de Brasília, não é boa.

Revista Opera: Então o sr. defende uma Guarda Nacional… Nacional, mesmo, com presença nacional.

José Genoíno: Nacional. Defendo uma Guarda Nacional, comandada por um civil, subordinada ao ministro da Segurança Pública, com treinamento e comando para atuar na área de fronteiras, costeiras, e nas situações críticas, quando for solicitado pelos governadores. Ao invés de usar a GLO do Exército, usar a Guarda Nacional. Essa Guarda teria um estatuto constitucional – coisa que a Força Nacional de Segurança não tem. Porque a Força Nacional é uma gambiarra, não tem estatuto. Teríamos de ter uma Guarda Nacional com uma emenda constitucional, uma estruturação vinculada ao ministério de Segurança Pública ou ao ministério da Justiça – prefiro que seja da Segurança Pública, porque o problema da Segurança Pública envolve, hoje, uma área muito complexa. Defendo um Sistema Único de Segurança Pública, um SUSP, que inclua a segurança municipal, estadual e nacional. Esse sistema único se daria através de um banco de dados centralizado e operações centralizadas quando fossem exigidas. Combinando aí polícia preventiva, polícia comunitária, Guarda Municipal, polícia de pronto emprego, etc., – mas separadas das Forças Armadas.

Por exemplo, como se vai enfrentar a questão das milícias? A questão dos CACs? A questão da violência… Você tem que ter um sistema de segurança pública subordinado à autoridade civil. Até para você não usar as Forças Armadas, porque o que vai acontecer, se surgir uma crise violenta num Estado qualquer, o governador vai pedir ao presidente da República o envio do Exército. E aí se cria a ilusão: bota um tanque e os caras respeitam, pronto, depois voltam. É errado isso. Então acho que essa Guarda Nacional cobriria a área de fronteira, guarda costeira, guarda portuária, Brasília… Áreas críticas. Seria a polícia armada.

E eu usaria um conceito que diferencia o conceito burguês de Estado, que é o de “monopólio da violência” para as Forças Armadas. Eu colocaria que a Segurança Pública tem o monopólio da força, e não da violência. Faço uma diferenciação entre força e violência: violência, no limite, é a guerra. A força, não. Com a força você contém, impede, ocupa, mas não tem as vias de fato. Essa é minha visão.

Revista Opera: O sr. falou sobre como esse governo tem que manejar diversas crises. Uma dessas questões, e ela se mostrou essa semana, é justamente a relação com o imperialismo, em um momento em que temos um confronto aberto, uma guerra por procuração, entre quase toda a Europa, os Estados Unidos e a Rússia – com vistas a um enfrentamento com a China em última instância. Como você acha que o governo Lula deveria manejar essas prioridades? Porque tivemos uma indicação de que o governo vai lidar com as posições europeias e estadunidenses, mas não temos um avanço, uma radicalização, em relação aos militares. Quer dizer; quem está pensando que os EUA dão sustentação para nós frente os militares… Não estamos resolvendo essas questões internas.

José Genoíno: Olha, eu acho que nós temos uma Guerra Mundial… Na Ucrânia [risos]. Nós estamos vivendo uma fase da Guerra Mundial na Ucrânia – não é da Ucrânia, é na Ucrânia. É uma disputa violenta, radical, em torno de uma nova geopolítica para o mundo; acho que não há solução militar a curto prazo, nem solução política a curto prazo, e que deveríamos engrossar um movimento político de massa em defesa da paz, do fim da guerra, e propor a negociação. Sem condenar. Se houver que fazer referência à Rússia, tem que fazer mais violentamente em relação à OTAN e aos Estados Unidos. Por isso que fui contra o Brasil votar naquela resolução da ONU. O mundo está parindo uma nova ordem mundial, isso não vai ser fácil; ainda há muitos lances por vir. Porque, na verdade, os acordos de Minsk foram um ganha-tempo. Eles queriam cercar a Rússia em 2014 e ganharam tempo; foram se preparando. E levaram a Rússia a uma espécie de beco sem saída, armaram a Ucrânia para fazer a guerra deles contra a Rússia. A Rússia não é uma potência imperialista, não defendo o regime político da Rússia, nem a política do Putin, mas ela não é uma potência imperialista.

E eu acho que deveríamos defender a paz, inclusive congelar as posições que os dois lados já têm – significa não mexer no que a Rússia tem na Crimeia e no Donbass; a partir daí negociar a paz, diferentemente do que previa a resolução da ONU; e a esquerda e o Brasil defender um mundo multipolar, em nome da paz e da autodeterminação dos povos. Porque se a autodeterminação dos povos é válida, como discurso, para os Estados Unidos, por que isso não vale para o Donbass e para a Crimeia? E outra coisa: a ilegalidade do que está acontecendo na Ucrânia, os Estados Unidos não têm moral para contestar, porque eles romperam. Há um direito internacional paralelo, e os EUA são os que mais rompem com o direito internacional da ONU. O que a Rússia fez foi adotar o direito internacional paralelo, por uma questão de defesa de sua geopolítica. E os Estados Unidos são useiros do uso do direito internacional paralelo, como diz o José Luís Fiori. Então eu acho que devíamos ter uma posição mais combativa, e essa posição não pode ficar só no campo diplomático: acho que tínhamos que pensar em algumas manifestações políticas, populares, sobre as consequências da guerra. Porque isso vai afetar a vida das pessoas.

Revista Opera: Genoíno, você sai da Guerrilha do Araguaia, faz parte do Partido Revolucionário Comunista (PRC), faz sua entrada no PT, se elege… E, vindo dessa vida de guerrilha, depois de clandestinidade ou semi-clandestinidade, você se adapta muito bem à vida no Congresso. Num livro-depoimento para a Denise Paraná, você até diz que sempre gostou muito do ambiente do Congresso, da possibilidade de usar a tribuna, etc., e se tornou uma espécie de especialista no regimento interno do Congresso. Olhando agora, em retrospectiva, essa aposta na institucionalidade, que você faz até rompendo de certa forma com o marxismo, na década de 90; como você olha isso hoje? Quer dizer, que perigos moram na institucionalidade?

José Genoíno: Primeiro, eu não rompi com o marxismo. Eu fiz uma releitura, uma crítica a uma leitura dogmática do marxismo. Mas eu acho que o marxismo enquanto análise da situação concreta, enquanto teoria da revolução e da luta de classes, eu nunca reneguei e sempre resgatei, como uma das fontes inspiradoras.

Bom, eu vivi duas experiências antagônicas que produziram o mesmo resultado. Eu vivi a experiência heróica da preparação do Araguaia, que foi derrotada, heroicamente. E vivi a experiência do Parlamento, em seis mandatos. As duas me ensinaram uma coisa; são antagônicas, mas ensinaram a mesma coisa: ou a esquerda organiza, mobiliza, penetra e faz uma estratégia de massa, de politização, de organização, que envolva organizar, formar, tensionar a institucionalidade, ou…. Não pode cair nem no aventureirismo, no vanguardismo, nem na domesticação. Por isso que eu digo que essas duas experiências me deram uma lição: apostar num caminho de mobilização, de radicalização popular e democrática, de construção de insurgências políticas, de insurgências populares, de construção de alternativas de poder popular nas quais se trabalhe por dentro e por fora da ordem, por cima e por baixo, sem ter ilusão nem na institucionalidade nem em achar que uma ação heróica vai resolver o problema.

Então gosto muito de dizer que são duas experiências marcantes na minha vida, e ambas ensinaram a mesma coisa. A mesma coisa.

Eu achava que o Parlamento, pelo que aprendi, vivi e conhecia… Eu acho que eu tinha uma ilusão, e fui derrotado. Assim como fui derrotado na guerrilha, com cinco anos de prisão. Então, para mim, essas derrotas são importantes para nós tirarmos lições para o futuro. Eu não me sinto dentro do sistema capitalista, não caibo dentro dele. Portanto resgato minha condição de anticapitalista, socialista e militante de esquerda. Porque eu não me sinto, não sou parte desse sistema.

Revista Opera: Por fim, me parece que vamos enfrentar um grande problema nos próximos anos, porque considero que quando dizem – o Lula diz muito isso – que “o único partido que existe no Brasil é o PT”, em larga medida isso é verdadeiro. Só que o PT se confunde muito com o Lula, e efetivamente o Lula já é um senhor. Nos próximos anos vamos ter um problema de herança: quem vai conseguir levar esse partido a frente, ou pra outro lado, ou pro abismo. Como você vê o PT num futuro em que o Lula não seja mais uma figura de liderança? E você pensa em voltar à atuação parlamentar?

José Genoíno: Em primeiro lugar, deixe o futuro acontecer. A gente querer, como revolucionário, normalizar o futuro… Tem grandes chances de dar errado. Vamos viver intensamente o presente – porque assim abrimos as janelas para o futuro –, e vamos estar atentos ao futuro. Porque a essência do marxismo, como diz o Lênin, é a análise concreta da situação concreta. Como podemos analisar o futuro se ele não existe?

Eu acho que o PT é uma experiência muito rica nos seus 43 anos. Eu aprendi muito com o PT, me ensinou muito, e eu também ensinei ao PT. Eu acho que o PT, em alguns momentos, demonstrou uma força que surpreendeu as pessoas. Imaginar que o PT enfrentou a criminalização, o isolamento no Colégio Eleitoral, o isolamento de três eleições presidenciais, que assinou a Constituição mas votou contra… Nós temos uma história que tem de ser bem entendida, o que significa esse partido, um partido de esquerda, de massas, e que assume no seu CNPJ a adesão a uma visão socialista, à luta dos debaixo, à luta dos humilhados, das mulheres, dos jovens, à luta antirracista, à luta contra a exploração, e essa perspectiva muito pluralista que o PT acabou gerando.

Então eu sei que o PT tem muitos desafios pela frente. Mas prefiro que nós potencializemos o momento, e que a gente vá viver o futuro.

Eu não pretendo voltar à atuação institucional parlamentar. Pretendo me dedicar à produção, a escrever, a dar aulas; estou com dois livros praticamente fechados: um é sobre a minha vida inteira, que é o “Do Encantado eu vim” – Encantado é o povoado em que eu nasci –, e o outro é sobre a minha experiência na Constituinte. Devem sair em alguns meses, e quero trabalhar com eles sobre a minha experiência, porque estou vinculando minha experiência à História do Brasil, à História do PT, à História da esquerda. E isso me envolve muito, me mobiliza muito.

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